Do Meu Folhetim https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br Meias verdades sempre à meia luz Thu, 30 Sep 2021 12:29:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Obsessão pelo corpo delas https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/05/obsessao-pelo-corpo-delas/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/05/obsessao-pelo-corpo-delas/#respond Tue, 05 Jan 2021 10:00:51 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/corpofeminino-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=927 Um homem uma vez me confessou que tinha muita vontade de aprender mais sobre o feminismo, para conseguir se modificar de acordo com o que entendesse ser possível. Mas, dizia ele, mesmo com esse desejo, ainda era difícil encontrar quem tirasse suas dúvidas com calma, sem entender que indagações às vezes podem ser fruto do desconhecimento, e não da arrogância.

Sim, eu sei que nós mulheres não estamos bravas, estamos exaustas. E que isso transparece no reflexo que quase sempre temos diante de situações como estas, de questionamento sobre as demandas da luta feminista. Porém, ainda assim, gosto de manter em mente, em qualquer circunstância, essa conversa que tive no passado. Ela me serve como uma diretriz para atuar melhor.

E é ela quem me orienta aqui hoje, ao publicar este texto. É por ela que parto do pressuposto de que talvez seja importante explicar antes de discutir. Nos últimos dias, duas colunas também da Folha trataram, cada uma à sua maneira, do emprego do corpo feminino no mundo. Ambas foram assinadas por doutores em filosofia.

Na primeira, o assunto é aborto. A autora defende que há limites para a liberdade total da mulher decidir se quer dar continuidade a uma gravidez não planejada. Ao dizer que o feto é “a mais frágil, indefesa e inocente de todas as criaturas”, explica que não é apenas o corpo da mulher que estaria “em jogo” diante desta decisão.

Classifica como decadência moral a liberação do aborto, enquanto reconhece que estar grávida de uma criança que não se quer é uma “situação limite”. Ignora no texto questões sociais, de saúde pública e de educação. E desvia deliberadamente de explicar por que mulheres não podem decidir o que fazer com o próprio corpo, enquanto aos homens é assegurado o direito de decidir não só o que fazer consigo, mas também conosco.

Publicado algumas horas depois, o outro texto, escrito em primeira pessoa por um homem, mescla as expressões “sexo frágil”, “mulher raiz”, “lugar de fala” e “sabor de mulher” em uma narrativa que pode até dar sinais de que veio em missão de paz, e que qualquer aparente ofensa seria apenas um mal entendido de quem não compreende humor e artimanhas literárias.

Acontece que provocações neste campo do feminismo são cafonas e arriscadas demais, e, se falta compreensão de alguma natureza, ela certamente não vem da parte do leitor.

Pode parecer difícil entender essa fixação dos pensadores sobre o corpo feminino. Basta, no entanto, uma breve visita à literatura feminista para esclarecer essas origens. Naomi Wolf, por exemplo, explica com clareza em seu “O Mito da Beleza” a função que a criação de padrões estéticos universais tem no controle das mulheres pela sociedade.

E isso mesmo que –e especialmente que- se diga que um verdadeiro “apreciador tende a ter um gosto inclusivo”, sem restrições às imperfeições e diferenças. Nossa luta, mais do que nunca, não é para que sejamos apreciadas, não custa repetir.

Sendo assim, a tal da “abordagem filosófica da estética” não deveria suscitar brincadeiras, especialmente quando há não só milhares de maneiras de se louvar e respeitar uma mulher, mas, principalmente, quando há milhares de maneiras de se fazer boas crônicas a esse respeito.

Outra autora importante para assimilar a obsessão sobre o corpo feminino no mundo é Silvia Federici, muito bem citada pela colega Vera Iaconelli em coluna publicada nesta segunda-feira (4), para falar também de aborto, mas em termos absolutamente opostos – e extraordinários, diga-se – ao do primeiro texto postado no jornal com este tema, nesta semana.

Vera lembra que foi do Renascimento em diante que se intensificou o controle da sexualidade da mulher, e da gestação e seus desdobramentos. “Só à base de muita violência e séculos de doutrinação é que as mulheres passaram a se identificar com seu lugar” de submissão ao homem, escreve a colunista.

Mas, se já sabemos a origem do problema, por que optar por perpetuá-lo? Por que seguir alucinados na fiscalização do lugar da mulher no mundo, conferindo a ele peso, qualidade, valor?

É fundamental debater questões como o aborto, talvez alguém responda. Concordo, desde que se trate de fato de um debate, com um pensar crítico, e com a construção clara de uma premissa – ainda mais quando a discussão diz nascer do campo da filosofia. Para enumerar julgamentos, bons ou ruins, nunca foi preciso ter doutorado em nada.

Entendo que, como feminista, é meu dever manter a calma sempre que possível, para conseguir me engajar com profundidade na luta. Respirar e escrever, por exemplo, quando o desejo na verdade é de gritar. Foi isso que aquela conversa antiga me ensinou.

Isso, e a compreender que, às vezes, as opiniões podem sair brutas e egoístas não porque falte conhecimento ao emissor, mas porque arrogantemente lhe parece mais cômodo não ter de mostrar ao leitor de onde veio seu ponto de vista.

]]>
0
Juíza Viviane, pela última vez https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/25/juiza-viviane-pela-ultima-vez/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/25/juiza-viviane-pela-ultima-vez/#respond Fri, 25 Dec 2020 19:31:00 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/luiza-pannunzio-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=904 A noite de Natal começa com a notícia de que uma juíza foi morta na frente das três filhas pequenas, no Rio de Janeiro. O vídeo gravado por um vizinho mostra a cena, e reproduz os gritos das meninas, que imploravam para o pai parar de esfaquear Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, sentada no chão, já ferida pelo ex-marido.

Um crime premeditado, ao que indicam as investigações. Das milhares de escolhas que tinha diante do fim do relacionamento, anunciado por Viviane em setembro passado, Paulo José Arronenzi optou por um crime.

Ouço o desespero agudo das filhas da juíza enquanto viajo de volta de Santos para São Paulo. No cemitério, a quatro quilômetros da praia, dava para sentir o cheiro da maresia mesmo debaixo da chuva insistente. Parecia, ali, em um breve período, que não havia lugar no mundo em que a dor fosse mais pesada que a nossa.

Talvez a besta tenha esperado nosso sofrimento acabar para erguer a faca no Rio. Penso se um mundo com quase 8 bilhões de habitantes funciona mesmo desse jeito, com turnos de desgraça sendo alternados para garantir que, por instantes, as tormentas sejam exclusivas de alguém.

Fazia poucas horas desde que dois coveiros tinham empurrado o caixão para dentro de uma parede. No cimento cobrindo os tijolos que fecharam a sepultura, escreveram com um graveto o sobrenome da nossa família.

Debaixo do andaime onde os homens se equilibravam, dois cachorros esperam o fim do serviço, enquanto lascas de concreto molhado caem e se agarram nos seus pelos das costas. “Eles escolhem ficar perto da gente o tempo todo”, explicou um dos funcionários. “Não importam muito as condições”.

Escolher me parecia coisa reservada aos humanos. Errar nas escolhas, então, mais ainda.

Rosa Montero escreveu em “A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver” que, quando presenciamos uma morte ou um nascimento, uma brecha na ilusão brilhante da vida se abre, para que possamos enxergar o real funcionamento do mundo. Olho o caixão, os cães, a chuva. Então são estes os bastidores?

Milhões escolheram assistir o show que Caetano Veloso fez na internet, com a expectativa de abrir uma brecha na dor brilhante de uma quarentena eterna. Gosto quando ele explica que “de nada valeria acontecer de eu ser gente, e gente é outra alegria”.

Não tem sido fácil isso de acontecer de ser gente. Melhor seria ser cachorro.

Escolher, protegida na metade do corpo por um andaime bambo na quadra 80, esperar pelo fim do sofrimento dos outros, tantos outros, foram só 18 enterrados naquela véspera de Natal de 2020, e só então descobrir que talvez meu turno de martírio esteja reservado, e que pode ser que ele ainda chegue. E que seja mais duro que lascas de cimento fresco presos à pelagem.

No bloco abaixo da notícia sobre o assassinato covarde de Viviane, um link mostra imagens de passageiros aglomerados do saguão do aeroporto de Guarulhos. Viagens de Natal, de réveillon, de férias. No dia seguinte, a manchete de Natal fala que o Brasil já pode ter superado 220 mil mortos pela Covid-19.

Qual será a sensação de escolher a morte, seja a sua própria ou a de outro alguém? Como será que se decide assassinar alguém?

Uma matéria diz que, quando perguntado se se arrependia de ter esfaqueado a mãe de suas filhas, enquanto elas gritavam pedindo clemência, Paulo José “deu de ombros”, como se respondesse que tanto faz. Uma morta caída no chão, e outras três de pé, mortas, de olhos abertos.

Penso se no cemitério onde vão enterrar Viviane também moram cachorros. E se vai chover quando escreverem seu nome pela última vez.

 

 

 

 

 

 

 

 

]]>
0
Botox e o desserviço ao feminismo https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/17/botox-e-o-desservico-ao-feminismo/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/17/botox-e-o-desservico-ao-feminismo/#respond Thu, 17 Dec 2020 19:42:41 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/injeção-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=892 Quando engravidei do meu filho, além do volume na barriga, surgiu também uma pinta esquisita na minha testa. Como era vizinha a uma outra que minha mãe dizia que eu sempre tivera (e que misteriosamente sumiu na juventude), imaginei que pudesse ser uma reedição da pinta antiga, ou quem sabe até um desdobramento. Afinal, eu também me desdobrava ali, lentamente, em uma pessoa adicional.

A poesia barata não convenceu meu amigo médico. Numa visita prum café em casa, ele viu que a mancha marrom só crescia, talvez mais rápido até do que o próprio bebê, nascido já fazia mais de ano. Me deu bronca. E eu marquei minha primeira consulta em uma dermatologista.

O consultório da doutora Carmen parecia muito mais caro do que o meu convênio podia pagar. Casas com escadas curvas no meio da sala toda de mármore são sempre coisas impressionantes, e não à toa estavam em todos os núcleos ricos das novelas da Globo dos anos 1990. Subi à sala de exame me sentindo a Carolina Ferraz.

Ao fim da consulta, saí com a pinta, aparentemente benigna, e sem pagar um real.

Saí também com receitas para cremes manipulados, uma indicação de outros produtos que qualquer esquina vendia, e um pedido para colágeno em pó de uma farmácia chiquérrima, que fazia sachêzinhos efervescentes com gosto de refresco de limão ou laranja, pode escolher. Procedimentos, doutora? Para você, ainda não.

Tudo aconteceu há muitos anos. Quando eu ainda parecia distante dos temidos 40, aquele momento da vida em que os homens – aqueles de quem a gente infelizmente ainda gosta, e a quem infelizmente ainda são confiadas todas as decisões sobre o que tem valor ou não no mundo – passam a dizer que somos velhas. E a gente infelizmente passa a acreditar.

Saindo da escola do meu filho, depois de deixá-lo na aula, uma outra mãe (ou talvez ela fosse uma maluca nômade muito bem vestida) me abordou no portão. Achou um absurdo eu já ter um filho daquela idade. Disse isso rindo, pelo menos, senão certamente eu teria ficado com medo. Ou ofendida. Ou os dois.

Expliquei que só pareço jovem. Que na verdade sou uma senhora, que já não tenho valor sexual na sociedade, que olha aqui essa pelanquinha em cima do olho, esse bigode chinês, enfim. Fiz o papel que me é esperado como mulher, de me colocar para baixo sozinha, sem precisar que ninguém me ajude.

“Mas você faz umas coisinhas, né?”, perguntou, girando o dedo indicador em volta do próprio rosto. Olha, eu ainda não fazia coisinha nenhuma. Mas, naquele momento, achei que talvez fosse o sinal para começar a fazer.

Esperei até 2020, na pandemia, com todo mundo engordando, entristecendo, e envelhecendo 50 anos em cinco meses. Doutora Carmen se ligou que sua escada curva no casarão com sala toda de mármore era demais para mortais da Amil, e agora não fazia mais parte do meu plano. Procurei uma indicação mais perto de casa.

Como eu previa, já dava, sim, para começar a fazer coisas pela pele do meu rosto, especialmente preventivas. E, como eu não sou a Jennifer Lopez, não tenho problema nenhum em escrever sobre isso e dizer: fiz botox e preenchimento, não me arrependo de ter feito, e ainda estou juntando dinheiro para fazer de novo. E por que fiz? Porque achei que devia, e porque gostei do resultado.

A JLo pode até achar que a gente acredita na sua rotina da skincare exclusivamente à base de azeite de oliva por 51 anos. Mas o desserviço que uma mulher famosa, talentosa e ainda por cima bonita presta ao dizer um absurdo desses não cabe num livro, nem mesmo em uma biblioteca inteira feminista.

Ser uma pessoa pública e não querer divulgar voluntariamente uma informação estética é uma coisa – mas mentir sobre ela quando perguntada é algo muito diferente. E, graças à evolução do feminismo, estamos exaustas de ser feitas de otárias nesse aspecto.

Não à toa, passamos a idolatrar quem nos traz a verdade, mostrando que o normal é ser normal como a gente, com procedimentos, até, mas com celulite, sim, com estria, quilos onde não queria ter, nariz diferente do que sonhou.

Com 2,1 milhões de seguidores, a modelo e jornalista Danae Mercer, dos Emirados Árabes, se dedica a desconstruir a perfeição de fotos de celebridades nas redes.

Na Austrália, Celeste Barber satiriza para seus 7,5 milhões de seguidores as mulheres com formas insuperáveis que se dizem totalmente naturais, e que dominam aquilo de que o Instagram mais se alimenta: as aparências.

O ponto de ambas não é dizer que mulheres lindas são menores ou que merecem menos respeito, mas sim provar que, para exibir corpos e rostos perfeitos, quase sempre é preciso muito esforço, dedicação e, por que não?, às vezes até mesmo uma ou outra intervenção.

Aos 29 anos, a modelo Emily Ratajkowski, por exemplo, odeia o trabalho de Danae e de Celeste – a segunda é bloqueada em suas redes, e impedida de divulgar seu nome. Assim como Jennifer Lopez, Emily presta, com isso, um desserviço à evolução feminina.

Hoje é quinta, e o debate e esse textão aqui repercutem no grupo de WhatsApp das amigas antes que eu resolva publicá-lo. Alguém pergunta se pagar por procedimentos estéticos faz da gente menos feminista. Eu respondo que é justamente o contrário.

Que, sim, cada uma tem o direito de escolher divulgar só o que tiver vontade de sua vida pessoal, e que ninguém tem a obrigação de admitir absolutamente nada para ninguém. Mas que reivindicar uma sublimidade estética natural quando não foi assim que ela surgiu, isso, sim, é um golpe infame e imperdoável no feminismo.

]]>
0
O estupro culposo que elas não previram https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/11/03/o-estupro-culposo-que-elas-nao-previram/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/11/03/o-estupro-culposo-que-elas-nao-previram/#respond Tue, 03 Nov 2020 18:10:31 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/angela-diniz-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=856 Chegou ao final neste sábado (31) o podcast “Praia dos Ossos”, que já resenhei para este jornal na época da estreia, e que trata de evoluções no feminismo usando como base o caso do assassinato da socialite mineira Ângela Diniz, na década de 1970, pelo então namorado Doca Street.

Acompanhei a evolução do programa com fidelidade canina. E este último episódio terminei chorando. De ouvido atento enquanto preparava o almoço, minha vontade era aplaudir, de frente para o meu fogão e emocionada, Branca Vianna e Flora Thomson-Deveaux pela obra-prima que criaram, e que se desenha como um marco nos rumos da luta feminina por direitos e respeito.

Acontece que, no Brasil, as regras do jogo são esquisitas. Porque, a cada passo para a frente que damos no tabuleiro, manda o manual que os peões voltem duas casas para trás.

Em contraposição ao movimento fantástico de “Praia dos Ossos”, vem hoje a notícia de que a justiça brasileira proferiu uma sentença inédita no julgamento de um caso de violência sexual acontecido em 2018, contra a influencer Mariana Ferrer, à época com 21 anos de idade.

“Estupro culposo”. Foi com esta argumentação que o promotor do caso conseguiu convencer o juiz a abrir as portas do tribunal e liberar o empresário André de Camargo Aranha, declarado inocente. Um parêntese didático: quando um crime é considerado “culposo”, é porque a justiça entende que não houve a intenção de cometê-lo.

Oras. Concentrem-se no tamanho deste desafio, o de imaginar como é que alguém comete um estupro nestas condições. Difícil. Quase impossível. Já para os magistrados parece simples: não haveria como Aranha saber que Mariana não estava em condições de consentir a relação.

Importante dizer que estupro culposo é um verbete que não consta do compêndio de leis brasileiras. E, justamente por isso, deve ter sido possível manobrar o julgamento a ponto de absolver o empresário.

As imagens da audiência às quais o jornal Intercept teve acesso, e divulgou em reportagem, são de embrulhar o estômago. Para poupar quem não gosta de filmes de terror, o spoiler é que a vítima é humilhada constante e gravemente pelo advogado de defesa do réu.

Não sou das mais místicas, religiosa tampouco, mas algumas coincidências me fazem questionar se há alguém no comando deste Jogo da Vida. Pouco antes de saber das atualizações do caso da Mariana, que acompanho já há tempos, recebo a mensagem de uma grande amiga pedindo desculpas por precisar tocar em um assunto delicado.

Ela precisa avisar, com peso no coração, que alguém muito próximo a mim, e a quem eu respeitava bastante, se comportou muito mal na juventude não muito distante. A conduta questionável? Algo semelhante ao que Mariana Ferrer alega ter sofrido com André de Camargo Aranha.

Em uma festa, o clássico ao qual tantas de nós alguma vez se viram expostas, ou de que todas nós pelo menos já ouvimos falar: o estupro de vulnerável, quando a relação sexual se dá tendo uma das partes inconsciente.

Quem nunca soube de uma festinha em que uma garota bebeu demais, e acordou confusa em cima de uma cama pela qual passaram um ou mais homens que se diziam amigos dela? Quem não conhece quem tenha sido conivente ao abrigar e não impedir a evolução criminosa de festinhas em que garotas bebem demais e acordam confusas em cima de uma cama pela qual passaram um ou mais homens que se diziam amigos dela?

Ser mulher no Brasil é para as fortes. Com o “estupro culposo” do caso Mariana Ferrer, abre-se no país um novo capítulo na história do feminismo – e ele não é bonito. Corram aqui, Branca e Flora, e olhem só o que fizeram daquela esperança que vocês nos trouxeram aquele dia.

]]>
0
O corpo que habito https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/09/23/o-corpo-que-habito/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/09/23/o-corpo-que-habito/#respond Wed, 23 Sep 2020 19:53:28 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/líbero-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=822 A única vez que minha avó brigou comigo foi porque joguei um absorvente privada abaixo, daqueles grandes que a gente chama de modess. Enrolei bem bonitinho, ele fez ploft na água, e apertei a descarga assistindo seu caminho até o buraco do vaso. Quer dizer, a ideia era que ele entrasse no buraco, mas obviamente não entrou. Passou um pedacinho e ficou ali entalado, me olhando sem saber como sair.

Eu também fiquei sem ideia de como ia sair do banheiro e avisar minha avó que precisava de ajuda porque tinha entupido sem querer a privada. Não tinha a dimensão do erro, mas já me contorcia de humilhação e medo. Sabia que ia dar trabalho para a mulher que eu mais respeitava no mundo, e tudo pela minha menstruação.

Passei o fim da infância inteirinho desejando menstruar. Acordava e corria para ver se a calcinha estava suja. Fazia pequenas promessas silenciosas olhando entre as coxas, e ao santo que me ajudasse garantia devoção absoluta. Sentia como se meu corpo fosse controlado por alguém que não eu mesma. O divino. Talvez minha avó.

Li esses dias o romance do Itamar Vieira Júnior. Nem o acidente que decepou parte da sua identidade fez a protagonista de “Torto Arado” se sentir dona do próprio corpo. Escondida da avó, mas ainda temente a ela, a menina pega o facão guardado há décadas na mala debaixo da cama. Sangra. Quase morre. E seu corpo ainda não é seu.

Precisa viver muitos anos depois disso, enfrentar um marido agressivo, livrar-se dele, e só, então, tomar posse. Enfim dominar cada pedaço do chão que habita. Para sentir prazer em ganhar carinho, quando alguém vem trançar seu cabelo. Para sentir afeto pelos outros e também por ela.

Mulheres passam mesmo grandes pedaços da vida como inquilinas de si mesmas. Ao menos é assim que nos sentimos. Ocupando algo que não nos pertence, e que é da jurisdição de outro. Como acreditar que não é isso, se quem devia zelar pela integridade do nosso corpo escolhe mandar nele a todo custo? Alguém que se entende ministra de todas as mulheres?

É por isso que amo a literatura. Porque ela é tão aberta, mas ao mesmo tempo tão justa em sua beleza. Em páginas de livros não cabem Damares. Só cabem Belonísias e Bibianas, só cabe eu, só cabe você. Nelas a gente sangra com um propósito, e ele envolve sempre libertação, nunca clausura.

Passei o fim da infância inteirinho desejando menstruar. Três décadas depois, e a menstruação é o meu maior problema: queria poder sangrar todo mês, e não posso. Mas está tudo bem, também, porque já há um tempo que eu descobri quem manda em mim nessa história. Nunca foram os santos, tampouco a minha avó. Sempre fui eu, a grande protagonista.

]]>
0
Tati Bernardi, meu Deus do céu! https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/09/16/tati-bernardi-meu-deus-do-ceu/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/09/16/tati-bernardi-meu-deus-do-ceu/#respond Wed, 16 Sep 2020 20:34:56 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/tati-bernardi_featured-620x435-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=808 A Tati Bernardi escreveu esses dias uma coluna inteirinha sobre o Caetano Veloso, e sobre como ela achava que devia ter agido diferente quando teve a oportunidade de conhecê-lo. Ela queria ter enfileirado bolinhas de guardanapo e dado vexame, mas só conseguiu fingir naturalidade. Já eu, quando conheci a Tati, lá em 2012, também queria ter me comportado diferente. Não me deixaram.

Assim como o Caetano pra ela, a Tati era pra mim uma referência. Quando comecei a trabalhar na revista, ela já escrevia pra lá fazia tempo, em uma coluna parecida com a que assina hoje em dia aqui na Folha. Por muitas vezes, me pediram pra fechar seus textos – o que, no jornalismo, significa revisar e jogar na página a produção de alguém.

Para entender o sentimento, é como se o galãzinho de “Malhação” fosse recrutado a bater texto com o Tony Ramos. Por mais que eu já tivesse mais de uma década de carreira, fazer aquilo que a Tati fazia era uma meta gigante para qualquer mulher que escreve. Assinar textos em revistas de circulação nacional. Ser lida, ser adorada.

Só que eu não podia adorar Tati Bernardi. Por mais que, como Caetano com ela, sua escrita em mim movimentasse coragens e forças, a Tati era uma mulher que me desprezava. Ela me achava um nada. Foi isso que me ensinaram no lugar onde a gente trabalhava.

E, a fim de me proteger da indiferença, eu decidi então que ia detestar Tati Bernardi com ainda mais dedicação do que diziam que ela me detestava. Viramos inimigas mútuas, sem que nunca tivéssemos nos visto pessoalmente. Sem que me fosse dada a oportunidade de enfileirar bolinhas de guardanapo ou de dar vexame.

Além de escolher por mim as minhas próprias amizades, e de retumbar na base diária a minha insignificância, aquele meu chefe também se preocupou em me colocar no meu lugarzinho submisso de mulher. Suas escolhas criminosas teriam, hoje em dia, consequências bem diferentes. Mas, naquela época, em 2012, quando eu quase conheci a Tati, não renderam nada pra ele além de uma leve dor de cabeça.

A Tati agora me achava uma vadia. Eu eu achava ela frígida. Foi o que disseram pra mim, foi o que disseram pra ela.

Passei oito anos detestando Tati Bernardi com toda a disciplina de que sou capaz quando abraço qualquer projeto. Nesse período, me recusei a ler seus livros, suas colunas, não ouvia seus podcasts.

Ficava irritada toda vez que algum amigo ou amiga recomendava coisas dela – e todo dia alguém me recomendava alguma coisa dela. Porque Tati Bernardi está em todos os lugares. Era como o galãzinho de “Malhação” tentar fugir por uma década da presença do onipresente Tony Ramos.

Um mês atrás entendi que era hora de parar de bobagem. Que tudo bem a Tati achar de mim o que ela quisesse, mas que era importante entrevistá-la sobre o lançamento do seu romance recente. Tomei coragem e fiz o convite.

Ouvi-la falar por uma hora me fez, de novo, como em 2012, desejar ardentemente ser sua amiga. Mostrar meu deslumbramento e pedir foto, Mas, como fez Tati com Caetano, eu só me sentei comportadinha e falei “é um belo livro”. Eu soube ali quem era a pessoa que eu havia me tornado.

Escrevo este texto no dia em que finalmente conheci Tati Bernardi. Ainda não nos encontramos pessoalmente, é quarentena no Brasil, mas, depois de tanto tempo, pudemos nos despir e falar abertamente sobre quem nós duas somos. E era claro que não podíamos estar mais distantes daquilo que, há oito anos, foi pintado de nós.

É curioso que todas as vezes em que ouço histórias de mulheres que se detestaram por anos há quase sempre o ego de um homem problemático envolvido na questão. Com a gente não foi diferente. Uma pena que tenham me roubado tanto, coisas, sentimentos, pessoas. Que eu tenha perdido oito anos não sendo amiga da Tati.

Mas a gente ainda vai viver muito, até ficar bem velhinha, e tirar esse atraso todo. Quem sabe a Tati ainda almoça comigo aqui em casa, depois a gente sai pra tomar um drinque de casalzinho, com sorte ela até me canta num episódio de podcast. Ainda vou ter a chance de ser muito caipira e muito idiota tremendo do seu lado, Tati. E te prometo que vamos juntas reencontrar Caetano.

 

]]>
0
Pesadelo de mulher https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/25/pesadelo-de-mulher/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/25/pesadelo-de-mulher/#respond Tue, 25 Aug 2020 15:30:34 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/sonho-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=780 Cientistas de três grandes universidades brasileiras estão pesquisando os sonhos na quarentena. Parece que a gente tem sonhado mais, de forma mais vívida, e também tido mais pesadelos. Ninguém me perguntou nada, ainda, mas asseguro que eu poderia colaborar bastante com os estudos. Minhas noites têm sido confusas.

De ontem para hoje até que não foi tão mal. Uma espécie de fazenda, mais de 400 pessoas reunidas para um almoço beneficente. A aniversariante faz discurso de agradecimento, e avisa que o ravióli com queijo de cabra que era de graça sairá por um preço amigável. Minha cachorra sumia na multidão, minha gata caía morta de cima do muro. Um sonho tranquilo, na média.

Há algumas semanas, no entanto, o pior de todos. Vinha o aviso de que minha relação tinha chegado ao fim, o que já parecia lamentável o suficiente, poxa, justo agora, mas, enfim, sobrevive-se. Mas porque não era um pesadelo qualquer, e sim um pesadelo pandêmico, a parte que optava pelo término agia com crueldade.

Em resumo, eu era apresentada, a título de tortura, à minha substituta, alguém muito melhor que eu porque mais esperta, jovem e bonita. Ela tinha sorriso de comercial de pasta de dentes. Acho que cheirava a banho tomado, mas talvez essa parte eu tenha inventado já acordada – neurose é neurose em vigília ou no sono.

Ele e ela riam, abraçados. Contavam que tinham se conhecido naquela noite em que eu fui viajar a trabalho, em janeiro, e ele, que havia dito que dormiria mais cedo que o usual, foi ao bar com os amigos. Foi tesão à primeira vista, garantiam os incisivos e molares muito brancos dela. Dois beijos de boca bem molhada. Acordei chorando.

A última vez que isso tinha acontecido, de amanhecer em prantos, foi porque meu filho tinha morrido despencando sem querer da janela do sexto andar – sou mesmo um prato cheio para pesquisadores de sonhos. Preocupado com uma nova morte imaginária na família, meu namorado de pronto se dispôs a novamente me acudir, abrindo os braços para o consolo.

Agora me explica como é que eu vou me jogar no abraço de um adúltero. A ação mais prudente que ele poderia ter neste momento era a de arrancar o próprio pau com faca cega, arremessar descarga abaixo, e se ajoelhar aos meus pés implorando perdão eterno. Só que ele continuava deitado, de pijama, com o pau preso ao lugar de sempre, me olhando confuso e ainda meio sonolento. Não tem como argumentar com um homem desses.

Foram infinitas horas do dia até eu resolver que já dava para ao menos responder às perguntas de ordem prática que ele fazia. Não, eu não quero sobremesa. Não, sua guitarra não está me atrapalhando. Sim, eu desejo que você morra só porque me traiu com uma garota. Oi?

Eu agora vou explicar aqui ao leitor, ao Christian Dunker, e aos amigos dele de pesquisa nas faculdades aquilo que já expliquei ao meu atônito namorado naquele fim de tarde de quarentena. Óbvio que a culpa daquilo que meu inconsciente produz enquanto eu durmo não é de ninguém exceto minha, e que um parceiro tão bacana não merecia que eu passasse um dia inteiro de mal e fazendo cara de vômito toda vez que ele me dirigia a palavra. Aconteceu, ops, me desculpa.

Mas, mais importante que explicar algo que todo mundo já sabe é esclarecer o que talvez ainda passe despercebido: mulher nenhuma sai ilesa de um relacionamento merda. E as consequências da passagem de um pulha pela nossa vida muitas vezes seguem ecoando por anos e anos – e relações e relações – a fio.

É trauma que chama, USP, UFRGS e UFMG?

Eu, por exemplo, além de um marido que me traía e humilhava sistematicamente por uma década, também já tive um namorado que, por dois anos, aproveitava qualquer segundo em que não estivéssemos no mesmo cômodo da casa para assistir pornografia e se masturbar. Não é tarefa das mais fáceis entender depois que nem todos os homens agirão desta maneira.

Claro que não somos isentas da responsabilidade de ativamente buscar ajuda para superar o passado. O vitimismo é tão quentinho que a gente pode esquecer que dá para ir embora dele. Mas às vezes o abalo é grande, e as coisas não se resolvem de uma hora para a outra.

Enquanto homens se reerguem de relações tóxicas com mais facilidade porque são educados a não condicionar a autoestima à opinião alheia, e porque desfrutam de um sistema que ensina que mulheres são apenas números, facilmente descartáveis, nós penamos em uma batalha dupla.

Que começa pela luta para garantir a sobrevivência física, desde o dia um ameaçada, e entender qual o lugar que ocupamos no mundo por direito, e segue pela guerra da construção de uma identidade, de poder se orgulhar dela, e aprender a defendê-la a qualquer custo.

Parece fácil? É por isso que a gente sonha.

]]>
0
Este texto não vai falar dela https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/17/este-texto-nao-vai-falar-dela/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/17/este-texto-nao-vai-falar-dela/#respond Mon, 17 Aug 2020 17:01:20 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/aborto-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=768 Você sabe o assunto deste texto. Em momentos de indignação generalizada, de perplexidade com a humanidade, acontece mesmo de toda gente opinar. Só que hoje, neste espaço, por estes poucos minutos, o mundo vai ser um lugar normal e justo. De proteção e cuidado. E, por isso, este texto, que é sobre este assunto, vai falar dele sem falar.

Quando nascem, os lobos são cegos, surdos e dependentes. Mamam até a décima semana. A criação de uma ninhada é de responsabilidade não apenas da mãe, mas de toda a comunidade, que colabora, cada um à sua maneira, para a educação dos filhotes. Até os oito meses, eles são ensinados a caçar e a participar do mundo em segurança. Os mais novos nunca são deixados para trás. Um lobo vive em média dez anos.

A Igreja Católica teve um papel fundamental na história da humanidade. Na Idade Média, que durou quase mil anos, o acesso à sabedoria era restrito aos clérigos, porque todos os livros ficavam enclausurados em mosteiros, protegidos por monges copistas. Puderam, assim, os livros, ser preservados e sobreviver à passagem do tempo.

Com capacidade adaptativa impressionante, as pragas podem colonizar praticamente qualquer ambiente, e se reproduzir de maneira vertiginosa. Bibliotecas contemporâneas combatem traças com técnicas que envolvem privação de oxigênio, aplicação de nitrogênio e armadilhas adesivas. Monges, padres ou pastores são inúteis neste e em vários outros processos.

O papel fundamental da Igreja continua, assim, restrito àquele período específico.

O Carandiru foi um presídio na zona norte de São Paulo, inaugurado em 1920 e desativado em 2002. Chegou a abrigar mais de oito mil presos. Por dez anos, o médico Drauzio Varella realizou atendimentos nas dependências da cadeia.

Em seu site, Varella relata que acusados de crimes sexuais cumpriam pena isolados nas celas do último andar do Pavilhão Cinco. Só assim, para mantê-los vivos, explica o médico, a salvo da fúria assassina dos companheiros de cárcere.

As cadeias têm códigos próprios, internos e extraoficiais de conduta. Lá, um homem que violenta alguém nestes termos não merece perdão. A despeito de qualquer esforço da segurança interna, mais cedo ou mais tarde acabará massacrado e morto. Na ótica dos criminosos, cometeu o único delito absurdo, entre tantos que a raça humana é capaz de cometer.

Indivíduos que se desenvolveram em ambientes sem segurança e amor se tornam adultos medrosos. Recorrem frequentemente à imposição e à agressão verbal como defesa, a fim de proteger a imagem que criam de si mesmos, a de seres onipotentes. São, no entanto, incapazes de lutar verdadeiramente por qualquer ideal.

A psicanálise enquadra estas pessoas no espectro megalômano. Fascinadas pelo poder e por si mesmas, entendem que são adoradas como salvadores, líderes a ser seguidos, donas da palavra que vai incitar a todos.

Sarah Domville-Taylor nasceu em 1870, na Inglaterra. Casou-se com Robert Winter em 1890, e anexou ao seu o sobrenome do marido. Depois de ficar viúva, juntou-se à União Britânica Fascista. Ficou famosa por ostentar a bandeira nazista em suas casas. Foi acusada de espionagem, mas nunca sofreu consequências dada a sua proximidade com o rei George VI e Winston Churchill. Sarah Winter morreu em 1944.

Você sabe o assunto deste texto. Porém, não é expondo e opinando sobre a tragédia que tornaremos o mundo um lugar normal e justo. De proteção e cuidado. Por isso, este texto, que é sobre este assunto, fala dele sem falar. Precisamos aprender a nobreza, e praticá-la acima do ego. Não é nem nunca foi sobre nós. É sobre facilitar o anonimato a quem nunca deveria ter sido arracanda dele.

]]>
0
A quarentena é mais difícil para o homem https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/06/19/a-quarentena-e-mais-dificil-para-o-homem/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/06/19/a-quarentena-e-mais-dificil-para-o-homem/#respond Fri, 19 Jun 2020 18:52:13 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/homem.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=725 Tem gente perdendo parente, tem desempregado, tem morador da favela, e dono de negócio falindo, mas ouvi dizer que a quarentena está difícil mesmo é para o homem. Fatores intrinsecamente ligados à masculinidade encontram-se, dizem, acima de todas as dificuldades e agravantes neste severo período que o mundo enfrenta. Estou consternada.

Até os políticos já se deram conta disso e vêm tentando nos avisar. Enquanto o presidente da República entende que salões de beleza são essenciais e autoriza seu funcionamento em meio a uma pandemia que já matou quase 50 mil, um vereador no Mato Grosso do Sul alerta para o óbvio: “Imagina a mulher sem fazer sobrancelha, cabelo, unha, não tem marido nesse mundo que vai aguentar”.

Deve estar complicado mesmo. Acordar todo dia ao lado de uma mina que arruma a casa, arruma o almoço, arruma os filhos, arruma trampo, arruma dinheiro, arruma tempo, mas não se arruma, ah, tenha dó. Realmente não há meios pra que um casamento sobreviva.

Nestas condições, falaram, fica tão difícil ser um cara na quarentena que restam poucas alternativas além de agredir a esposa. Claro, são todos os homens aqui pessoas de bem e respeitosas, não erguem a mão nem pra uma flor, mas agressão verbal todo mundo sabe que existe desde que o mundo é mundo, e se não deixa marca é porque não feriu.

Gorda. Feia. Descuidada.

Isso fora o problema que as mulheres criaram ao ficar em casa o tempo inteiro, acabando com o espaço para as necessidades vitais masculinas. Não há quem sobreviva sem poder bater punheta, por exemplo. E auxílio emergencial pra isso o governo não inventa. Sumir com a namorada de casa um pouco. Porque transar é legal, mas gozar sozinho olhando pra tela do computador não tem preço.

E quem tem filho, então? Coitado. Vocês não imaginam o tamanho da dificuldade. Agora, com a quarentena, é preciso fazer tudo que antes alguém – não sei quem exatamente – fazia. É exaustivo ter que ajudar a mulher em tudo. Ajudar. Fazer metade, ou quase isso. Onde já se viu ter que trabalhar e ainda decidir o que as crianças vão comer no jantar.

Ser homem e pai na quarentena anda muito custoso até mesmo para quem não mora junto com a chata de uma mulher, porque conseguiu se livrar deste problema antes do coronavírus. Ela aparece toda semana, entrega a criança e sai andando, e nem pra ficar e trocar uma fralda, dar uma força, botar pra dormir. Fica tudo na mão do homem, obrigado a cuidar sozinho do próprio filho.

Certos estão aqueles que, pela bênção de Deus, moram em outra cidade, estado ou país. Assim basta dar um telefonema semanal, e se não quiser ligar também tudo bem, porque criança esquece rápido, se ocupa com videogame, não vai nem registrar que o pai faz tempo que não aparece. E é claro que se pegar Covid tem a mãe para resolver. Mulher é para isso.

Mas e pros solteiros sem filhos nem cachorro nem parente, sem vó morando junto, sem compromissos, será que também tá complicado? Super. Primeiro que da única vez que eles tentaram chamar a empregada pra dar um jeito na casa as mulheres da família já falaram um monte e encheram o saco.

Segundo que, sem quem limpe, cozinhe e lave, sobra menos tempo para a punheta, para o Netflix e para o Zoom com os brothers. Fora que alguém tem que trabalhar nessa casa. Porque a vida não é só diversão. Não dá para eu passar duas horas no Tinder, por mais que eu queira, quando há boletos vencendo e uma chefe (tinha que ser mulher) pesando na minha.

A quarentena, disseram, está difícil mesmo é para o homem. Bom seria ter nascido mulher, que consegue tudo mais fácil na vida.

]]>
0
Somos todos CGCs https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/05/13/somos-todos-cgcs/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/05/13/somos-todos-cgcs/#respond Wed, 13 May 2020 21:26:59 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/brechó.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=699 Mesmo antes de peças de roupa custarem insanos três dígitos, e principalmente antes de a gente se enfiar em quarentena em casa e ter que guardar dinheiro porque vá lá saber o que o amanhã nos reserva, eu já era adepta dos brechós por considerar que comprar roupa usada é não só mais econômico como também mais estiloso.

E, mesmo sendo essa traça da segunda mão, foi só recentemente que percebi o bafafá em torno do CGC, sigla que arrepia garimpeiras e vem impressa em algumas etiquetas. Quando uma peça dessas surge disponível num brechó online, é correria, pânico e desespero: o primeiro comentário leva a compra, e os seguintes escrevem “fila” para esperar em ordem por um mágico golpe de sorte.

O CGC nada mais é do que o CNPJ antes de 1998 – ou de “antigamente”, como chamam as brecholeiras. Uma peça com CGC impresso é comprovadamente algo vintage, e mais valorizado, portanto. Outro dia, uma vendedora vibrou sobre uma camisolinha de piquê toda bordada, conclamando a comunidade retrô a quase orar sobre aquela roupa que, dizia ela, era um milagre existir há mais de 20 anos.

Eu já existo há mais de 20 anos, pensei. Aliás, já fazia quase 20 anos que eu já existia quando o Ministério da Fazenda resolveu editar as nomenclaturas. E, mesmo assim, sendo toda vintage original, com rendinhas anos 80, ninguém me chama de milagre nem reza um Pai Nosso de gratidão sobre os dígitos do meu RG.

Neste fim de semana, vou completar 40 anos. Uma CGC legítima. Com isso, andava desgostosa das minhas marcas de uso, algumas bolinhas no tecido aqui, outros furadinhos na trama, as rugas do tempo que nem um bom trato do ferro de passar roupas resolve. Chateada mesmo, sempre que me comparava(m) com as peças novinhas de coleções atuais.

Quando minha mãe fez 40 anos, eu lembro que chorei escondida no quarto, pensando que nada podia ser mais velho que isso, alguém que tivesse quatro décadas. Um mês depois foi meu aniversário de 12 anos, e Deus, implacável, enviou de presente uma festinha no prédio à qual compareceram zero convidados.

Um amigo escreveu esses dias no meu Instagram que tudo melhora quando se chega aos 40. Meu analista completou que fazer 70 é uma maravilha. Acho que ninguém tem dúvidas de que, para os homens, acumular unidades e mesmo dezenas é realmente uma coisa incrível. Aumentam salários, autoestima, oportunidades.

Percebi que o desconforto, porém, não é tanto relacionado à idade em si, o meu CGC dobrado, mas sim ao fato de completar uma idade assim tão simbólica – se não para o mundo inteiro, apenas para aquela metade que se lasca sob o patriarcado – em condições adversas.

Uma amiga da juventude partiu há poucos dias, há um desgoverno em curso, milhares ainda morrerão na pandemia. Tememos perder o emprego, os amores, o prumo. Bem diferente dos abraços, dos drinques e do bolo que imaginei pra quando esse momento chegasse – quem podia sonhar que o aniversário deserto aos 12 não seria o pior de uma existência?

Desejo de presente pelos meus 40 anos (e também a você pelos seus 59, 15, 36, ou quantos forem que você completará durante a quarentena) a paciência fundamental para aguentar firme e lembrar que vai passar. Muito em breve este será apenas mais um capítulo duro de nossas trajetórias – como aquele puído na bainha que só confere ainda mais valor e força aos sobreviventes CGCs do brechó.

]]>
0