Do Meu Folhetim https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br Meias verdades sempre à meia luz Thu, 30 Sep 2021 12:29:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Pra te lembrar de não morrer https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/09/30/pra-te-lembrar-de-nao-morrer/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/09/30/pra-te-lembrar-de-nao-morrer/#respond Thu, 30 Sep 2021 11:38:13 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/erika-320x213.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=974 Quando a Erika morreu, eu tinha preparado para ela uma carta que falava sobre como eu tinha descoberto que o Neutrox era o melhor condicionador do mundo. Aquele, que a gente usava quando era pequena e que, de uma hora para outra, alguém decidiu que não era mais eficiente e que seria preciso gastar centenas de reais por um creme para passar no cabelo todo dia.

Eu queria contar para ela que agora eu conhecia o segredo, e tinha pensado em uma maneira muito inteligente de, puxando por este assunto, lembrá-la de como a sua ajuda tinha sido fundamental quando me deram aquele diagnóstico errado no final de 2016.

Porque eu até pensava que ia morrer, com os meus pais ali chorando na sala no dia de Natal, mas a única coisa que efetivamente me preocupava era o meu cabelo. Eu não queria ficar careca. E a Erika, que, diferentemente de mim, tinha recebido um diagnóstico certo, já sabia que perder os cabelos não significava nada. Ela me ensinou, paciente, que ter uma doença grave ajudava no processo de entender a vida e o quanto cada um se importa com ela.

A gente se falava muito naquela época. Escrevia, na verdade, porque hoje, além de pagar caro nos condicionadores, ninguém mais se fala, só troca mensagem. E a Erika me mandou muitas conversas escritas nos meses dos diagnósticos.

E eu? Bom, eu, querendo ser perfeita, e escrever a carta perfeita, querendo sempre ser a melhor no mundo, guardei o texto que escrevi para a Erika quando soube que ela estava de volta no hospital. Queria mexer mais um pouquinho, só, trocar umas coisinhas.

Dou aulas de escrita e, no meu curso, faço os alunos escreverem com tempo contado, e é sempre bem pouco tempo, bem menos do que eles gostariam. É para aprender a entregar as coisas, eu explico, para entender que um texto está pronto na hora que tem que estar. Mas a minha carta ficou pronta e eu não enviei.

Não disse à minha amiga tudo que ela merecia ter escutado.

Que ela era grande. Que não tinha sido um esforço perdido me mostrar que perder os cabelos, perder sobrancelhas, cílios, perder um peito, os dois, a carne, a Erika me mostrou que o que importava mesmo era o foco em não perder o fôlego. Em continuar pedalando. Seguir em frente aos pedaços, mas sem mudar de direção.

Junto com a carta, eu ia mandar um quebra-cabeças que comprei, uma fotografia de um templo na Tailândia. É complicadíssimo de montar, as 500 peças são todas iguais, mas eu sabia que a Erika ia dar conta. Ela tinha a Tailândia na memória, deu o nome do país para a cachorra, e o que são 500 peças iguais para uma mulher que sabe juntar os pedaços todos?

Toda mulher de bicicleta que agora eu vejo na rua eu acho que é ela. E eu quase paro toda ciclista para dizer olha, está aqui a carta, eu agora ando com ela no bolso para o caso de esbarrar em você no caminho, veja que sorte a minha, poder reparar o que eu não consegui fazer antes.

Acrescentei um parágrafo à carta esses dias, imprimi de novo. Precisava contar à Erika que comecei a nadar há três semanas, e que me sinto um tronco de árvore sendo levado pela enxurrada quando me comparo aos outros alunos das raias ao lado.

Ela ia mandar eu parar de me comparar. Porque, nessas de querer ser perfeita, ela repetiria, eu deixo sempre passar tudo que de fato importa. No final da carta, eu explicava: comecei a nadar para enfrentar a dor daquele mesmo problema de que falávamos em 2016. Aqueles nossos diagnósticos, e o dela tão preciso que por pouco não acerta também a hora em que ela, a Erika, morreria.

Agora, eu nado para esquecer que dói. E nado para me lembrar de você, para ser melhor, para aprender a não esperar pela palavra perfeita quando nada na vida tem tanta precisão, nem mesmo a sentença dos seus médicos. Nadando afobada, um tronco oco na água corrente, eu tiro a cara da água para respirar e me lembrar de não morrer.

Eu podia ter pedido isso a você: te lembrar de não morrer. Faltou coragem.

 

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A língua da morte https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/02/24/a-lingua-da-morte/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/02/24/a-lingua-da-morte/#respond Wed, 24 Feb 2021 13:46:06 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/pignato-gato-coração-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=959 Sei que Santo Expedito cuida das coisas urgentes. Tinha um amigo que colecionava santinhos com versões variadas das cores das roupas do santo, da proporção do corvo que ele esmaga com a sandália, e da paisagem atrás da cena. E este amigo explicou que, por mais que na prática fizesse Expedito de baralho, acreditava que algum poder emanava daquele bolo de imagens que ele carregava na bolsa.

Das outras santas, cujos nomes estampam as velas de sétimo dia na prateleira do mercadinho perto de casa, eu não sei nada sobre a área de atuação. Não sei exatamente quem ajudam. E, se de fato ajudam alguém, eu provavelmente seria a última da fila dos assistidos, porque não tenho fé em coisa alguma.

Fácil apelar agora. Dizem que quando o avião está caindo todo mundo sabe rezar um Pai Nosso. Depois de enterrar minha gata, eu agora quero acender uma vela. Fiz um altarzinho em cima da mesa de trabalho, tem foto, lembranças dela, e penso que devo iluminar tudo por sete dias, queimando. Escolho a vela do anjo da guarda, parece neutra. Animais certamente têm quem olhe por eles.

Também decidi cuidar de plantas, na tentativa de lidar com o desespero da ausência. Comprei duas orquídeas, que sei que vou matar muito em breve –não sei nada de santos, de botânica sei menos ainda. Botei lírios num vaso, iguais aos que entreguei no consultório da veterinária, para agradecer por tudo. O perfume é bom e distrai.

Uma aula de tricô online está agendada para quinta-feira. Quem sabe produzir cachecóis e meias para bebês que nunca vou gerar possa acalmar a saudade. Retomei, ainda, os livros de colorir, embora não domine qualquer técnica artística nem possua instrumentos adequados, e insista em preencher as formas das páginas com lápis de cor velhos, emprestados do quarto do meu filho.

Ele se esqueceu de me dizer alguma coisa bonita no dia da morte da gata. Ligou só para perguntar se podia jogar videogame àquela hora. Criança é assim mesmo, minha mãe defendeu. Minha avó não me defendia das coisas nunca. Um dia eu roubei uma calculadora da minha prima. Ela convocou todos à sala de jantar e expôs minha contravenção, me fazendo pedir desculpas publicamente.

Eu acho que a gente devia ser mais exposto às coisas desde cedo. Não à humilhação pela cleptomania, o psicólogo cuidava dessa parte. Mas que era importante, por exemplo, a gente ter mais contato com o inevitável da morte. Por que é que nunca me levaram a um velório antes de eu ter idade para dirigir um carro? Me esconderam todos os enterros, cremações, choros diante da má notícia.

E, na ideia de me poupar da dor, deixaram de me ensinar a lidar com ela. Tenho 40 anos. A gata não seria a única morta duma existência assim tão longa, obviamente. Mas, porque meus mortos só me foram autorizados depois de adulta, acho que vivo mal cada nova perda. Não aprendi o luto, e então me obceco com plantas, tricô, livros de colorir.

Há livros e filmes sobre a morte, feitos especialmente para as crianças. Assisti um, outro dia, do pianista que cai, distraído, no bueiro aberto na rua. É lindo, como são lindas as histórias que recebo frequentemente, pelo trabalho, contadas pela literatura infanto-juvenil.

Mas e se, além de lindas, elas também desistissem um pouco de investigar e adivinhar o que acontece com quem se foi, e retratassem o que já se sabe, pela prática, que acontece com quem ficou?

Deve ter desenhos que falam abertamente da ausência e da saudade. Do vazio que se abre quando um ser querido desaparece para sempre. Mas acho que precisamos de mais. De coisas, encontros, aulas, qualquer oportunidade que fale para as crianças sobre o universal “nunca mais”.

Virei uma adulta inábil diante da morte. E, ao mesmo, eu sou tão feita dela. Meu peito e minha carne, tecidos de perdas. Meus muitos mortos tentam, a cada vez que se apresentam, me ensinar um pouco a maior lição da vida. Aquela que fala de solidão, força e impermanência.

Eu juro que tento assimilar tudo. E sigo. Fazendo as lições e acumulando saudades. De vez em quando ainda compro velas de sétimo dia e orquídeas que não sei usar ou manter. Aos tropeços, estudo. É parecido com quando a gente resolve aprender outro idioma depois de velho. É mais difícil, mas não impossível.

Um dia, vou me tornar fluente na língua da morte.

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Por favor, me ame https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/03/02/por-favor-me-ame/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/03/02/por-favor-me-ame/#respond Mon, 02 Mar 2020 22:25:01 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/privada-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=631 Embora já tenha sido acusada nas redes sociais de ser branca, privilegiada e rica, sempre gosto de frisar que sou inegavelmente privilegiada e branca, mas também uma pessoa bem distante do dinheiro que gostaria – e precisaria – ter na carteira. Recentemente, uma moça, muito brava, dizia que nós, as favorecidas, deveríamos lavar privadas para entender a vida. Achei curioso, porque nunca tive faxineira e continuo aqui, sem saber do que se trata a existência humana.

Tem duas semanas que me mudei, e agora moro com meu namorado. Além de um canto especial para a bandeja de areia das minhas gatas velhas, ele também gentilmente me presenteou com a dádiva de uma faxina profissional por semana, algo que já fazia parte da vida dele desde sempre. É um nada, eu sei, mas foi suficiente pra eu me achar a Carolina Ferraz do meme.

Pode ser que deixar de esfregar meu próprio vaso me deixe ainda mais ignorante filosoficamente falando. Mas, putz, acho que estou disposta a pagar o preço. Já foram duas segundas-feiras, duas lavagens oficiais, e realmente me ocorreram poucas epifanias neste período.

Se sigo sem saber o sentido da vida, ao menos continuo integralmente desperta para minhas próprias fraquezas emocionais. Tenho medo da rejeição, por exemplo. E achar que a faxineira não foi com a minha cara e me detesta tem transformado o que deveria ser um momento de felicidade plena, com a privada cheia de espuma cheirosa, em sofrimento infantil.

Dizem que é ruim demonstrar defeitos assim, publicamente. Tipo admitir que morro de medo de envelhecer, justo eu, que prego tanto a autoaceitação, que mando todo mundo ler Mirian Goldenberg. Dei sorte que, não tem muito tempo, gourmetizaram essa paúra super comum, e agora ela se chama “compartilhar a rotina de skincare”. Assim mesmo, bem comprido.

Você passa 30 produtos caríssimos no rosto, pescoço e mãos, toma 14 cápsulas de colágeno, e mostra para todo mundo esse ritual escravizante e infernal. Pronto: o que antigamente era tido como covardia, agora é aplaudido nas redes. Literalmente maquiar o pânico e travesti-lo em inspiração para as massas.

Gostaria muito que também fosse cool minha fobia de não ser amada. Que encontrassem um jeito de deixar glamourosa a carência que me faz querer abraçar a faxineira e perguntar onde foi que errei. Oi, meninas, tutupom, hoje eu vou mostrar pra vocês minha rotina de desespero pela aprovação alheia, primeiro eu me humilho, depois eu choro num canto.

Nem décadas de terapia combinadas ao esfregão com Pinho Sol deram conta de sanar alguns buracos que, parece, carregarei pela vida inteira. Há sempre a esperança de que a temida velhice traga a compensação da maturidade, mas vai saber. Até lá, resta o conforto da consciência plena de que, dura, porém privilegiada, nasci com o dom de escrever. E que, pelas linhas, tento sempre exorcizar meus fantasmas.

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O crime do cafuné https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/07/06/o-crime-do-cafune/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/07/06/o-crime-do-cafune/#respond Sat, 06 Jul 2019 16:00:50 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/07/afeto-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=434 Um Jesus Cristo cabeçudo feito em biscuit divide o scroll com blusas de leopardo e manga bufante. Se descer mais um pouquinho a página, aparecem marmitas de estrogonofe fitness, roupinhas para cachorro, aulas de italiano e uma máquina de limpar carpete. Parece a antessala do inferno, mas é só um grupo fechado no Facebook.

Somos mais de 260 mil membros. A ideia é que, lá, cada um peça indicações de um serviço ou profissional específico, ou ofereça seu trabalho ou produto. Quem se interessar entra em contato. É no tal grupo dos pontinhos, por exemplo, que anuncio meus cursos de redação, e onde já vi minha vizinha fazendo promoção de sabonetes. Estamos todos nos virando.

Postagens populares geram um sem número de perguntas sobre quanto custa, quantos vêm, como funciona. E, como as regras da comunidade compreendem que valores e informações só podem ser passados via mensagem privada, mesmo o serviço mais incrível de todos não vê muita criatividade na interação dos clientes em potencial – é inbox que o match se desenrola.

Só que aí veio o Leo para tumultuar tudo. Novo no grupo, fez o début de apresentação do seu trabalho na sexta-feira e, no sábado, já era a publicação mais lida e comentada. Dos 145 emojis, mais de uma centena gargalhava. Dos 114 comentários, apenas quatro pediam detalhes sobre o atendimento.

Leo oferece cafuné. Atende na cidade de São Paulo e adjacências, e baseia seu método na técnica de Comunicação não Violenta. Em atendimentos de 45 minutos, aplica carinho na cabeça dos clientes, que também podem ficar à vontade para desabafar sobre questões que os estejam afligindo, ou conversar sobre o clima, ou contar os planos para as férias com as crianças em julho.

Assim como acontece com o Jesus Cristo de biscuit, há quem possa considerar o trabalho de Leo supérfluo. Acontece que, no post do medonho filho de Deus colecionável, ninguém questionou o talento do artesão – ficou todo mundo lá, olhando para o boneco inútil, mas sem dizer palavra a respeito da sua falta de serventia ou estética questionável.

Já no post de Leo, a ideia parecia mesmo aniquilá-lo.

Charlatão, louco, aproveitador, psicopata. De alguém disposto a distribuir afeto, Leo rapidamente se transformou em delinquente. Fuçaram seu perfil pessoal. Encontraram fotos de bundas em um de seus álbuns. Vasculharam a biografia pública atrás das credenciais acadêmicas. O retrato de perfil, sem camisa e tocando violão na cachoeira, só podia significar algo muito maligno.

Leo começou respondendo às perguntas com calma. Sua intenção era ajudar pessoas sozinhas e carentes a receber algum tipo de afago. Terminou deletado pela administração do grupo sem qualquer explicação.

Terapeutas locais se apressaram a justificar que não se pode comercializar ajuda psicológica sem formação universitária – mesmo que Leo não estivesse vendendo consulta, e sim cafuné, mas isso não conta, porque importante mesmo é dar lição de moral e botar banca. E, se possível, ridicularizar tudo aquilo que não se reconhece e aceita dentro da uma visão conservadora de mundo.

Escolher homens e mulheres para levar para a cama via aplicativo de celular, como num menu de restaurante, é admissível para os críticos de Leo. Deitar-se numa maca e permitir que alguém vestido de branco cubra seu corpo com pedras quentes para curar doenças, também. Engolir um pedaço de pão de olhos fechados porque alguém lhe disse que aquele é o corpo de Deus, também é sussa.

Ninguém pede as credenciais do padre, da massagista, da mina do Tinder. Ninguém questiona a utilidade ou o bom gosto dos ensaios fotográficos de gestantes seminuas ou recém-nascidos enrugados. Outro dia, uma garota se ofereceu como “Melhor Amiga Profissional” no grupo, e ninguém falou nada, vasculhou nada, apedrejou nada. Talvez a tenham até contratado – quanto custa, quantas de você vêm, como funciona, quanto fica o frete para Perdizes.

Mas o Leo, não. O Leo merece ser expulso. Em uma época em que todo mundo sabe melhor do que os outros a respeito de tudo, quando se pensa que todos têm jurisdição sobre os corpos e sentimentos alheios, um garoto de 20 e poucos anos que quer distribuir cafuné só pode mesmo ser um vigarista.

Volta e meia penso sobre como não ganho cafuné de ninguém nunca. Meus pais são maravilhosos, mas pouco afetuosos fisicamente. Meu filho é uma criança, e meu namorado não é afeito a este tipo de carinho. Ressinto a falta de toque e aconchego tão típicas da infância, quando alguém sem diploma podia botar a gente no colo – se assim a gente escolhesse – e nos aplicar uma sessão de cafuné.

Acontece que estamos presos em bolhas de interação social virtual, das quais, ao que parece, só é permitido escapar se for para visitar um especialista. Se for para pagar caro por algo. Se for para agir de acordo com a aprovação alheia. Foi isso que aprendi hoje, quando, ao ver o post, me animei em pagar pelo carinho do Leo (enquanto quem não quisesse pagar podia apenas pular o anúncio). Mas deletaram o post, deletaram o Leo, e deletaram as boas intenções do mundo.

Caramba. Eu só queria um pouquinho de cafuné.

 

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Tem sempre um homem me explicando https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/06/19/tem-sempre-um-homem-me-explicando/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/06/19/tem-sempre-um-homem-me-explicando/#respond Wed, 19 Jun 2019 10:22:58 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/06/mansplaning-320x213.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=419 Você já conhece a mecânica: eu escrevo no computador, publico aqui neste espaço, quem fica curioso lê, muitos gostam, outros detestam, e na semana seguinte tudo se repete. É assim já há alguns anos, sejamos nós quem formos e de onde quer que venhamos. Acontece que excepcionalmente hoje vou sugerir que, caso você, leitor, seja uma mulher, peça a ajuda de um homem para entender o que se segue.

Não que eu nos considere incapazes, longe de mim, fazemos parte do mesmo time. Sempre confiei cegamente em nosso potencial. Mas é que, de uns tempos para cá, os homens passaram a me explicar coisas com tão mais frequência do que já o faziam, que ando pensando se nascemos realmente habilitadas a assimilar alguma coisa.

O rapaz que meteu a mão na minha coxa essa semana, por exemplo. Parece haver a possibilidade de eu não ter compreendido corretamente a natureza do gesto deslavado, segundo me explicou um amigo. Ainda que se tratasse de um instrutor e o ambiente fosse o da academia, existe a chance de que o que eu supus se tratar de assédio tenha sido apenas um toque de adestramento.

Pareceu um apertão gratuito na minha perna, mas foi uma cortesia. Viu só? Se ninguém me explicasse, eu nunca saberia.

Depois de uma série de visitas de inspeção, hoje começam as obras no banheiro de serviço lá de casa, e o zelador, de quem já carinhosamente já tratei aqui nesta coluna, passou dois dias fazendo questão de explicar minhas obrigações como inquilina, inclusive aquelas que nem constam do contrato de locação ou do regulamento do prédio.

Vai ver ele gentilmente se dispôs a me adiantar com exclusividade regras ainda inéditas, mas que estarão presentes na nova versão revista e ampliada destes estatutos, a ser lançada em data a definir. E eu, esta ingrata, tendo a coragem de achar ruim.

Tanto ele quanto o porteiro e o encanador só querem meu bem quando me explicam que é preciso quebrar paredes para acessar tubulações. Eu tinha mais era que agradecer.

O médico que entrevistei pra matéria, também, foi outro cara todo cheio de boa vontade. E eu, que bruxa, aborrecida à toa. Torcendo o nariz para um ato generoso de um profissional da saúde que dedicou seu tempo a explicar para mim o que uma mulher sente durante o orgasmo e nas cólicas menstruais. Olha que, agora, acho que finalmente eu entendi. Tomara.

Já o médico que não entrevistei pra matéria era de um altruísmo sem fim – depois de aceitar responder às minhas perguntas, voltou atrás no meio da conversa, dizendo que minha pauta não era tão boa quanto aquela outra que ele, urologista, imaginou para o jornal, e que só continuaria respondendo se seguíssemos pela ideia dele. Eu quis chorar e senti raiva, mas apenas porque ainda sou uma pessoa pequena no caminho espiritual da iluminação. Eu tinha mais era que ter lhe dado um forte abraço.

Tem gente que se lembra ainda da boa sorte que tive recentemente, ao ganhar uma explicação em rede nacional a respeito de gêneros literários, bem como sobre minhas reais intenções ao escolher um deles na hora de planejar um livro. Sou uma autora infantilóide que não manja nada de biografias. Já pensou se ninguém me explica e eu esqueço meu lugarzinho no mercado editorial? Ufa, que essa foi por pouco.

Daí que, em meio a esse mar de generosidade, já tem um mês que venho sentindo um chamado. Nada a ver com o descarrego na roda de umbanda que frequento, mas com a escola de kung fu que abriu na rua de baixo. Espio as aulas dia sim, dia não, e, além de pirar na luta quase dança, ainda acho fabuloso o fato de haver mulheres em todos os grupos, e de um dos mestres se chamar Manuela e portar uma faixa preta nos quadris.

Em outras épocas eu interpretaria meu fascínio como um sinal de que é hora de fazer a matrícula, mas, como ando assim, digamos, muito mulher para compreender as coisas sozinha, achei por bem me abrir com um dos alunos: meu filho, dez anos, homem, turma infantil das 19h.

Se ele achava que eu tinha capacidade para aprender os exercícios, se na opinião dele eu ia conseguir chutar bem, se ele vê alguma possibilidade de as pessoas rirem de mim enquanto erro tudo na frente do espelho – não deixei de fazer nenhuma pergunta.

Guardei para o final aquela que considerei a mais difícil de responder (mesmo quando se é um homem parece que vez ou outra rola uma incerteza, me explicou um psicólogo certa feita, para uma reportagem). “E se eu não nasci para lutar porque não sei como se bate de verdade em alguém?”, indaguei.

E ele, muito masculino, devolveu: “Daí é só buscar dentro de você toda a irritação com o que não pode mudar na vida, e descontar a frustração no tatame. É muito simples, mãe, só não vê quem não tá a fim”.

Finalmente uma explicação decente. O mundo talvez ainda tenha salvação.

 

 

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Um capitão sem amigos https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/05/19/um-capitao-sem-amigos/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/05/19/um-capitao-sem-amigos/#respond Sun, 19 May 2019 15:43:28 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/05/pinóquio-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=403 As notificações do grupo da família no WhatsApp estão desativadas até 2022, mas volta e meia acho de bom tom conferir o que os primos escrevem para tumultuar a sequência de figuras fofas de gatinhos que as tias mandam. A reação é quase sempre de susto, não porque os comentários sejam surreais – eles são, mas a gente acostuma -, mas sim porque eles parecem escritos pelo meu ex-marido: magoados, amargos, ressentidos. E o ex, obviamente, já nem faz mais parte do grupo.

Além dele, expulso compulsoriamente após o divórcio, já tem alguns meses que também a parte legal e sensível abandonou a comunidade. Sobraram só os bolsonaristas e os de estômago forte, além de uma meia dúzia de desatentos o suficiente para passar sem ver pelas provocações dos da primeira categoria. O fato é que, tirando as mensagens de parabéns e os lamentos pelos familiares já desencarnados, as mensagens digitadas naquela terra são quase sempre uma enfezada defesa da política atual.

Tanto meus primos quanto meu finado digníssimo têm em comum esse traço editorial: produzem sempre obras embrulhadas em ranço. Até mesmo quando o assunto é dos mais neutros, imprimem na escolha das palavras um certo nível de deboche misturado a raiva antiga. Se a pauta evolui para análise de figuras no poder das decisões, então, ainda pior.

Eles, os parentes, vivem putos atacando quem acha patético fazer arminha com a mão, e ele, o ex, está sempre revoltado com o simples fato de eu continuar existindo. Todo mundo irado, todo mundo digitando merda. Qualquer semelhança com os discursos de ódio do Planalto não é mera coincidência.

Desconfio que nenhum deles tenha amigos. Os primos, o ex, o Jair. Porque passar raiva todo mundo passa. Desejar dor de dente a um desafeto também é intrínseco ao ser humano, assim como se imaginar autor de lindas réplicas quilométricas e ofensivas na medida. A diferença está, no entanto, no que cada indivíduo faz com essa bile depois que ela brota na garganta – você engole ou cospe? E, se cospe, tem quem ajude a limpar?

Pense em para quantas coisas boas os amigos servem. Companhia, cumplicidade, estender a mão, pegar no pé. São craques, sobretudo, em impedir catástrofes – é um amigx quem esconde a chave do carro depois que a gente já tomou todas, e é um amigx quem pode revisar os textos que a gente deseja postar no Face, mandar no Whats, citar na DR.

Sem o filtro da consciência externa, e sem a pesada mão do editor sobre os pensamentos, estamos todos na roça. Publicamos obscenidades, respondemos absurdos, ofendemos e tretamos com todo mundo, enquanto, se houvesse um amigo por perto, nada disso acontecia. Uma voz perguntaria, suave: “Será mesmo, capitão? Talvez o senhor não devesse”. E o resto (não) era história.

Tudo bem que fazer amigos na infância já não é fácil, imagina depois de velho. Talvez fique ainda mais complicado quando se é de extrema direita, imagino. Mas, se até Pinóquio, o menino com corpo e cara de pau da famosa fábula, descolou um conselheiro zeloso como o Grilo Falante, por que estes outros garotos também despreparados para o mundo não conseguiriam?

Na história, é a Fada Azul quem dá o raciocínio ao boneco. No Brasil de 2019, as coisas já há tempos não são tão lúdicas, e o única solução para a socialização dos homens sem amigos responde por um nome menos mágico: “lucidez”.

 

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Seis conselhos para a felicidade https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2018/12/11/seis-conselhos-para-a-felicidade/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2018/12/11/seis-conselhos-para-a-felicidade/#respond Tue, 11 Dec 2018 16:07:49 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2018/12/folhetim-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=316 Em tempos de desengano com gurus demasiado humanos, é importante que se diga que quem sou eu para vir aqui despejar conselhos na timeline de alguém – jornalista nem é gente. Ainda assim, acredito que sobreviver semi-intacta por 38 anos (poucos órgãos perdidos, moderado dinheiro na conta, abundante savoir-faire no lombo) me coloca em uma posição privilegiada enquanto ser humano. Posso não ter relevância, mas alguma coisa de mundo eu entendo.

Desde que me tornei mãe, mais de uma década atrás, espero diariamente uma pergunta que nunca veio. Já fui encurralada para explicar a função das camisinhas, para versar sobre a existência de Deus e o que acontece depois que o coração para de bater, mas, até agora, ainda não precisei responder àquela que considero a questão mais difícil de todas: como, afinal, mãe, a gente pode ser feliz na vida?

Óbvio que já ensaiei todo o invólucro da argumentação. Eu diria, antes de qualquer coisa, que felicidade, filho, é um conceito superestimado pela humanidade, e que ninguém consegue ser pleno o tempo inteiro, e que, veja só que edificante, o sofrimento tem lá sua função na existência. Mas, sejamos francos, que bela bosta de resposta pode surgir de uma abertura deste nível? Se não posso evitar ser evasiva, é certo que a felicidade também tem direito à dissimulação.

E assim surgiu uma lista. Com seis itens. Que pode tanto ser lida e ignorada, como é próprio de todas as listas, como também salva nos favoritos, andar impressa na carteira, virar quadro decorativo para a cozinha, enfim, é tão despretensiosa quanto adaptável. Não espero que seja empregue, tampouco repassada adiante. Tem o propósito único de, estando você em apuros diante da questão mais difícil da raça humana, haja à mão uma saída.

1) Você não tem controle sobre nada. Desista o quanto antes de querer ter.

Um indivíduo médio leva cerca de três décadas para compreender que não tem o poder de regular o que acontece ao seu redor. Estou aqui para encurtar este prazo. Aceite o mais cedo possível que todos os fatos da vida transcorrem à parte qualquer anseio, oração ou praga que se empregue sobre eles. Não controlamos o comportamento dos outros, a opinião deles sobre nós, não controlamos amores, desejos, tempos. Somos sujeitos de um destino, e abraçá-lo, aprendendo com ele, torna a viagem menos turbulenta.

2) Lave a louça suja sempre que acabar de usá-la.

Zero espiritualidade e misticismo, apenas um conselho para a vida prática. Jamais permita que sua louça se acumule na pia, formando pilhas desanimadoras de gordura, colheres de pau e arroz velho no ralinho. Resolva imediatamente após a refeição, de maneira a economizar tempo e bom-humor.

3) Seus pais eram pessoas como você antes do seu nascimento. Esforce-se para enxergá-los assim.

Parece óbvio, mas o pai e a mãe da gente tinham uma vida antes de virar o pai e a mãe da gente. Eles eram, muito provavelmente, pelo que o curso natural indica, adultos jovens com sonhos, rotinas, interesses e talentos. Possivelmente gostavam de se divertir com amigos, de fazer sexo, beber cerveja, assistir TV. E, quando tiveram o primeiro filho – que, se não é você, é uma irmã ou irmão seu -, não tinham a mais vaga ideia de como proceder, de modo que o que tentaram foi no mais puro chute e mirando na mais alta sorte. Compreenda-os. Veja-os. Antes que seja tarde demais.

4) Por falar em filhos: se for ter os seus, escolha fazê-los com alguém de quem você possa ser amigo pela vida inteira.

Amor romântico e casamento acabam. Esposas e maridos são títulos temporários, enquanto pai ou mãe do seu filho, não. Se desejar realmente ter uma família, construa-a com uma pessoa com quem você tenha não necessariamente o desejo, mas, sim, a habilidade de conviver para sempre. Ser amigo de quem divide com você a criação de um ser humano deveria ser obrigatório, já que o clichê de que ninguém pede para nascer é a mais pura verdade.

5) Jamais cancele um compromisso que assumiu com amigos ou namorados por preguiça de sair de casa.

Se combinou de sair com alguém com quem você se importa, não desmarque por nada menos que uma parada cardíaca ou enchente no bairro. O sofá pode parecer tentador na meia hora que antecede a saída de casa, mas o benefício de cumprir com o acordado e desfrutar de momentos de alegria ao lado de pessoas caras é impagável e dá sentido à vida.

6) Não ofereça aos outros menos do que você pode dar.

Ao longo da vida, os encontros com pessoas que nos dão menos do que acreditamos merecer serão mais comuns do que aqueles com quem a troca parece equilibrada: menos amor, menos respeito, menos dedicação. Isso, no entanto, não é justificativa para que você deixe de ser fonte de virtudes para os outros. Pode soar injusto e piegas, mas o tempo vai provar a validade de se sustentar um caráter inabalável. Espalhe o que você tem, e não o que você recebe.

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Os solitários da praça de alimentação https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2018/05/14/os-solitarios-da-praca-de-alimentacao/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2018/05/14/os-solitarios-da-praca-de-alimentacao/#respond Tue, 15 May 2018 01:20:50 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2018/05/praça-320x213.jpg http://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=168 Adultos são meninos e meninas altos, de terno, salto alto, que caminham pela Paulista, Copacabana, pegam ônibus e fila de mercado, todos com seus buracos no peito encobertos por roupa de gente grande, contas e crachás de empresas importantes. A gente se esbarra nos caminhos, deixa cair uma pilha de livros, a bolsa, e corre para tapar de volta o rombo antes que alguma outra criança grande perceba.

Acho sempre, enfim, que a gente cresce só em tamanho, e que tudo que se era com cinco, dez anos, talvez, continua para sempre existindo. O gosto por pudim furadinho ou liso brilhante, o talento com as figurinhas no bafo, o nojo de sabonete de aveia no banho e o prazer em desfiar o cobertor de chenille até pegar no sono – preferências se misturam aos desconsolos e moldam uma personalidade que, a exemplo das orelhas, já nasce praticamente do tamanho que terá até o fim da vida.

Muito por isso, tenho dó de adultos que comem sozinhos em praça de alimentação. Porque meu raio-x desnuda uma menina sem amigos atrás do uniforme da enfermeira mastigando mecânica um filé de frango com batatas. E o garoto avacalhado por ser ruim de futebol agora almoça todo dia em silêncio, mesmo quando racha a mesa de maneira tão próxima com desconhecidos que, se esticarem a mão, beliscam um pedaço do seu pastel de carne.

Um amigo diz que é justamente esse senso de coletividade que o fascina nas áreas dos restaurantes em centros comerciais. Que elas o fazem lembrar e rememoram, resistentes, o clima das tavernas, e isso com muito mais poder que os restaurantes, onde os espaços físicos são claramente delimitados, e socializar de maneira tão íntima parece algo impensado e até mesmo constrangedor.

E eu, que não consigo enxergar os shoppings da mesma maneira que ele, com essa perspectiva otimista e bonita de garoto bem criado em família amorosa, entendo que é esta justamente uma prova do meu argumento de que, seja sentados à beira do Giraffas ou apertando o passo para fugir da chuva, a gente só cresce para cima – para os lados, às vezes – e escolhe, discretamente, um jeito diferente de disfarçar uma angústia. Tenho 1,68m, ombros largos, porte de nadadora e uma forte tristeza de infância. Flagro solidão onde não tem.

Outro dia trombei em um menino-homem de tênis brancos. De alguma forma pareceu que a dor dele se conectava à minha, sei lá se por parecidas ou porque opostas, e ele, armando cabaninha com as mãos como fazíamos na infância, mostrou bem cuidadoso seu buraco no peito para mim.

Eu quis enfiar o dedo para sentir a textura, ou cobrir com gaze e deixar respirar para formar casquinha. Mas ele me deu as costas e saiu correndo, decerto achando que eu pudesse querer combinar sua fresta na minha, procriar de nós um monte de fendas pequenininhas. Correu com os tênis brancos pisando as poças, e de cadarço desamarrado perigando cair. Nunca mais o vi.

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O dia em que infartei https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2018/02/20/o-dia-em-que-infartei/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2018/02/20/o-dia-em-que-infartei/#respond Tue, 20 Feb 2018 17:59:20 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2018/02/cisne-150x150.jpeg http://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=137 Eram oito da noite quando mandei mensagem para o meu pai.

– Pá, acho que tô infartando.

Do alto de sua experiência como cardíaco quatro vezes infartado, safenado, mamária, mais pontes que o Maluf, sabia que ele poderia me ajudar a descobrir se aquela dor insana nas costas era, de fato, um ataque do coração ou só um pum preso, não sei, um arroto querendo se libertar.

– Entre as omoplatas. Não, mais pra direita. Isso, isso. Não, sai do meio e caminha para o lado. Vai descendo. Isso.

Meu WhatsApp de flanelinha guiou Papito em direção à luz, e, tranquilo, ele me avisou.

– Ainda vou ter que te aguentar bastante, não é hoje que você morre.

Aparentou segurança, não sei se porque de fato era o que ele sentia, ou se só queria não me apavorar demais, especialmente porque denunciou um ligeiro cu na mão ao mandar mensagens checando o quadro pelos 20 minutos seguintes. Completa meia hora do princípio da gangrena cardíaca, sentenciou:

– É muscular. Toma um remédio e dorme.

Muscular como?, se o único esforço que fiz hoje foi pendurar roupa no var… OH WAIT. Lembrei. O cisne. Maldito cisne. Na aula de balé de ontem, a professora esqueceu que somos uma turma de dançarinas da terceira idade e mandou copiar os braços enlouquecidos da coreografia do Cisne Negro. Natalie Portman, manja?

Eu, que já procurava um local adequado para depositar meu corpo em processo de morte, a fim de que meu filho, que tomava banho durante o suposto ataque, não se chocasse demais ao se deparar com o cadáver da mãe na saída do chuveiro, pude, enfim, me acalmar.

Hoje de manhã, apita de novo o celular. Correio de voz.

– E aí, morreu? Preciso cancelar o risoto de domingo? Porque ou eu compro camarão, ou eu pago seu velório. Beijo, Papito.

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Mãe, quer ser minha melhor amiga? https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2017/09/13/mae-quer-ser-minha-melhor-amiga/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2017/09/13/mae-quer-ser-minha-melhor-amiga/#respond Wed, 13 Sep 2017 19:37:34 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2017/09/Fotolia_108334370_Subscription_Monthly_M-180x120.jpg http://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=48 De pé, calçando sandálias sem salto, a cabeça dela alcança meu ombro. Ou meu queixo, talvez, não sei dizer precisamente. Os peitos grandes, que herdei dela e de todas as mulheres da família, em mim ficaram minúsculos, depois de cirurgias e filho. Os cabelos em sua cabeça brotam finos e em abundância, e em mim rareiam, embora grossos. Tenho ossos pontudos e visíveis, enquanto nela as formas se arredondam. De modo que, pode-se dizer, em uma comparação breve e superficial, que minha mãe e eu não nos parecemos em praticamente nada.

Do desequilíbrio físico, possivelmente, veio a relação difícil e muitas vezes distante. Se bem que não sei se pessoas se distanciam ou estranham só porque não se coincidem – será condição para a afinidade a identificação nos espelhos? Os gostos, também diversos, se multiplicavam com o passar dos anos, abrindo abismos que nos punham em extremidades tão distantes a ponto de, em alguns momentos, ser impossível para uma enxergar por onde a outra caminhava.

De todos os vínculos que acumulei na vida, aquele com minha mãe foi o mais complicado e também o que me ensinou uma importante lição sobre relacionamentos: as coisas demoram a crescer, e é preciso aceitar a velocidade do tempo.

Por muitos anos, não fomos melhores amigas. Ficamos sozinhas desde muito cedo – desde o princípio, na verdade, porque ela ainda estava grávida quando meu pai decidiu que era hora de terminar o casamento. Sei – porque me contam e também porque acho que me lembro, já que a mente se encarrega de criar falsa memórias quando uma história é ouvida milhares de vezes – que ela abriu mão de tudo para se dedicar à maternidade. Que deixou de cuidar de si, que se congelou em meu favor.

Eu tinha uns oito anos, e ela precisava trabalhar até muito tarde. Quando se atrasava para voltar, eu corria à janela da sala para procurá-la na rua, buscando seu um metro e meio (ou serão um e sessenta?) lá embaixo na calçada, eu, pendurada, sem tela, no quarto andar do prédio em que morávamos. Se não tinha a sorte de avistá-la, o que com frequência acontecia, gritava, chorando sozinha, chamando “mamãe” muito alto, enquanto, mentalmente, rezava para que a força do desejo infantil tivesse o poder de trazê-la de volta para casa. Falhei incontáveis vezes.

Àquela altura, nossa relação era de dependência mútua, e não de amizade. Éramos ambas pura fragilidade e medo, ainda que disfarçadas de fortalezas, mas, não, ainda não éramos melhores amigas.

Quando ela fez 40 anos, me lembro de pensar “Pronto, agora minha mãe é uma velha”. Pensamentos são só pensamentos, claro, e ninguém podia escutar os meus, mas, culpada só por imaginar que ela pudesse saber que, dentro de mim, havia crueldade capaz de produzir julgamentos até mesmo a seu respeito, me escondi dentro do guarda-roupas. Torcia, lá de dentro, para que o dia seguinte chegasse e, com ele, o perdão por tudo que minha cabeça produzia.

Saí de casa não muito depois daquilo. Hoje sei que larguei para trás uma mãe arrasada, abraçada ao velho cocker spaniel da família em busca de consolo e companhia. Quem cochilaria as madrugadas ao seu lado no sofá, assistindo canais de compras na TV da sala? Quem a acompanharia nos almoços de fim de semana, ou nos cafés da manhã na cozinha ao som das notícias do rádio, sintonizado sempre na mesma estação?

Não éramos amigas ainda, verdade. Mas éramos, já, um exército de duas tentando sobreviver ao mundo lá fora. Juntas. Eu sempre em silêncio, negando, mas guiada pelo amor que ela construiu para nos salvar e sustentar a vida toda.

É preciso tempo, me ensinou minha mãe. Uma árvore daquelas imensas e frondosas talvez tenha crescido mais rápido do que a amizade entre nós duas. Levamos anos, sabemos, quase 30. Foram precisos traumas, brigas, distanciamentos, netos, até que chegássemos aonde – ainda que eu não admitisse – sempre sonhamos chegar.

Minha mãe nos amou por nós duas, enquanto eu ainda relutava, imatura e rebelde, a enxergar que éramos iguais desde o princípio. Sou, agora, minha mãe inteira. Nas fotos, na voz, nos trejeitos, me reconheço e confundo em uma simbiose que amo e espero nunca perder.

As coisas demoram a crescer, e, quando crescem, nos fazem desejar que seja possível desfrutar delas o máximo que nos for permitido. De minha mãe, quero toda a companhia que me possa dar, toda a proximidade e troca. Este é, pois, um pedido de desculpas, e um acerto de contas com a vida. Hoje, o que mais espero é que minha mãe me aceite como sua melhor amiga, e que queira ficar por perto. Torço por nós. E espero, acima de tudo, que tenhamos todo o tempo que o tempo nos der.

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