Do Meu Folhetim https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br Meias verdades sempre à meia luz Thu, 30 Sep 2021 12:29:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O uniforme que eu posso te dar https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/08/09/o-uniforme-que-eu-posso-te-dar/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/08/09/o-uniforme-que-eu-posso-te-dar/#respond Mon, 09 Aug 2021 17:51:06 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/1_serie_manhas_de_setembro_liniker-6624753-320x213.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=968 Só uma semana de aulas presenciais até agora, e já visitei a loja de uniformes do colégio três vezes. Nada custa menos de R$ 50 lá dentro, o que significa que, além do gasto de tempo para ir até o Pacaembu e voltar, há também o tanto que se tira da carteira a cada passadinha.

Meu filho tem quase 13 anos e cresce cerca de meio metro por hora que fica no sol –à sombra, o ritmo parece mais lento, o que dá algo entre 15 e 20 centímetros no mesmo período de tempo.

É burrice comprar muitas peças de roupa em tempos assim, porque, semana que vem, uma calça servirá apenas como short, camisetas largas virarão babylook, e casacos se tornam boleros roçando o sovaco (agora peludo) em questão de minutos.

Mas, sim, eu visitei a loja três vezes, e nas três vezes consumi itens, toda cega e milionária. É que me dá gosto comprar uniformes para ele.

A vida de mãe solo nunca foi fácil, mas houve momentos ainda mais complicados. Eles coincidiram justamente com a fase em que uma criança pequena suja roupas o dia todo, todos os dias. É porque o suquinho derrama na blusa, é porque foi dia de dar carrinho na quadra na hora do recreio –sempre tem uma explicação boa pra que tudo volte imundo do colégio.

E nem mesmo o luxo que é ter uma máquina de lavar concede privilégios suficientes a quem, às dez da noite, pendura no varal uma roupa que precisa estar enxuta às sete da manhã. Por uma década, sequei muita camiseta na porta do forno, atrás da geladeira, no ferro e com secador de cabelos.

Funciona assim quando não se tem dinheiro para comprar mais de duas camisetinhas e uma calça –nada custa menos de R$ 50, afinal.

Quando nem assim dava pra secar o uniforme, quando não funcionavam nem o forno, a geladeira, o ferro, o secador, Teodoro ia para a escola vestindo um uniforme usado, sem lavar, disfarçado com um spray cheiroso daqueles que ajudam a passar as roupas na tábua.

Era nesses dias que eu tinha certeza de não haver mãe pior que eu no mundo.

Assisti ontem a “Manhãs de Setembro”, série da Amazon Prime que tem Liniker como protagonista. Estreou em junho passado. Chorei de novo, igual chorava escondido naqueles dias passados.

Uma personagem manda o filho escolher: ou vai de uniforme molhado, ou vai de vestido emprestado pra escola, porque não deu tempo de a única camisetinha secar.

Se eu já visitei a loja de uniformes três vezes só na última semana, foi porque, agora que a vida melhorou um pouco à custa de muito trabalho, eu finalmente posso comprar as coisas que sempre quis para o meu filho.

Sinto prazer em trazer a sacola pra casa, dar as peças na mão dele e ver que tudo serve, que está tudo limpo, que há itens suficientes para revezar e higienizar e depois guardar na gaveta.

Já houve um tempo em que torci pra que ele crescesse sem nunca saber que, às vezes, foi pra escola de calça remendada às pressas, de camiseta molhada ou sem lavar. Mas, agora, meu maior desejo é que ele se lembre de todos os detalhes.

Porque, lembrando tudo, ele poderá trocar a memória velha por uma melhor e mais honrosa, e, quem sabe, até ter um pouco de orgulho de mim.

]]>
0
Obsessão pelo corpo delas https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/05/obsessao-pelo-corpo-delas/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/05/obsessao-pelo-corpo-delas/#respond Tue, 05 Jan 2021 10:00:51 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/corpofeminino-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=927 Um homem uma vez me confessou que tinha muita vontade de aprender mais sobre o feminismo, para conseguir se modificar de acordo com o que entendesse ser possível. Mas, dizia ele, mesmo com esse desejo, ainda era difícil encontrar quem tirasse suas dúvidas com calma, sem entender que indagações às vezes podem ser fruto do desconhecimento, e não da arrogância.

Sim, eu sei que nós mulheres não estamos bravas, estamos exaustas. E que isso transparece no reflexo que quase sempre temos diante de situações como estas, de questionamento sobre as demandas da luta feminista. Porém, ainda assim, gosto de manter em mente, em qualquer circunstância, essa conversa que tive no passado. Ela me serve como uma diretriz para atuar melhor.

E é ela quem me orienta aqui hoje, ao publicar este texto. É por ela que parto do pressuposto de que talvez seja importante explicar antes de discutir. Nos últimos dias, duas colunas também da Folha trataram, cada uma à sua maneira, do emprego do corpo feminino no mundo. Ambas foram assinadas por doutores em filosofia.

Na primeira, o assunto é aborto. A autora defende que há limites para a liberdade total da mulher decidir se quer dar continuidade a uma gravidez não planejada. Ao dizer que o feto é “a mais frágil, indefesa e inocente de todas as criaturas”, explica que não é apenas o corpo da mulher que estaria “em jogo” diante desta decisão.

Classifica como decadência moral a liberação do aborto, enquanto reconhece que estar grávida de uma criança que não se quer é uma “situação limite”. Ignora no texto questões sociais, de saúde pública e de educação. E desvia deliberadamente de explicar por que mulheres não podem decidir o que fazer com o próprio corpo, enquanto aos homens é assegurado o direito de decidir não só o que fazer consigo, mas também conosco.

Publicado algumas horas depois, o outro texto, escrito em primeira pessoa por um homem, mescla as expressões “sexo frágil”, “mulher raiz”, “lugar de fala” e “sabor de mulher” em uma narrativa que pode até dar sinais de que veio em missão de paz, e que qualquer aparente ofensa seria apenas um mal entendido de quem não compreende humor e artimanhas literárias.

Acontece que provocações neste campo do feminismo são cafonas e arriscadas demais, e, se falta compreensão de alguma natureza, ela certamente não vem da parte do leitor.

Pode parecer difícil entender essa fixação dos pensadores sobre o corpo feminino. Basta, no entanto, uma breve visita à literatura feminista para esclarecer essas origens. Naomi Wolf, por exemplo, explica com clareza em seu “O Mito da Beleza” a função que a criação de padrões estéticos universais tem no controle das mulheres pela sociedade.

E isso mesmo que –e especialmente que- se diga que um verdadeiro “apreciador tende a ter um gosto inclusivo”, sem restrições às imperfeições e diferenças. Nossa luta, mais do que nunca, não é para que sejamos apreciadas, não custa repetir.

Sendo assim, a tal da “abordagem filosófica da estética” não deveria suscitar brincadeiras, especialmente quando há não só milhares de maneiras de se louvar e respeitar uma mulher, mas, principalmente, quando há milhares de maneiras de se fazer boas crônicas a esse respeito.

Outra autora importante para assimilar a obsessão sobre o corpo feminino no mundo é Silvia Federici, muito bem citada pela colega Vera Iaconelli em coluna publicada nesta segunda-feira (4), para falar também de aborto, mas em termos absolutamente opostos – e extraordinários, diga-se – ao do primeiro texto postado no jornal com este tema, nesta semana.

Vera lembra que foi do Renascimento em diante que se intensificou o controle da sexualidade da mulher, e da gestação e seus desdobramentos. “Só à base de muita violência e séculos de doutrinação é que as mulheres passaram a se identificar com seu lugar” de submissão ao homem, escreve a colunista.

Mas, se já sabemos a origem do problema, por que optar por perpetuá-lo? Por que seguir alucinados na fiscalização do lugar da mulher no mundo, conferindo a ele peso, qualidade, valor?

É fundamental debater questões como o aborto, talvez alguém responda. Concordo, desde que se trate de fato de um debate, com um pensar crítico, e com a construção clara de uma premissa – ainda mais quando a discussão diz nascer do campo da filosofia. Para enumerar julgamentos, bons ou ruins, nunca foi preciso ter doutorado em nada.

Entendo que, como feminista, é meu dever manter a calma sempre que possível, para conseguir me engajar com profundidade na luta. Respirar e escrever, por exemplo, quando o desejo na verdade é de gritar. Foi isso que aquela conversa antiga me ensinou.

Isso, e a compreender que, às vezes, as opiniões podem sair brutas e egoístas não porque falte conhecimento ao emissor, mas porque arrogantemente lhe parece mais cômodo não ter de mostrar ao leitor de onde veio seu ponto de vista.

]]>
0
Você vai amar seu filho quando ele crescer? https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/07/22/voce-vai-amar-seu-filho-quando-ele-crescer/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/07/22/voce-vai-amar-seu-filho-quando-ele-crescer/#respond Wed, 22 Jul 2020 18:47:33 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/fita-métrica-2-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=749 Virei motivo de chacota em casa porque respondi ao meu filho que um cubo tem quatro lados. Era uma segunda-feira, a tarde bombando de trabalho, telefone a mil, matéria para entregar, e ele enfia o caderno de matemática na frente do computador, com a dúvida à queima-roupa. Não prestei atenção, errei feio, passei vergonha.

Ter virado professora do Fundamental 2, junto com minha atuação como jornalista, foi uma guinada inesperada na carreira. Não estava nos meus planos ter que lidar com frações enquanto faço uma entrevista, por exemplo, ou relembrar os tipos de relevos do solo na mesma hora em que esfrego Bombril no fundo da panela de pressão.

Chama-se circunstância, e que sorte o acesso às aulas online enquanto tem gente com a vida escolar suspensa, sem dúvida. Mas põe para pensar em questões que vão muito além da funcionalidade do homeschooling, da sobrecarga feminina e dos malefícios da pandemia. Roubar dois lados do cubo me expôs à por vezes esquecida consciência de que filho é filho para sempre.

Todo mundo sabe que eles vivem por anos, glória a Deus, a ideia sempre foi essa, de que só morram quando ficarem insuspeitadamente muito velhinhos, mas é raro que se pare para pensar sobre o quanto o grau de dificuldade para criá-los só aumenta com o passar do tempo.

O dia do cubo capenga se transformou em piada porque as consequências foram só mesmo a desonra temporária de minhas habilidades matemáticas, mas outras manhãs e tardes bem mais complicadas têm sido frequentes na rotina da família presa em casa, de quarentena.

Por saco cheio do isolamento, ou por total ausência de gosto pelo assunto, ou até mesmo – admite-se, sim, essa possibilidade – uma latente falta de talento para os estudos, o pré-adolescente que botei no mundo vem progressivamente se enrolando nas obrigações da escola a distância. E, enrolado, deu para trapacear.

Em meio às lições esquecidas, as aulas puladas, as provas não dadas, e tudo entre muitas e muitas aspas aqui, nem os hipotéticos filhos do Dalai Lama passariam sem levar bronca dos pais. À beira dos 12 anos, o delinquente estudantil em formação é confrontado com veemência, e em nada lembra o bebê amável cuja maior proposta de desafio era não saber dividir os brinquedos com os outros.

O Facebook outro dia mostrou uma postagem em que uma mulher questionava às amigas se a maternidade trazia, por si só, um acalmar dos desejos e dos ânimos. Não traz. Ser mãe e pai complica conforme crescem os filhos, as diferenças, as identidades.

A vontade de sair sem volta para comprar cigarros, à qual obviamente a sanidade não permite sucumbir, é proporcional às implicações do mau comportamento dos filhos. Combinadas ao elemento frequente da ausência paterna, transforma as mães em criaturas não só exaustas, mas assustadas com a progressão de tudo. Onde é que isso vai parar?

A escola – online, presencial, universal, interplanetária, o que seja – deveria contemplar, em conjunto com as famílias, uma educação para a paternidade e a maternidade. Levar aos jovens a informação de que ter ou não filhos é talvez a decisão mais importante que vão tomar em toda a vida, ainda mais séria que a escolha da profissão no vestibular.

Lembrá-los, e a todos os casais que sonham com uma criancinha adorável correndo pela casa, que a infância passa, e é seguida pela complexa adolescência, pela juventude, a fase adulta, e que a necessidade que os filhos têm dos pais não desaparece com o tempo. Pelo contrário, só aumenta.

Não vai mais ser só segurar a mão para evitar a queda, acordar de noite para dar leite, enxugar as lágrimas do susto, dar abraços fortes na doença. Agora que seu bebê cresceu serão exigidos de você retidão nos exemplos, firmeza nas cobranças, coerência nas ações e sentimentos – e essa é a combinação mais difícil do mundo.

Costumo responder às amigas que perguntam se devem ou não ter filhos que nesta dúvida já está contida a resposta: não. Você vai amar a criança quando ela crescer? Criar filhos é para quem tem certeza de que quer o compromisso de ser desafiado constante e gradualmente até o fim da vida, sem hesitação.

Porque ser pai e mãe de crianças fofas é fácil, mas estar disponível para adolescentes rebeldes e adultos com problemas de gente grande é uma jornada bem mais complexa. E o amor a um filho na plenitude do projeto só é possível quando a gente lembra que, junto com seus corpos, crescem também suas exigências.

]]>
0
Manhês em quarentena https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/03/17/manhes-em-quarentena/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/03/17/manhes-em-quarentena/#respond Tue, 17 Mar 2020 16:53:00 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/isolamento-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=634 Os números do coronavírus são impressionantes, mas mais impressionante mesmo é o número de vezes que meu filho já falou a palavra “mãe” na manhã de hoje. Estamos no primeiro dia de isolamento – ontem, ele foi à escola apenas para buscar materiais e orientações sobre o ensino à distância. Surpreendente, mas não encontrei até agora entre os papeis na mochila algum que me dissesse a verdade: que este vai ser um período infernal.

O portal virtual do colégio tenta de algum modo reproduzir o que aconteceria em sala de aula, não estivesse o mundo seguindo um roteiro clássico de filme com o Morgan Freeman. Mas faltam os amigos, o clima da classe, e falta, especialmente, a professora. O que dizer dessa mulher que eu mal conheço e já amo?

A única vez em que meu filho não usou o pronome “mãe” para evocar minha atenção foi quando trocou meu nome pelo dela. “Prô, me ajuda?”, pediu, confuso com a plataforma bugada e cheia de pastas de lição em branco, e confuso com a figura que, em vez de giz e canetões, empunha uma colher de pau coberta de lentilha.

Mas foi um breve deslize, lapso mental de rompimento recente. Afinal, até sexta passada era dela que ele recebia todo o auxílio, todo o carinho e suporte e cobranças necessárias a um menino de 11 anos que agora me aponta na tela do computador um exercício sobre potência em matemática, e outro do período paleolítico em história.

E eu, o que eu entendo disso tudo? Faz pelo menos 25 anos que tive essas aulas no colégio, e não faço ideia de por onde começar a orientá-lo. E, ainda que soubesse o caminho, ainda desconheceria a fórmula mágica que ensina mães em home office a coordenar demandas do trabalho com as da prole.

Uma amiga produtora de TV pergunta no grupo das meninas se alguma de nós topa gravar programa que vai mostrar atividades lúdicas boladas pelas famílias para o período de quarentena. Outra amiga responde que ela topa, sim, e que as atividades lúdicas às quais ela vai submeter os filhos envolvem faxina e arrumação de armários.

Porque é isso, a rotina não para. O chefe não vai perdoar minhas entregas (e é bom que não perdoe mesmo, pelamor, precisamos todos mais que nunca nos manter empregados), a casa não vai perdoar mais que dois dias sem vassoura e pano, há que se lavar roupa, há que se fazer comida, a cachorra ainda tem que sair para passear, ainda que seja de máscara.

Paro três minutos para conferir o WhatsApp, ouço os áudios de colegas da mesma classe enfrentando problemas semelhantes e pedindo socorro, uma mãe se solidariza, quem quer o DVD do “Croods” emprestado, e sorrateira me perco no meme que alguém mandou noutra janela, a imagem de uma mulher em frente ao computador com três crianças que jazem amarradas no tapete logo atrás. Eu rio.

Só que nem bem começo a achar graça e cogito compartilhar no grupo de mães do bairro, e sou convocada para ajudar a fazer rodar o vídeo sobre constelações da aula de ciências. Está travado. Eu também.

Levei três horas para conseguir terminar de escrever esse texto. Só nesta frase, foram 16 minutos. Contabilizei 212 “mães”, 74 “manhê”, e isso que nem todas as falas da criança foram testadas para o vírus do vício verbal.

A cebola da lentilha queimou há pouco, mais ou menos ao mesmo tempo em que as gatas derrubaram o varal em cima da terra dos vasos. Juro que, se não fosse total grupo de risco, era na casa da minha mãe que eu ia cumprir minha parcela da quarentena. Ô, mãe, me ajuda?

]]>
0
A melhor estratégia https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/01/27/a-melhor-estrategia/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/01/27/a-melhor-estrategia/#respond Mon, 27 Jan 2020 19:59:41 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/damares-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=613 Quando adiantou detalhes da política de educação sexual para adolescentes, pregando sua abstinência, o Ministério dos Direitos Humanos tinha ciência do vespeiro em que enfiava a língua. Ao lado de dezenas de colegas jornalistas, fiz parte do pelotão que fuzilou com argumentos, piadas e dados científicos a estratégia destinada ao fracasso. E quem sabe fosse justamente isso que Damares Alves queria, seguindo a máxima do falem mal, mas falem de mim.

Se estava realmente só de olho na fuzarca, excelente, temos enfim um ministério eficaz no governo. Mas, se a ideia era, a sério, provocar e convencer jovens a não transar até ter idade para a carteira de motorista, aí não havia plano mais furado – nenhuma careta de ministra jamais deu e jamais dará conta de acabar com a libido de meninas e meninos de 16 anos.

Agora, se o governo desejasse realmente investir na educação sexual dos adolescentes, haveria, além das conversas francas com professores e dos livros, uma alternativa eficaz e relativamente barata: jogar na cara a mais dura realidade que possa haver. O que, no caso de proteger de uma gravidez indesejada, significa expor a vida de uma mãe solo às meninas.

O feminismo evoluiu, verdade, e vimos lentamente abrindo os olhos para conceitos ancestrais que não nos são de mais qualquer serventia, mas a maternidade, infelizmente, ainda é um tópico dos mais romantizados, seja na adolescência ou na vida adulta das mulheres.

Paira muitas vezes, no fundo da mente de algumas de nós, a ideia de que ser mãe é algo mágico, e que, como repetem as tias e avós, uma criança é sempre uma bênção. Mentira.

Se, mesmo quando planejado, um filho pode bagunçar os planos de vida, o que dizer de uma gestação-surpresa, especialmente na juventude? E, pior, como fica se essa gestação acontece na juventude de uma garota que não vai receber qualquer apoio do companheiro que – é sempre bom lembrar – é tão responsável pela criança quanto ela?

O Ministério deveria nos levar, nós, as mães solo, às escolas de todo o país, e nos presentear com uma hora de palestra diante de salas de aula lotadas com garotas que ainda podem fazer boas escolhas. Nos sentaríamos de costas para a lousa, e provaríamos, por A mais B, que ficar sem sexo na juventude é realmente uma ideia ridícula, mas que sexo responsável é o que de mais acertado elas podem fazer na vida.

Falaríamos, claro, sobre a perda da liberdade e do sono intrínsecas à maternidade em qualquer idade, mas focaríamos principalmente na parte da batalha em que a vida de uma mãe solo pode se transformar para conseguir participação ativa, afetiva e financeira do pai da criança. Afinal, se marmanjos de 30 anos praticam o aborto masculino diariamente, por que meninos de 15 não o fariam?

Daríamos às alunas nossos próprios exemplos. Falaríamos de negligência, abandono, duelos jurídicos, desrespeito. E sobre como a justiça – aquela que muitos apreciam alardear ser sempre partidária da mulher – muito pouco nos protege ou auxilia, nos transformando em grandes guerreiras exaustas, quando tudo que a gente queria era dedicar nosso peito e energia ao amor pelos filhos e sua criação.

Com exemplos concretos, ministra, nós mudaríamos o futuro. Porque as meninas não têm que parar de ir para a cama – elas têm é que ser ensinadas a fazer isso direito.

 

 

]]>
0
Festival de DR 2020 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/01/13/festival-de-dr-2020/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/01/13/festival-de-dr-2020/#respond Tue, 14 Jan 2020 02:21:03 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/bem-casado-320x213.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=602 Pelo telefone, gesticulando bastante enquanto anda pra lá e pra cá, o rapaz negocia com alguém do outro lado da linha a locação de uma casa via plataforma de hospedagem. Fala de detalhes como número de pessoas, data e horário, questiona se prestadores de serviço são aguardados, e menciona as palavras horripilantes: “troca de alianças”.

Ele larga o celular em cima da mesa, satisfeito, e explica que acaba de fechar negócio com um casal que alugou seu sítio por um dia. A quantia é boa. Farão, lá, a cerimônia que compreende entregar um para o outro um anel, e deve tudo acontecer diante de dezenas de convidados, fotógrafos, cinegrafistas. O que antes se chamava jantarzinho de noivado, agora ganha ares de espetáculo.

Sou a única por fora da nova onda. Em uma rápida busca na internet, entendo que se trata de importante tendência, isso de fazer uma festa gigante. Eu, que achava que, no tocante aos matrimônios, havia apenas uma celebração única, me dei conta da minha senioridade. Hoje, parece, in mesmo é comemorar loucamente cada minuto.

Tudo começa com um rendez-vous para pedir alguém em casamento. Lembra quando a ocasião se resumia a uma discreta ajoelhada em um lugar bonito, só nós dois, olha que anel chique eu trouxe nessa caixinha? Esquece.

Hoje é preciso fazer live no Instagram, depois postar stories, daí chamar alguém pra editar e botar música de fundo, e de preferência roteirizar de um jeito que aumente as chances de o pedido viralizar. Torcer pela resposta “aceito” é o de menos.

Chega, então, a tal troca de alianças, com sítio alugado e superprodução. Em seguida, pelo que pesquisei, vêm as provas do vestido, com champanhe e canapés, iates com roupões personalizados ou noitadas com moças de aluguel para dizer tchau ao antigo estado civil, o dia da noiva e do noivo, e, lá nas últimas páginas da agenda, a cerimônia de casamento em si.

De onde essas pessoas tiram tanto fôlego? Animados que são, não demora muito e a noiva engravida. Sempre achei que gestações se resumiam a duas pessoas transando e um bebê nascendo, mas não. Você não imagina o potencial que a junção de gametas tem.

Não há nada mais jacu hoje em dia, dizem, que esperar o nascimento da criança para descobrir seu sexo. Bacana mesmo é fazer um chá de revelação, com balões, bolos e pirotecnia no melhor esquema meninos vestem azul, meninas vestem rosa.

Mais tarde, um chá de bebê, para angariar alguns presentes, daí o fuzuê na maternidade, e então encontros mensais a fim de acender velinhas para a criança a cada 30 dias de vida alcançados. Parabéns, Enzo Gabriel, por ser essa dádiva incessante.

A necessidade de transformar tudo em espetáculo só evidencia a mediocridade da vida de aparências que a gente decidiu levar. Nela, se nada mais é especial, que se faça de tudo uma extravagância.

Rezo pelo dia em que o disparate chegue ao ponto de recebermos em casa os convites para o Sarau de Concepção, o Evento da Primeira Papinha Salgada, a Farra da Traição no Motel, o Festival de DR 2020, e, óbvio, a Solenidade de Divórcio no Cartório Central da Cidade. Com tanta festa boa de casal e neném para ir ao longo do ano, passou da hora de os velórios se reinventarem.

]]>
0
O verdadeiro amor de mãe https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/11/25/o-verdadeiro-amor-de-mae/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/11/25/o-verdadeiro-amor-de-mae/#respond Mon, 25 Nov 2019 20:23:00 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/amor-de-mãe-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=569 O repórter do programa de variedades entrevista o elenco da nova novela, e pergunta a uma das atrizes principais como ela tem feito para conciliar gravações e maternidade. Para o protagonista, pai de dois, a questão foi sobre expectativa de sucesso, porque não é obrigação masculina conciliar filho com coisa nenhuma, e alguma mulher vai resolver isso por ele.

“Amor de Mãe” é a história que estreia hoje, e, na propaganda, já dá pra ver que o que não vai faltar é matriarca de família gigante passando perrengue. Mas voltando à entrevista. A estrela, uma mulher talentosa e bonita, mesmo que pressinta a armadilha da questão não pode mandar o repórter à merda, já que trabalham juntos na mesma emissora. Ela sorri. Explica que consegue, sim, levar à escola, mas que conta com ajuda para a hora da saída.

Sutil atmosfera de julgamento. Corte rápido. Comercial.

Aos 41 anos e há mais de duas décadas na TV, certamente a atriz já se acostumou a conversas desse tipo, tão comuns quanto antiquadas. E se eu, que nunca dou entrevista pra ninguém, mas que volta e meia sou perguntada sobre como faço para dar conta de criar sozinha um menino e ainda exercer minha pouco glamourosa carreira jornalística, já bocejo de tédio e ódio, imagino como Taís Araújo se sente.

A resposta mais honesta do mundo ali, além de um introdutório e breve sermão pelo fim de análises tão rasas, seria um “tá foda”, assim, à queima-roupa. Como ela faz para conciliar duas crianças e vários trabalhos? Não faz. “Só torço pra dar certo e sigo a vida, moço. E, ao final de cada dia, eu me deito na cama e me sinto exausta”.

Quando uma mãe admite publicamente que está cansada, outra centena de mulheres suspira em alívio e identificação em alguma parte do mundo. E, se este já seria um imenso passo em direção ao acolhimento universal caso se tornasse mais frequente, imagino o valor que teria se a gente desse nomes ainda mais reais aos nossos sentimentos.

Mais do que abrir o jogo e assumir este esgotamento tão genuíno, a gente precisa ir um pouco além, reconhecendo que há motivos para ele existir. Sinalizar que não é à toa que chegamos até aqui ajuda a eliminar a culpa que sentimos, sim, às vezes por iniciativa própria, mas que, em grande parte das vezes, nos é arremessada até que estejamos soterradas pelo último fio de cabelo, nadando encabuladas em penitência eterna.

É hora de nos libertarmos do combo promocional de patriarcado e religião que nos coloca neste lugar em que todo mundo sabe o que todo mundo está sentindo, mas onde ninguém tem autorização para falar sobre isso, que dirá para se queixar sem ter que pedir desculpas.

Não sei quais as causas específicas da exaustão maternal de uma atriz famosa, mas sei que, independentemente do padrão econômico de uma mulher e do quanto de ajuda prática ele permite que ela contrate, a dedicação emocional que educar um filho exige não há dinheiro que resolva – e, quem a ela se presta de coração aberto, vai, sim, terminar o dia descabelada, esgotada e, por vezes, chorando sozinha debaixo do chuveiro.

Posso falar do meu caso específico. Dar os tais nomes mais reais às coisas, sem pudor. Ando  cansada porque meu filho está à beira da adolescência, e promove em 24 horas mais variações de humor do que se espera de um espectador daqueles filmes fofos de cachorro que morre no final. Acorda feliz, toma café puto, almoça eufórico, chora à tarde, dorme muito doce e amável.

Não bastasse a idade crítica e inevitável, há ainda alguns complicadores, em especial a ausência física paterna, aplacada apenas duas vezes ao ano, e, com isso, a exigência de ser a única responsável não apenas por manter um ser humano vivo e respirando com todos os pedaços intactos, mas também por tomar todas as decisões que buscam essa integridade agora e pelos próximos 90 anos.

Confessar que ser mãe é às vezes pouco prazeroso, que um filho pode ser azucrinante, que há dias em que a gente sonha em como seria poder passar mais tempo sozinha no mundo, não pode ser considerado crime, nem sinônimo de falta de afeto ou responsabilidade. Pelo contrário: é apenas por meio da nossa coragem e da nossa sinceridade que conseguiremos encontrar, juntos, mulheres e homens, as soluções possíveis e o respeito necessário pela tão louvada figura da matriarca heroína.

Para mim, o amor honesto é o verdadeiro “amor de mãe”.

]]>
0
Você não é obrigada a nada https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/10/18/voce-nao-e-obrigada-a-nada/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/10/18/voce-nao-e-obrigada-a-nada/#respond Fri, 18 Oct 2019 18:48:51 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/astronauta-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=537 Quando eu estava grávida, torcia pra que não fosse uma menina. Eu tinha medo de ter uma filha e ela crescer me detestando, de passarmos a vida inteira brigadas, de ela me achar ridícula e querer ir embora para longe. Eu torcia pra não ser uma menina porque não sabia lidar com menina nenhuma, nem mesmo a menina que eu era.

Tem mais de uma década que eu dei à luz um garoto, e fiquei desde então esperando a oportunidade para me redimir do medo cego. Porque, em dez anos de amadurecimento, aprendi sobre a força e a união femininas, e sobre como, curada das minhas feridas, eu teria muito a colaborar na criação de outra mulher.

É provável que esta menina nunca aconteça – já tenho 39 anos, um único ovário, e poucas vantagens diante daquilo que os médicos gostam de chamar de relógio biológico.

Mas esta menina dá seus jeitos, e ainda que não venha de mim, ela vem para mim o tempo todo: na forma de mulheres mais jovens que cruzam meu caminho, ela se manifesta secretamente, a mandar acenos de alma discretos. E, inserida nesses encontros, a minha menina me escuta atentamente desaguar conselhos importantes.

Eu venho repetindo para ela, ultimamente, uma das mensagens fundamentais da jornada de ser mulher. Você precisa saber que não é obrigada a nada na vida. A gente demora a aprender isso, e eu gosto de dar atalhos para as minhas meninas.

Há poucos dias, em uma tarde ensolarada de domingo, revi uma adolescente que, quando conheci, tinha o rosto lavado e fresco de quem acaba de se levantar da cama. Agora, ela usava bastante maquiagem, e batia uns longos cílios postiços por trás dos quais demorei a reconhecer os traços bonitos que havia visto uma única vez, naquele rápido encontro.

Dissemos “oi”. Ela fazia força para esconder um roxo no pescoço com o cabelo curto, e garanti que não funcionaria porque fora a segunda coisa que notei quando a vi de longe (a primeira, as pestanas).

Perguntei se tinha valido a pena ganhar aquele hematoma intenso. Garantiu que não. Contou que, em meio aos beijos que trocava na balada, o homem tombou seu pescoço para o lado e aplicou o golpe com a boca. Demorei para ver que não tinha que aceitar aquilo, explicou. Ela teve dúvidas se era obrigada a gostar.

Na construção da identidade de mulher que vem fazendo, ela cogitou que talvez fosse necessário dizer sim à violência travestida de amor e sexo que às vezes nos ofertam. E, pode ser que nem percebesse, também emulava o que considero um dos maiores símbolos atuais da opressão e da ditadura da beleza: uma maquiagem carregada e padronizada.

As redes sociais estão lotadas de vídeos de meninas jovens ensinando produções com muita base pesada, sombras, correções do que nunca esteve errado, e sempre, sem depender da ocasião, os pares de longos cílios postiços colados às pálpebras.

É assim que uma mulher deve sair de casa se quiser ser considerada bonita, parecem dizer. Se quiser se encaixar no padrão. Se quiser cumprir com aquilo que dela é esperado.

Nisso, aquelas que não sabem, não podem ou não conseguem cumprir com o ritual da base, sombra, correção, cílios, sofrem caladas por entender que, assim, estarão automaticamente excluídas do lugar que gostariam de ocupar.

E, vejam, ninguém está dizendo que não é certo usar a maquiagem de que se gosta. Que é errado botar postiços para ir à padaria logo cedo pra buscar pão. Estou só mesmo repetindo à minha menina que não é preciso. Que ela não é obrigada.

Sei que ela vai enfrentar essa dúvida ainda muitas vezes ao longo da vida. Mas eu gostaria muito que ela se lembrasse dessa nossa conversa, e soubesse que não, que nunca, que jamais será obrigada a permanecer com quem não quer, a aceitar o que lhe fere, a abaixar a cabeça para a insensatez, a se calar perante a opressão.

E, se um dia você titubeou e se esqueceu da sua liberdade, não tem problema. Sempre há tempo para fazer diferente. Porque o mundo dá voltas, menina.

Ele é lindo, e azul, e todo seu. Aliás, anunciaram hoje no jornal que duas astronautas fizeram a primeira caminhada espacial 100% feminina, filha, eu não sei se você viu. E eu aproveitei esse dia importante para vir aqui te contar de novo que você não é obrigada a nada, menina, mas você pode absolutamente tudo.

]]>
0
Ágatha e os contêineres https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/09/25/agatha-e-os-conteineres/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/09/25/agatha-e-os-conteineres/#respond Wed, 25 Sep 2019 15:21:34 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/ágatha-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=508 Sentada no colo da mãe, em um banco inteiriço da kombi branca, Ágatha desfrutou de seu último invólucro antes de morrer com um tiro de fuzil nas costas. Agora, passam por perícia o veículo e seu motorista – afinal, é preciso descobrir como foi perfurada toda a proteção de um abrigo supostamente seguro, que transportava pessoas morro acima.

Enquanto o caixão da menina baixa na sepultura, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos está ocupada. Não redige manifestos indignados. Não esbraveja pelo núcleo dizimado, pelo pai que chora ao vivo no programa de TV abraçado à boneca favorita da filha. Damares Alves precisa, isto sim, lidar com a urgência que é ameaçar com processos uma revista feminista.

O primeiro punhado de terra cai sobre Ágatha. Seus parentes gritam de horror e descrença. Damares, em sincronia quase ensaiada, posta um tweet em que garante ter encaminhado denúncia de apologia ao crime pela Revista AzMina. Era inadiável, parece, acusar jornalistas brasileiras de divulgar informações da Organização Mundial da Saúde sobre o tema aborto.

Porque explicam como funciona um procedimento desses quando realizado de forma segura, as repórteres merecem ser expostas em redes sociais, deve pensar a ministra. Damares não tenta impedir a divulgação de fotos e dados pessoais das mulheres, tampouco condena as ofensas e ameaças. 140 caracteres, enter.

Ágatha está enterrada, os processos contra a revista, encaminhados. Tudo na mais completa ordem. Afinal, vivemos em uma sociedade que entende que a vida de um feto de 12 semanas tem mais valor que a de uma garota de 384. Um país em que é mais importante chorar abortos do que o assassinato de Ágatha, oito anos, perfurada de bala, os dois últimos suspiros no colo da mãe-contêiner na porta do hospital.

Em visita ao Brasil esta semana, para o lançamento de um livro, a escritora feminista ítalo-americana Silvia Federici comenta que, aos olhos do mundo, nós, mulheres, somos contêineres. Viemos a esta vida para conter e gerar crianças que, com sorte, vão desviar de tiros suficientemente bem ao ponto de se tornarem adultos.

Como na ficção tão realista de Margaret Atwood, formamos todas uma legião de aias, destinadas exclusivamente à servidão e à reprodução. Não devemos questionar, nos indignar, publicar informação ou exigir perícia. “Não há lugar para nós neste mundo”, completa Silvia, explicando que, do jeito que gostaríamos de ser, não cabemos por aqui.

Para ela, a única solução possível é modificar a ordem atual e abrir espaço – e não o oposto sugerido por aqueles que comandam, um cenário em que são as mulheres que se transmutam a fim de se encaixar.

Neste mundo, não havia lugar para Ágatha. Nem há para jornalistas que explicam o aborto. Mas há, sim, lugar para filhos de mães que não têm a condição ou o desejo de parir e cuidar de outra vida. Fetos de mulheres que vão amargar existências solitárias, isoladas de qualquer ajuda prática ou financeira. Cogitam até mesmo forçar lugar para filhos fruto de estupro ainda que a vítima não queira maternar o absurdo.

Mas não reclamem. Não examinem a kombi baleada. Não descubram nem revelem a insensatez generalizada. Vocês são veículos: sigam como invólucros metálicos, gélidos, ilógicos e funcionais.

Uma faixa na manifestação da comunidade pergunta por que o Estado segue matando. Faz-se urgente responder antes quando é que vão parar de legislar sobre nossos corpos. Porque, se não nos pertencemos nem em vida, que dirá o que acontece quando decidimos peitar a morte.

]]>
0
Sou mãe, desculpa aí https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/09/16/sou-mae-desculpa-ai/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/09/16/sou-mae-desculpa-ai/#respond Tue, 17 Sep 2019 01:57:10 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/escola-320x213.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=496 O motorzinho esguicha fragmentos de dente e água por um perímetro que vai muito além da boca. Dr. Henrique enxuga tudo com uma gaze, enquanto me questiono por que caprichei na maquiagem. Agora só há base em metade da cara, e eu vou ter que ir assim mesmo para a reunião da escola. Na escala da futilidade, marca entre sete e nove pontos quem quer ir bonita ao encontro de pais e mestres.

Divago em silêncio no elevador sobre o fato de uma assembleia que reúne muito mais mães do que pais ainda ter esse nome secular, e no espelho dá para ver que meu ombro e pescoço estão cobertos por um fino pó de resina da restauração. Estou atrasada há quatro minutos. A Zona Azul venceu já há mais de 15.

Óbvio que quem desenha o cronograma da reunião quer deixar claro logo de cara quais são as mães ponta firme e aquelas que são parte do meu time, porque está programada para os primeiros 30 segundos a interação fofa entre filhos e família. Quando finalmente consigo chegar à sala de aula, o único aluno sozinho tem meu nome no RG. Equipe de uma mulher só, essa a das mães que se atrasam.

Eu não devia ter agendado o dentista para o mesmo dia da reunião e da entrega daquelas duas matérias. Se não tivesse ido tratar canal, teria chegado à escola a tempo, talvez até mesmo antes de tudo, pode ser que eu tivesse aberto o portão do colégio de madrugada, chegaria antes que todo mundo, eu ia ser muito eficiente, tenho certeza absoluta.

Mas não havia data para consulta a não ser hoje ou no final de novembro, e penso que sou uma pessoa um pouco pior no mundo quando estou com dor de dente, de modo que marquei. E me atrasei. E agora estou aqui correndo para alcançar as outras famílias no exercício fofo proposto, o garoto agradecendo minha presença e contando que teve medo que eu não chegasse. Eu também tive (pensei, mas não disse).

Essa escola anda muito moderna. Hoje tem um fotógrafo fazendo imagens de todos, e tento parecer engajada e pontual quando ele passa por nossa dupla. Não posso mexer no celular, ou serei a mãe dispersa no álbum exposto no site da escola. Espero que meu chefe compreenda e perdoe a demora na resposta sobre o primeiro parágrafo da reportagem. Digam xiiiiis!

A segunda parte da reunião – que bem podia ter sido a primeira, pro meu atraso não causar danos emocionais eternos no meu único filho, mas não – começa já sem as crianças na sala. Descolo uma cadeira ao centro e bem na vista da professora, porque quero compensar agora todos os males que provoquei em minha existência como mãe. É hora de brilhar.

Quero prestar atenção. Quero estar atenta. Primeiro assunto é a importância de dialogar com as crianças em casa. Ufa, acho que nessa eu gabarito. Segundo assunto, empatia. Estamos bem, vamos sobreviver, a previsão é de que tudo dê certo.  Mas a pauta vira, e agora é impossível atingir minha meta. Vamos falar de lição de casa e rotina de estudos, convida a professora. E eu tenho alternativa?

Experimente ser mãe solo de filho único, com emprego em tempo integral, sem babá ou faxineira, nem papai nem vovô nem vovó morando por perto. Agora se meta em uma reunião de escola. Você já está deprimida ou ainda falta um pouco?

É muito duro admitir o próprio fracasso em uma ocupação que escolhemos pra nós mesmos. Ninguém me obrigou a engravidar, é verdade, mas também ninguém me avisou que eu ia ficar sozinha desde sempre. E que, por trabalhar até tarde, não ia dar conta de ajudar a criança no dever de casa ou na preparação pra prova.

O menino faz contas e textos sempre sozinho. Aquele 6,5 em Matemática sou muito mais eu que ele. Quando dá dez da noite, ainda falta tanta coisa minha, que eu mal posso ser dele. Será que ele vai passar de ano? Será que se sente diferente dos outros? Será que ele queria ser filho de outra pessoa? Essa infância nunca mais volta. Estraguei tudo pra sempre. O conhecimento é cumulativo, diz na lousa uma frase. Será que ele me perdoa?

A professora ainda fala, e eu acho que quero um abraço. Pode inclusive ser um abraço dela. Surge o aviso de que as vagas para o período da manhã no ano que vem estão quase esgotadas. Que é preciso definir o que se quer. E pagar até dia 30.

Alguém tem alguma pergunta, ficou com alguma dúvida? Sim, prô, eu aqui, de verde, bem no meio, maquiagem borrada, dente remendado e cara de choro.

– Como é que a gente faz pra ser mãe e sobreviver a toda essa culpa?

 

]]>
0