Do Meu Folhetim https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br Meias verdades sempre à meia luz Thu, 30 Sep 2021 12:29:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Estoque de cloroquina https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/22/estoque-de-cloroquina/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/22/estoque-de-cloroquina/#respond Fri, 22 Jan 2021 21:18:22 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/cloroquina-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=948 Depois que descobriram que o aplicativo do governo recomendava cloroquina e remédio de verme pra qualquer ser vivo com dor de barriga (ou de cabeça, de unha encravada, de cabelo caindo), ontem ele foi desativado e acabou a graça de a gente simular tratamento pra cachorro, bebê ou espada de São Jorge.

Resta saber, agora, o que vai ser feito de tantas caixinhas extra do remédio. As matérias publicadas no meio do ano passado diziam que os estoques do Exército brasileiro eram tão surreais que havia cloroquina suficiente para abastecer a nação por 18 anos ininterruptos.

São cerca de 1,8 milhão de comprimidos que, agora, depois que todo mundo entendeu que não existe tratamento precoce para Covid-19, só vão ter vazão se o Brasil inteiro contrair malária. Ou desenvolver lúpus.

Daí fica a pergunta: que é que se faz com tanta cloroquina? Quem frequenta estas bandas para xingar colunista e escreve “mito, mito, mito” na caixa de comentários certamente sugere que eu pegue a caixinha e enfie onde o sol não bate.

Primeiro que sou tão fiel ao isolamento social que aqui o sol não bate em lugar nenhum. A dermatologista até pediu reposição de vitamina D. Segundo que, obrigada pelo interesse, mas não vai estar rolando. Sou da escola que entende que pimenta, refresco e remédio são coisas que os outros definem sozinhos onde e como pretendem usar.

O questionamento persiste. A solução mais óbvia e fácil seria usar todas essas caixinhas para fazer maquetes escolares com muitos prédios cheios de estilo. Umas unidades sozinhas de pé, outras deitadinhas e empilhadas. Algumas recortadas. Mas tudo formando uma cidade imensa, com plaquinha na frente escrito “Bem-vindos à Cloroquina”.

Mas a gente sabe que o governo não gosta de obviedades ou facilidades. Vai preferir soluções mais desafiadoras ao problema do estoque entupido. De repente uma boa era pavimentar as ruas esburacadas com as embalagens. Com esse tanto, resolvia o problema das 27 unidades federativas inteiras, e ainda sobrava.

Por falar em asfalto, valia quem sabe construir com caixinhas uma ponte ligando o Brasil a algum lugar bonito do mundo. Ou transformar o papelão em aço, e desenvolver trilhos para mais ferrovias. Quem sabe fazer metrô com a cloroquina e melhorar a vida de quem precisa de transporte público nas capitais.

Podia construir escolas de cloroquina. Hospitais. Incinerar tudo e, com as cinzas, moldar novos professores, médicos, moradias populares, universidades, livros, respiradores, cédulas de R$ 200, acesso à cultura, saneamento básico, polícia que não mata. Vai ver que, se enfileirar 1,8 milhões de comprimidos, dá até para reimprimir a Constituição.

E, se o governo começar a achar problema, basta encontrar alguém que tope, e então armar a venda de todas as toneladas encalhadas. Com o dinheiro arrecadado, a gente compra vacina pra todos os brasileiros, e ninguém mais vai precisar morrer de Covid.

A única parte difícil é que haja um país tão otário quanto o nosso. Se não surgirem interessados, quem sabe dá pra inventar uma nação nova no mapa, todinha feita à base de caixinhas de cloroquina.

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Houston, I have a problem https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/15/houston-i-have-a-problem/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/15/houston-i-have-a-problem/#respond Fri, 15 Jan 2021 10:00:24 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/sono-2-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=941 Filhos adolescentes são uma dádiva, porque fazem você celebrar materialmente a passagem do tempo, ficar feliz em acompanhar de perto o desenvolvimento da personalidade de alguém, agradecer ao universo pela bênção de ser digno de presenciar milagres. Mas filhos adolescentes também são insuportáveis. Enlouquecedores. Invejáveis.

Eu morro de inveja do cara de 12 anos que mora comigo. Primeiro porque ele tem mais colágeno do que eu conseguiria comprar na minha dermatologista. Segundo, porque ele não dorme, ele desmaia. Pense em alguém que não tem problema pra pegar no sono, nunca. E que, pra acordar, só com balde de água fria e três Pai Nosso.

Na quarentena, enquanto ele sonha profundo, eu desenvolvi uma relação doentia com o sono. Primeiro, não conseguia que ele chegasse. Acabei com o estoque de antialérgico da casa. Depois, fui para drogas mais pesadas, e comecei a comprar escondida do marido cartelinhas de Dramin a cada visita à farmácia. Quando vi, estava aceitando frascos de melatonina de uma amiga.

Quando acabaram todos os tipos de comprimido disponíveis, entrei em pânico. Será que eu seria capaz de dormir novamente, sem a ajuda de um negocinho? Claro que não. Eu tinha perdido o dom. Procurei oficinas. Lives. Entrei em um curso online sobre como pegar no sono e fazer amigos enquanto durmo. Fracasso. Segui acordada e sozinha.

Um dia, o jogo virou. Passei a sentir um cansaço tremendo sempre depois das oito da noite, e uma vontade desesperadora de me cobrir com um lençolzinho cheiroso, de luz apagada. Meu problema agora era que eu não conseguia mais me manter desperta no horário que o resto da casa funcionava.

Os tambores do índice do Netflix viraram minha canção de ninar. Antes mesmo que a família pudesse dar play no episódio do dia, eu já estava aconchegada em algum cantinho do sofá, com a cara apoiada no braço. Quando alguém se dignava a me chamar, dando um chacoalhão no ombro, o apartamento já estava todo escuro, e estou certa de que todo mundo ficava puto comigo.

Fui atrás de ser uma pessoa melhor. De equilibrar os hábitos e nem tanto morrer exausta, nem tanto viver zumbi na madrugada. Passei a me programar para ir para a cama em um bom horário, largar as telas, ler um bom livro. Embarcar numa noite tranquila de sono reparador até que o despertador tocasse.

Mas dei pra acordar com dor no ombro. Você já se relacionou com alguém bonito? Dá vontade de adormecer olhando pra cara da pessoa, quase um estímulo para os sonhos bons. Só que o problema é levantar na manhã seguinte com os trapézios estraçalhados depois de oito horas de pressão.

Entendi que a raiz dos meus problemas estava no travesseiro. Essa merda aqui, que não troco faz anos, estou ficando mais torta e mais velha por causa dela, aposto. Era urgente comprar um novo, e não podia ser pela internet. Me ensinaram que travesseiro e colchão a gente vai na loja para experimentar.

Deitei de calça jeans, máscara e óculos numa cama que ficava bem no meio do showroom. Provei três modelos, todos com a etiqueta na embalagem indicado que eram as melhores opções para quem, como eu, dorme de lado paquerando o parceiro. Escolhi o mais duro, mais alto, e mais barato dos três. Dinheiro não nasce em árvore.

Para a primeira noite, me arrumei como se fosse transar com o travesseiro. Passei creme e botei perfume. Peguei um shortinho bem minúsculo na gaveta dos pijamas. Joguei fora o plástico que dizia que, dentro daquela espuma, havia tecnologia da Nasa. Eu sei de que Nasa eles estão falando. Ela é mais Marcos Pontes do que agência americana. Mas, mesmo assim, eu estava pronta.

Foi quando Houston, we have a problem. Acordei com torcicolo. E o torcicolo me deixou mal-humorada, e quando eu fico mal-humorada eu perco ainda mais colágeno. Gastei 130 realidades para começar um dia velha e me sentindo pior do que me senti durante toda a quarentena, desde a fase do Dramin até o cochilo no começo do Netflix.

Agora, escrevo este texto sentada sobre o travesseiro novo. Porque, se o Código do Consumidor diz que eu não posso devolver um item no qual já tenha esfregado o escalpo, a solução talvez esteja em tentar amaciá-lo com a bunda.

Ou isso, ou trocá-lo na surdina pelo travesseiro do meu filho. Para um adolescente saudável, não faz a menor diferença se debaixo da sua cabeça o recheio é da Nasa, de plumas, de espuma, ou de um pacote inteirinho de Cheetos.

 

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2020, um ano sem saliva https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/31/2020-um-ano-sem-saliva/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/31/2020-um-ano-sem-saliva/#respond Thu, 31 Dec 2020 11:00:09 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/bobina-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=908 Comecei (talvez tarde) a postar no Instagram uma retrospectiva das matérias mais legais que fiz em 2020. Percebi que não ia dar tempo para uma publicação diária cobrindo os doze meses, especialmente porque a primeira delas foi ontem e hoje o ano já acaba, mas, enfim, o que importa ao ser humano mesmo é a boa intenção e não a orientação espacial em si.

O objetivo da série de reportagens nunca foi só a autopromoção descarada, vejam como sou boa no que faço, mas também usar as redes sociais como uma espécie de museu de mim mesma caso eu venha a morrer ainda nesta quinta-feira, ou mesmo já no começo de 2021.

Afinal, o coronavírus, o desgosto e a velhice são destino inevitável para todos – a única coisa que a gente tem certeza que democraticamente não virá para nenhum brasileiro é a porra da vacina.

Este 2020 foi um canalha, como diz minha mãe, essa parte é inegável. Mas houve um momento dele que guardarei feliz para sempre na memória, e que eu toparia, para revivê-lo, até mesmo entubar outro 2020 a seco se preciso fosse: minha participação no programa “Roda Viva”, da TV Cultura.

Escalada para representar esta Folha na entrevista com a escritora Nélida Piñon, experimentei emoções variadas. No dia do convite, chorei, emocionada. Na semana seguinte, tive insônia, o que ajudou no projeto de reler tudo que precisava. Na véspera, tive dor de barriga. E, no dia propriamente dito, achei que fosse enfartar seis vezes.

Na sala de maquiagem, a gente fica se achando incrível, porque os funcionários fazem um trabalho espetacular. No cafezinho com a Vera e os outros colegas, antes de entrar no estúdio, tudo parece de novo sob controle, porque é preciso apenas repassar o roteiro de perguntas.

(Meu analista tinha dito que era para eu levar apenas cinco perguntas e improvisar o resto lá, porque mais que isso, assegurou ele, seria sintoma de neurose. Minha lista tinha 24 questões e duas faixas bônus.)

Porém, na hora que toca a musiquinha de abertura do programa, e aquela vinheta gira nos monitores pela primeira vez, ali eu achei que fosse vomitar de nervoso. Ou, no mínimo, cuspir um pedacinho do coração pela boca.

Se no Roda eu estava deslumbrante, nas minhas idas ao supermercado em 2020 eu devia parecer um trapo. Um dia, no corredor das geladeiras, topei com um dos colunistas mais profícuos aqui deste jornal, e que me contou, entre um iogurte e outro, que já estava de saco cheio, que tinha medo de ficar sem dinheiro, sem a filha, sem cabelo, sem saúde.

Horas depois, o colunista me escreveu no WhatsApp. Oferecia ajuda para o caso de eu estar sendo agredida pelo namorado que ele havia acabado de conhecer lá no mercado, ele não sabia se podia confiar que se tratava de um cara bacana, mas que no fim das contas aquelas manchas roxas que eu tinha no olho o haviam deixado preocupado e em estado de alerta.

Eu só tinha decidido que naquela semana não passaria mais o corretivo para olheiras. Grande erro. Eu agora parecia alguém que precisava de um médico, ou da polícia. No Pão de Açúcar, vivemos também outro momento notável de 2020: quando fomos todos desafiados a abrir saquinhos de hortifrúti sem usar saliva na ponta dos dedos.

Se não pode tirar a máscara para nada, obviamente não dá para cuspir na mão em público. Conheci, nesses 300 dias de isolamento, mercados que já deixavam várias sacolinhas abertas e dispostas nas gôndolas para os clientes. Uns fofos.

Em outros, consumidores deram show de técnica ao esfregar o plástico entre as mãos, para vê-lo, aquecido, se abrir como uma flor de primavera. Comigo, o que funcionou foi pingar álcool gel para umectar as digitais, imitando a baba de maneira fidedigna e eficaz, e abrir os saquinhos aos milhares diante de hordas de fregueses incrédulos.

Foi assim que enchi meus carrinhos com ingredientes infinitos para as milhares de receitas que resolvi executar em casa, no início da pandemia, quando eu ainda tinha paciência para cozinhar três vezes ao dia.

O passar dos meses, no entanto, me transformou de Ana Maria Braga em sócia do Rappi. O aplicativo assumiu a tarefa de me manter viva trazendo insumos necessários à manutenção de uma alimentação regrada: a cada uma hora, uma besteira calórica ingerida. Sem falhas.

Fomos, de fato, a extremos neste 2020. Pulamos de gastadores compulsivos no Mercado Livre a poupadores desesperados no último bimestre. Com a escola das crianças instalada em casa, nos transmutamos de Drauzio Varella paciente em pais que evocam o Homem do Saco no recreio.

Em março a gente não conseguia dormir. Em novembro, a gente não conseguia acordar. A vida fitness do primeiro semestre deu lugar ao sedentarismo mórbido no segundo. O plano de endurecer a bunda já foi realocado para depois da aplicação da segunda dose de Coronavac – ou seja, nunca mais nessa existência humana.

E, ainda que essa instabilidade não nos orgulhe, se houve maiores guerreiros que a gente foi neste ano, desconheço. Somos uma exibição em looping do meme da Deise bêbada: levantando, vivos, e ainda fazendo caridade.

Estamos numa agonia imensa para voltar a passar saliva nos saquinhos, nos dedos, nos amigos, em desconhecidos, é verdade. Mas, depois desse desafio que foi 2020, a gente aguenta qualquer coisa, inclusive esperar mais tempo.

Disseram que a palavra do ano foi resiliência. Se não foi, devia ter sido, caso houvesse concursos para eleger coisas e definir períodos. Que em 2021 a gente continue sabendo se adaptar e encontrar saídas.

Feliz ano novo.

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No fundo do poço https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/11/no-fundo-do-poco/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/11/no-fundo-do-poco/#respond Fri, 11 Dec 2020 10:00:27 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/elevador-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=884 Democrática que é, a psicanálise explica todo mundo. Comigo não ia ser diferente. Está lá nos livros, não sei exatamente se foi Freud, Winnicott ou Jung quem escreveu, não importa, mas a literatura clínica dá conta, de maneira muito clara, de mostrar porque é que a gente é assim desse jeito.

Na viagem para o Uruguai, por exemplo, quando não tinha uma vírgula fora do lugar, o voo saindo no horário, e eu nem pagando pelas passagens estava, não havia motivo algum para entrar em pânico quando as portas do avião finalmente se fecharam e a aeromoça anunciou para breve a decolagem.

Mas eu surtei e achei que fosse morrer sufocada.

Acontece geralmente se eu começo a prestar atenção demais no lugar em que pode ser que o ar acabe. Prevendo que vou entrar em pânico e que, como todo ser humano fora de controle, consumirei mais oxigênio, sei que – não falei? – o que havia de disponível para todo mundo respirar vai ficar sensivelmente mais escasso.

Pode ser na máquina de ressonância magnética. Em um banheiro químico. Salas de espera muito pequenas e sem janela para a rua. No Airbus, no Boeing ou no Fokker 100. E, principalmente, no elevador.

Eu não suporto elevadores. Se meu destino é abaixo do sexto andar, adoto as escadas com felicidade e vigor muscular nas coxas. Se preciso ir mais pra cima, entro na cabine tentando fingir que sou uma pessoa normal, sem neuroses descritas pela psicanálise – falhar invariavelmente acho que faz parte do quadro.

Tem um nome, isso. Chama claustrofobia. De acordo com os mestres da mente, é um mal que acomete quem tem problemas para dimensionar o próprio espaço pessoal. Pelo que entendi em estudos pregressos, e na busca que acabei de fazer aqui no Google, são (somos) pessoas que não entendem direito onde acabam e onde o outro começa.

Agora tira a gente do elevador e bota num apartamento na quarentena. Eu suporto bem a minha casa, não costumo surtar e achar que vou morrer sufocada aqui dentro. Mas, se sou um ser com problemas para perceber onde acaba o meu cotovelo e onde começa o cotovelo do outro, o confinamento em família não parece promissor.

Esse quarto aqui é o meu ou é o da criança? Essa almofadinha no chão é minha ou é da gata? Foi meu marido quem mijou na tampa da privada ou fui eu, com a minha inveja do falo, que esqueci para trás essas gotinhas?

A dentista fica no oitavo andar de um prédio perto da Avenida Paulista. O elevador é daquele tipo moderno, com espelho na parede do fundo, e portas sem qualquer tipo de ventilação – o ar condicionado de última geração instalado no teto dá conta do recado. Uma caixa metálica completamente vedada, puxada por cabos de aço, com um poço de 2,5 metros ao fundo.

Bastante atraente. Pela primeira vez na vida, considero como seria ficar presa no elevador sem entrar em pânico. Talvez meu filho precise de mim. Essa semana é de fechamento do bimestre e estudo pra provas. Meu marido nunca lembra onde a gente guardou a coleira da cachorra depois do último passeio. Será que eles se viram bem sozinhos em casa?

Antigamente, eu imaginava que os adultos gostavam de ficar sozinhos em casa porque aproveitavam para cozinhar pelados, tirar meleca à vontade, beber todo o estoque de vinho, assistir filme pornô em um telão na sala. Cresci, e descobri que é tudo isso mesmo que eles fazem.

Dentro da bolsa, ainda no térreo, vejo que veio comigo o último exemplar da revista piauí. Ela é boa porque costuma ter reportagens de 90 páginas de extensão cada. Também trouxe uma maçã e água. Calculo que dá para passar uma semana com conforto aqui dentro.

Aproveito enquanto ainda há sinal de celular no elevador, e abro de novo a barra de pesquisa. Acho que é uma boa hora para saber se Freud, Winnicott ou Jung escreveram alguma coisa sobre métodos para curar fobias na marra.

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Dieta para a quarentena https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/01/dieta-para-a-quarentena/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/01/dieta-para-a-quarentena/#respond Tue, 01 Dec 2020 20:23:48 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/kefir-320x213.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=878 Os entregadores por aplicativo existem para ajudar àqueles que, por um motivo muito sério, não podem sair de casa para buscar suas próprias compras. Essa semana, por exemplo, chamei um Rappi para me trazer pacotes de Doritos e Pingo D’ouro sabor picanha porque estamos em uma quarentena e o governador mandou não sair.

Eu tinha urgência. Todas as tardes da quarentena me bate uma vontade incontrolável de comer besteiras, quase sempre besteiras salgadas. Mas obviamente não sou mais criança, aprendi desde cedo que é preciso ter autocontrole, e por isso me cuido e só como salgadinho nas tardes de sábado e domingo. De segunda a sexta, faço eu mesma minha pipoca.

Ontem fazia cerca de 90 graus à tarde aqui em São Paulo. Meu namorado vestiu desde cedo uma bermuda marrom e uma camiseta leve de algodão, mas mesmo assim às três da tarde estávamos os dois derretendo de calor dentro de casa, e foi por isso que sugeri a ele que tirasse a blusa, homens sempre puderam andar pelados da cintura para cima.

Ele recusou, dizendo que ficaria parecendo um sorvete de casquinha. Ele acha que ganhou e arredondou a barriga durante o isolamento. Já eu, não tenho a menor dúvida de que não é esse shortinho jeans atolado na bunda que me deixa com celulite – a celulite é minha mesmo, não veio da loja, eu mesma que ganhei comendo Doritos e Pingo D’ouro sabor picanha.

Tenho inveja de quem anda comendo direito nessa pandemia. Tem a Vera, que faz dieta low carb e quando vai ao restaurante japonês consegue pedir tudo sem arroz. Tem a Paula, que faz jejum e passa doze horas só tomando água. Tem o Danilo, que posta foto de salada com grãos e combina as cores de tudo que põe no prato.

Perguntei como é que ele consegue um negócio desses. Ele avisou que aprendeu com a medicina ayurvédica, porque, depois de passar oito semanas comendo só mamão no café da manhã e feijão no almoço, alguma coisa ele tinha que ter aprendido mesmo. Pergunto o que é que dá para fazer no meu caso.

Ele sugere que eu comece com o kefir. O kefir são grãozinhos feitos de microorganismos que, entre outras coisas, ajudam a manter o intestino saudável – e, se meu intestino está guardado dentro desta barriga imensa que adquiri durante a quarentena, mal não pode me fazer.

Só que, ele explica, o kefir não só tem um gosto ruim (e ele imita o gesto que faz quando bebe, com o nariz tampado e os olhos espremidos), como também dá um trabalho gigante para cultivar.

Tem que ficar dando comida, deixar descansar, trocar, limpar, cuidar para não morrer. O kefir é praticamente igual ao meu filho. Talvez ele também precise fazer aula virtual. Vou ter que pensar sobre qual o limite de horas que dá pra deixar o kefir jogando videogame. E, se o kefir quiser baixar o Tik Tok no celular, vai ter que aceitar que eu coloque controle de conteúdo.

Eu queria ter alugado uma bicicleta ergométrica para deixar na sala durante o isolamento. Parece que não tem espaço suficiente, e era ou a bicicleta ou meu namorado – escolhi ele porque transar com uma ergométrica não deve ser muito prazeroso. Fora que ele faz o melhor misto quente da cidade.

Agora voltei a correr. Boto a máscara, os tênis novos, e saio pelas ruas do bairro sonhando em perder dois quilos por passada. Uma vez escrevi, em uma outra coluna que tive, um texto tirando onda das pessoas que corriam. Eu também era uma pessoa que corria, mas as outras pessoas que corriam não entenderam meu senso de humor e autoironia e ficaram muito bravas com as minhas piadas.

Talvez eu hoje em dia não tenha fôlego e seja um fracasso nas pistas justamente por causa da praga que o pessoal que corre rogou pra mim. Devem ter feito uma amarração esportiva, trago sua contusão em três dias ou o seu dinheiro de volta.

Eu lembro que um leitor muito puto escreveu para o email da coluna e me ameaçou de morte. Eu respondi perguntando se ele pretendia me atropelar com o Mizuno Wave dele. Deve ter sido isso, ando achando, que eu ri dos outros nos anos passados e agora Deus anda rindo de mim com essa celulite toda e o shape de casquinha de sorvete.

Tem dias que dá preguiça ser adulto. Dias em que o bom mesmo era continuar criança, pra comer muito Doritos e Pingo D’ouro sem acumular gordura. Ou quem sabe o bom na verdade era ser kefir, porque aí tinha alguém me cuidando e ainda me comendo todo contente no final.

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Escritores de bilhão https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/11/20/escritores-de-bilhao/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/11/20/escritores-de-bilhao/#respond Fri, 20 Nov 2020 11:07:26 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/jabuti-320x213.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=874 José Saramago disse que só existem dois tipos de escritor: os que escrevem, e os que não escrevem. Quem me falou isso não foi o Google, foi o Drauzio Varela. No meio da quarentena, inventei de falar com escritores em um podcast, e o doutor era um dos primeiros da lista. Desde então eu fiquei querendo citar esse Saramago em algum lugar.

O grande dia chegou.

Queria saber se o Saramago topa abrir uma exceção e se corrigir pra dizer que na verdade não são só dois os tipos, mas três. Tem o escritor que escreve, tem o escritor que não escreve, e tem o escritor que escreve até a mão cair exausta na hora do pôr do sol e do começo da novela.

Tem quem diga que jornalista não é escritor de verdade. Pois eu respondo que a gente é escritor e escritor até mais gabaritado pro ofício. A gente sabe entrevistar pessoas, a gente sabe costurar informações de milhares de fontes, e, sobretudo, a gente sabe trabalhar com prazos escrotos.

Se eu somar tudo que escrevi esse mês, dá bilhão. Botando tudo empilhadinho impresso, sobe até as calças do Borba Gato. E, se espalhar no chão todas as linhas, a gente desce a serra de São Paulo a Santos, e estica o chorinho até a Ilha Porchat.

Depois que você passa 20 anos escrevendo, algumas partes do processo entram no modo automático. Coisas deixam de ser difíceis como eram no começo. Dá para bater trechos de textos ouvindo música, por exemplo, coisa que o Chico Buarque (Chico Buarque, hein) já disse em entrevista que ele não consegue fazer.

Se precisar de ajuda, Chico, me aciona. Mostro sem grilos que “Faroeste Caboclo” pode comer solta e inteirinha no fundo que mesmo assim a gente cria coisas ótimas. Especialmente depois de muito treino forçado por causa da profissão.

Tem situações, no entanto, que nunca vão deixar de ser tensas. Como quando seu editor te pede uma matéria com 6 mil caracteres. Escrever 6 mil caracteres significa em média escrever 24 parágrafos. Segura na minha mão e me abraça.

Não é nem preciso dizer que sempre são 24 parágrafos pra hoje, né? E não para janeiro de 2023.

Daí acontece assim: você faz as entrevistas, transcreve as gravações para o papel, aquilo vira uma infinidade de palavras, parece que vai dar e dar com folga.

Mas você começa a ler o que os entrevistados falaram, percebe que talvez não consiga salvar muita coisa, e automaticamente você entra em pânico porque, óbvio, aquilo não vai dar 6 mil toques nem ferrando.

Você pensa em pedir ao editor que diminua um pouco o espaço. Chora. Às vezes precisa contar uma história triste. Pode ser que ele te atenda. Tem dias em que ele vai fazer isso numa boa, em outros ele só vai te mandar uma resposta curta: 5 mil.

E você sente vontade de celebrar, porque afinal de contas agora são apenas 21 parágrafos e meio pra finalizar. E isso te dá até um gás, um joie de vivre, você se sente o cidadão mais sortudo do mundo, o jogo virou, e ele está a seu favor.

Só que agora não cabe. Você não só já escreveu 5 mil, como escreveu também os 6 mil originais, e ainda passou deles há muito tempo. Sua tarefa agora, além de revisar e procurar deslizes, é cortar 1.900 toques. Você sente vontade de dormir e só acordar quando voltar a ser criança.

Nós, jornalistas escritores de bilhão, somos verdadeiros heróis do Word. Deram um Jabuti pro cara que não digita ouvindo música, e um Nobel pra alguém que não lembrou que a gente existe. Estou curiosíssima para saber o nome do prêmio que vão criar pra dar pra gente.

 

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Me sinto pronta https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/11/13/me-sinto-pronta/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/11/13/me-sinto-pronta/#respond Fri, 13 Nov 2020 17:46:11 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/exército-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=862 Tenho uma prima que foi soldado. A gente aqui no Brasil recebeu a carta da mãe dela, todo mundo ainda muito criança, e ela, que já tinha idade pra muitas coisas, contava que entrou para o exército junto com o irmão, isso lá em Israel. Lembro que, tonta, pensei que ela ia levar um tiro na primeira semana. Mas que morrer de farda no exterior parecia chique o suficiente pra fazer valer a pena essa experiência.

Ela voltou ao Brasil alguns anos depois, por um período. Já tinha saído da corporação, lutava krav-magá, e agora era segurança particular da família dona de um banco muito milionário, moradora do bairro do Morumbi.

Em um dia de folga, resolvemos dar uma volta de carro atrás do Jóquei Clube. Demos de cara com uma travesti com o pinto de fora, duas da tarde, sol a pino. A soldado chorou. Eu dei ré correndo. Entendi ali que ser do exército não valia de nada quando o bicho pegava realmente.

Parece, agora, que o Brasil declarou guerra aos Estados Unidos. O presidente avisou que quando acaba a saliva tem que ter pólvora, e eu não tenho certeza se consegui entender direito a frase, até porque ele fala que a gente não precisa usar a pólvora, só mesmo saber que tem, e, enfim, o importante é saber que, caramba, vai ter guerra. Real, oficial, sangrenta.

Me sinto pronta. Não vou amarelar diante das grandes ameaças como fez minha prima e a piroca do Morumbi. Eu vou entrar para ganhar. Já estou com a roupa de ir, e ela tem tudo que uma grande soldado brasileira precisa para enfrentar com bravura os ianques: camisa verde e amarela, bandeira amarrada que nem capa, máscara do véio da Havan para despistar o inimigo.

Ainda estou no aguardo das coordenadas do comandante, mas imagino que começaremos a invasão por Miami, primeiro porque é bom entrar em território familiar, e segundo porque, de quebra, com tudo sitiado, barricadas, latão de lixo pegando fogo nos cruzamentos, pode ser que role um pit stop no outlet da Adidas.

Inclusive imprimi a tabela de conversão de tamanho para tênis e outros calçados, e vou levar dobradinha no bolso da pochete camuflada junto com meu canivete. Agendando tudo com cuidado, a gente ainda chega na época da Black Friday.

Já me vejo apertando no chão com minha botina Vulcabrás a loira cabeça do inimigo. Mandando que ele implore por meio litro de coca diet, ask pra sair, ou eu mostrarei meu lado mais sórdido de brasilidade viril. Quem é a palhaça aqui agora? Quem tá falando com otário aqui é você, ô, gringo.

Vou entrar chutando a porta daqueles Starbucks todos. Arregaçar na essência de caramelo porque agora é tudo nosso. Todo dia vai ser dia de maldade, de levar sem pagar um enxoval inteiro pro meu afilhado na loja da Gap. De furar fila da Apple na crueldade, pilhar maquiagem na mão grande e trazer de baciada pras amigas.

Quem foi que disse que precisa saber a cor exata da base e só trazer uma caixinha? Aqui é Lancôme, porra, aqui é Brasil!

Servirei com honra e dedicação. Mostrarei minhas técnicas todas de embate corporal adquiridas por anos assistindo Naruto. Que honra, senhor presidente, estar em plena forma física no momento em que o país mais precisa de mim. Aqui missão que é dada é sempre missão cumprida.

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O pivô https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/10/27/o-pivo/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/10/27/o-pivo/#respond Tue, 27 Oct 2020 20:25:38 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/bala-fini-dentadura-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=840 A distância de São Paulo para Assunção, no Paraguai, é de mais de 1.300 quilômetros. De carro, isso se traduz em 18 horas na estrada. Minha mãe fazia essa viagem uma vez por mês, quando eu era pequena, sentada em um ônibus de sacoleiros que saía da frente do antigo prédio do Detran, na Avenida 23 de maio. Ela vivia exausta. Teve uma vez em que voltou com pneumonia, foi internada, e nunca mais visitou o Paraguai na vida.

Minha mãe não ia para Assunção porque achava o rolê legal pra caralho. Ela ia porque a patroa dela pagava pela viagem, e dava um adicional para a minha mãe trazer malas e malas com produtos importados para serem vendidos na papelaria da Paula. A Paula era a patroa da minha mãe. E, se esse fosse um blog com mais engajamento antropológico, eu certamente ia falar da relação de exploração da Paula sobre a Tereza, mas hoje eu vou focar nas balas Fini.

As balas que a minha mãe trazia do Paraguai em uma das malas da Paula, junto com apontadores, cadernos, estojos divertidos, e que me dava sem precisar prestar contas para a patroa porque eram compradas com o próprio dinheiro, na verdade não eram da Fini, mas sim da Haribo, uma marca alemã que era sucesso em balas de goma até a Fini chegar e dominar o mercado todo.

Não sei se por questões afetivas ou só mesmo pela textura de borracha, sempre fui fissurada em balas Fini/Haribo. Na minha infância só existiam os ursinhos coloridos, mas hoje meus modelos favoritos são, em ordem decrescente, 1) as bananas, 2) os beijos de morango, 3) as amoras roxa e vermelha, 4) minhocas.

Comprei um pacote de minhocas neste fim de semana, para comer escondido do meu filho – que já tinha ganhado um saquinho só para ele, calma, Conselho Tutelar -, durante nossa viagem ao sítio da família. Mastigando uma cabecinha, meu dente restaurado despencou.

Ele já tinha feito isso antes, então não houve o espanto comum às primeiras vezes. Mas quem já teve dente quebrado ou caído sabe o tamanho do pesadelo, e ele aumenta muito quando você está isolado no meio do mato, a praticamente uma viagem de sacoleiros ao país vizinho de distância.

Chorei. Dei chilique. Falei que não havia mais sentido continuar sendo jornalista, que sou a pior mãe do mundo, que ia parar de reciclar meu lixo, porque claramente o universo me mostrava, com um pivô despencado, o tipo de ser humano desprezível que me tornei ao longo dos anos.

De volta a São Paulo, evitando sorrisos e alimentos sólidos, agendei consulta com uma dentista indicada por conhecidos. Não havia sentido voltar ao profissional que construiu a prótese que se solta com tanta facilidade (minhocas de gelatina definitivamente não são um grande desafio digestivo), então era preciso arriscar alguém novo.

Você é jornalista, ela pergunta, enquanto eu já não podia responder mais nada além de ram-ram ou ã-ã. Pois eu atendi o Otavio por toda a vida, emendou, o Mesquita, não, minto! O Otavio Frias. Que surpresa feliz.

Ela entendeu quando, com a boca bem aberta, botei para funcionar a garganta e comentei que o Otavio foi meu chefe. Grande cara, educado, um professor (essa parte talvez tenha ficado incompreensível).

A secretária puxou do bolso do jaleco o celular.  Leu a última mensagem que ele mandou para a doutora. Otavio contou que ia ao hospital rapidinho, para tratar de um problema simples, e queria saber como cuidar direito das gengivas durante a internação.

Otavio só usava caneta Bic preta para assinar os cheques – aceitava azul em situações extremas, mas, se não fosse Bic, preferia pagar por transferência. Contou uma vez, sentado na cadeira – talvez tenha usado a garganta, também -, que trabalhava com jornal. A secretária achou que ele tinha uma banca. E, na sala de espera, ficava lá como qualquer um, e não como a celebridade que era – a equipe toda àquela altura já pensava que ele era muito famoso.

O motorzinho nesse momento já alcançava metade do caminho rumo ao meu cérebro. Algo como uma escala em Londrina, saindo de São Paulo e indo para Assunção. Mas, mesmo sem anestesia nenhuma, e só com recomendações breves de dois conhecidos, eu já não sentia mais dor alguma. Agora eu era só relaxamento e confiança. O Otavio era mesmo bom de escolher dentista.

 

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O segundo governo Bolsonaro https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/09/30/o-segundo-governo-bolsonaro/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/09/30/o-segundo-governo-bolsonaro/#respond Wed, 30 Sep 2020 19:46:50 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/Bolsonaro-Pedro-Ladeira-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=826 Tenho visto bastante gente reclamando deste segundo governo Bolsonaro. Dizem que o presidente é inábil, ignóbil, incrivelmente instável. Mas só se espanta com o clima de suspense e apreensão de agora quem não viveu o primeiro governo Bolsonaro. A gente, que estava lá, hoje em dia não se surpreende com mais nada.

Naqueles tempos, as ameaças eram bem comuns. Coisas tipo essa frase dita no começo da semana, sobre o líder estar à beira de tomar “aquela decisão”. Fica todo mundo com medo, né. Vai saber qual decisão é essa. Mas, o pessoal que viveu aquele primeiro governo garante: quem ameaça demais, pouco faz.

Era até um ditado na época do primeiro governo Bolsonaro. Que, pra quem não se lembra, aconteceu não especificamente em um momento do país, mas, sim, em um momento específico da vida da gente, que hoje cresceu e virou mulher.

O primeiro governo Bolsonaro podia até não ter o Bolsonaro, mas tinha um monte de homem igual ao Bolsonaro tomando conta de tomar conta da vida da gente. E se ocupando, junto com isso, de meter terror como forma de liderar.

Quem foi menina adolescente perto de figuras masculinas dominantes pode se declarar sobrevivente do primeiro governo Bolsonaro. Um período histórico em que palmada era coisa de frouxo, e onde chefe de família bom mesmo só trabalhava com chinelo pra cima.

Volta e meia a população que viveu este período se sentia intimidada: se as coisas não mudassem, ia ficar todo mundo sem figura paterna. Ou o pessoal andava na linha e acabava com a baderna, ou o primeiro governo Bolsonaro ia mostrar o que era bom pra tosse.

Daí que a gente, menina, aprendeu a tossir escondido. As mais espertas desenvolveram técnicas de guerrilha. Houve quem se exilasse para além das fronteiras, na casa da avó ou na de uma amiga. Onde fosse possível evitar um dos piores símbolos do primeiro governo, além das ameaças e da violência gratuita: as piadas sem graça.

Todo mundo era alvo, naquele mandato, das anedotas inadequadas. Mas, a exemplo do que aconteceria anos depois, no segundo governo, os primos negros das meninas, as amigas lésbicas das meninas, os vizinhos gays das meninas, e os ancestrais índios das meninas, assim como as próprias meninas, eram os focos favoritos da malícia.

O primeiro governo Bolsonaro podia até não ter o Bolsonaro, mas tinha aquelas figuras paternas iguais ao Bolsonaro, e vinha ainda, de brinde, com alguns tios escolhidos para os ministérios.

Quem viveu naquela época costuma lembrar o tio da pasta da mulher e família, que mandava todo mundo pra igreja no domingo e falava que aborto aqui em casa nunca, e também o tio responsável pelo meio ambiente.

Era geralmente dele que partia a ideia de mandar prum sítio os cachorrinhos que envelheciam. Ou a decisão de cimentar o gramadinho do chalé que a população mantinha pras férias em família no litoral.

Em resumo, não é que o segundo governo Bolsonaro seja menos complicado para quem viveu o primeiro. Se submeter a figuras masculinas de liderança desequilibradas emocionalmente nunca é fácil, seja na política ou dentro de casa. É só que o fato de ter sobrevivido a estados particulares de exceção confere ao sujeito a estranha mania de ter fé nas coisas.

Porque se o tio crente, o avô racista e o pai agressivo conseguiram mudar, resta uma pontinha de esperança de que todo o resto também mude. Talvez não neste mandato, pode ser que realmente não dê mais. Mas ao menos que seja a tempo de evitar a terceira edição do governo Bolsonaro.

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Eu, que sou melhor que os outros https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/09/09/eu-que-sou-melhor-que-os-outros/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/09/09/eu-que-sou-melhor-que-os-outros/#respond Wed, 09 Sep 2020 20:47:34 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/janela--320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=794 A casa do muro preto passou mais de ano com placa de “aluga-se”. Ninguém se interessou em visitá-la junto com um dos corretores que às vezes apareciam para abrir as janelas e deixar o espaço ventilar um pouco. Talvez a pintura escura medonha assustasse os potenciais inquilinos. A varanda parece ótima, e a garagem espaçosa deu pra ver quando retiraram a última mudança.

Mas aí teve um dia em que chovia muito, e mesmo assim um rapaz subiu as escadas laterais cobrindo a cabeça com uma pasta verde de documentos. Achei meio estúpido usar documentos para evitar molhar o cabelo. E ele saiu de lá meia hora depois, bateu o cotovelo com o cotovelo da moça que destrancou a casa para ele ver, e uma semana depois encostou ali um caminhão de carreto.

Entre os novos moradores tem um cachorro cinza e uma mulher que gosta de tomar sol enquanto lê. E que parece não se incomodar com a pintura preta. No fim de semana, apareceu uma outra, talvez mais jovem, ou só mais animada, não deu pra saber ao certo. Ela tocou a campainha da casa vizinha onde todo mundo sabe que moram um pai, uma mãe, uma garota deficiente mental e um homem quase jovem que grita com todos eles.

O homem que grita desceu para abrir o portão, e no meio do caminho tirou a camisa. Ficou só de bermuda para dar as boas-vindas à moça animada, e falar que este é um bairro excelente onde na rua de cima tem feira toda quarta, e quando venta caem flores amarelas no chão. Fica uma beleza, eu ouvi o homem dizendo, aqui do meu apartamento do outro lado da rua.

Ele mostrava o sovaco enquanto falava das facilidades de Perdizes. Ela ria, e passava a mão no cabelo. Antes de dizer tchau, ele mostrou que ama muito a irmã deficiente e deu um beijo e um abraço nela, só para a moça animada ver aquilo e achar bonito.

Quando a vizinha já tinha voltado para a casa preta, o homem vestiu a camisa de volta e foi até o carro dele pegar qualquer coisa lá dentro. Voltou rápido, e passou sem parar pela irmã, que tinha ficado esperando sentada no último degrau da escada. Deu pra ouvir ele em seguida gritar com a mãe, antes que eu resolvesse que já estava bom de observar os outros pela janela.

Sempre usei como desculpa a profissão quando alguém me acusava de prestar muita atenção na vida alheia. O jornalismo parecia uma boa justificativa. A gente tem que estar atento o tempo todo, vai que aparece alguma notícia. Sou escritora, as observações me inspiram.

Mas sei que, mesmo se eu fosse economista e trabalhasse na Bolsa, ia gostar de xeretar as coisas dos outros.

Acho que, no fundo, todo mundo é meio assim, também. Um tanto bisbilhoteiro. A gente tem gosto em tomar conta do que os outros fazem porque não se orgulha do conteúdo da nossa própria vida, e procura lá fora as coisas que gostaria de ter aqui dentro. Mas, também porque, intimamente, a gente se acha sempre melhor que os outros, mesmo dizendo que os outros são uns bostas.

O homem recebe a vizinha nova sem camisa e isso me parece um convite ao julgamento. Devo achar que, no lugar dele, eu faria diferente – muito melhor, provavelmente. Um monte de gente fura a quarentena nas praias e nos bares, todo mundo chama de absurdo, mas acho que na verdade a gente adora.

Porque, quando o erro dos outros é mais visível, os nossos deslizes tendem a passar despercebidos. A faxineira que tem vindo uma vez por semana. Os amigos que apareceram uma única vez, só mesmo pra dar oi, porque eles também têm feito o isolamento direitinho.

Queria eu ver se o vizinho estivesse na janela nos dias em que não tive paciência nenhuma com meu filho durante a lição de casa. Ou nas inúmeras vezes em que, deitada no sofá sem fazer nada, não atendi o telefonema de alguém que eu amo, dizendo que estava ocupada.

O segredo da iluminação de caráter deve morar em perceber que a moça está feliz tomando sol com o cachorro cinza, mas não fazer força para enxergar de longe o nome do livro que ela está lendo. Por mais que eu goste de literatura. Por mais que eu seja jornalista. Eu quero ser uma pessoa melhor e vou trabalhar por isso. Só não sei se consigo parar de detestar aquela pintura preta.

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