Do Meu Folhetim https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br Meias verdades sempre à meia luz Thu, 30 Sep 2021 12:29:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Pra te lembrar de não morrer https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/09/30/pra-te-lembrar-de-nao-morrer/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/09/30/pra-te-lembrar-de-nao-morrer/#respond Thu, 30 Sep 2021 11:38:13 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/erika-320x213.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=974 Quando a Erika morreu, eu tinha preparado para ela uma carta que falava sobre como eu tinha descoberto que o Neutrox era o melhor condicionador do mundo. Aquele, que a gente usava quando era pequena e que, de uma hora para outra, alguém decidiu que não era mais eficiente e que seria preciso gastar centenas de reais por um creme para passar no cabelo todo dia.

Eu queria contar para ela que agora eu conhecia o segredo, e tinha pensado em uma maneira muito inteligente de, puxando por este assunto, lembrá-la de como a sua ajuda tinha sido fundamental quando me deram aquele diagnóstico errado no final de 2016.

Porque eu até pensava que ia morrer, com os meus pais ali chorando na sala no dia de Natal, mas a única coisa que efetivamente me preocupava era o meu cabelo. Eu não queria ficar careca. E a Erika, que, diferentemente de mim, tinha recebido um diagnóstico certo, já sabia que perder os cabelos não significava nada. Ela me ensinou, paciente, que ter uma doença grave ajudava no processo de entender a vida e o quanto cada um se importa com ela.

A gente se falava muito naquela época. Escrevia, na verdade, porque hoje, além de pagar caro nos condicionadores, ninguém mais se fala, só troca mensagem. E a Erika me mandou muitas conversas escritas nos meses dos diagnósticos.

E eu? Bom, eu, querendo ser perfeita, e escrever a carta perfeita, querendo sempre ser a melhor no mundo, guardei o texto que escrevi para a Erika quando soube que ela estava de volta no hospital. Queria mexer mais um pouquinho, só, trocar umas coisinhas.

Dou aulas de escrita e, no meu curso, faço os alunos escreverem com tempo contado, e é sempre bem pouco tempo, bem menos do que eles gostariam. É para aprender a entregar as coisas, eu explico, para entender que um texto está pronto na hora que tem que estar. Mas a minha carta ficou pronta e eu não enviei.

Não disse à minha amiga tudo que ela merecia ter escutado.

Que ela era grande. Que não tinha sido um esforço perdido me mostrar que perder os cabelos, perder sobrancelhas, cílios, perder um peito, os dois, a carne, a Erika me mostrou que o que importava mesmo era o foco em não perder o fôlego. Em continuar pedalando. Seguir em frente aos pedaços, mas sem mudar de direção.

Junto com a carta, eu ia mandar um quebra-cabeças que comprei, uma fotografia de um templo na Tailândia. É complicadíssimo de montar, as 500 peças são todas iguais, mas eu sabia que a Erika ia dar conta. Ela tinha a Tailândia na memória, deu o nome do país para a cachorra, e o que são 500 peças iguais para uma mulher que sabe juntar os pedaços todos?

Toda mulher de bicicleta que agora eu vejo na rua eu acho que é ela. E eu quase paro toda ciclista para dizer olha, está aqui a carta, eu agora ando com ela no bolso para o caso de esbarrar em você no caminho, veja que sorte a minha, poder reparar o que eu não consegui fazer antes.

Acrescentei um parágrafo à carta esses dias, imprimi de novo. Precisava contar à Erika que comecei a nadar há três semanas, e que me sinto um tronco de árvore sendo levado pela enxurrada quando me comparo aos outros alunos das raias ao lado.

Ela ia mandar eu parar de me comparar. Porque, nessas de querer ser perfeita, ela repetiria, eu deixo sempre passar tudo que de fato importa. No final da carta, eu explicava: comecei a nadar para enfrentar a dor daquele mesmo problema de que falávamos em 2016. Aqueles nossos diagnósticos, e o dela tão preciso que por pouco não acerta também a hora em que ela, a Erika, morreria.

Agora, eu nado para esquecer que dói. E nado para me lembrar de você, para ser melhor, para aprender a não esperar pela palavra perfeita quando nada na vida tem tanta precisão, nem mesmo a sentença dos seus médicos. Nadando afobada, um tronco oco na água corrente, eu tiro a cara da água para respirar e me lembrar de não morrer.

Eu podia ter pedido isso a você: te lembrar de não morrer. Faltou coragem.

 

]]>
0
O uniforme que eu posso te dar https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/08/09/o-uniforme-que-eu-posso-te-dar/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/08/09/o-uniforme-que-eu-posso-te-dar/#respond Mon, 09 Aug 2021 17:51:06 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/1_serie_manhas_de_setembro_liniker-6624753-320x213.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=968 Só uma semana de aulas presenciais até agora, e já visitei a loja de uniformes do colégio três vezes. Nada custa menos de R$ 50 lá dentro, o que significa que, além do gasto de tempo para ir até o Pacaembu e voltar, há também o tanto que se tira da carteira a cada passadinha.

Meu filho tem quase 13 anos e cresce cerca de meio metro por hora que fica no sol –à sombra, o ritmo parece mais lento, o que dá algo entre 15 e 20 centímetros no mesmo período de tempo.

É burrice comprar muitas peças de roupa em tempos assim, porque, semana que vem, uma calça servirá apenas como short, camisetas largas virarão babylook, e casacos se tornam boleros roçando o sovaco (agora peludo) em questão de minutos.

Mas, sim, eu visitei a loja três vezes, e nas três vezes consumi itens, toda cega e milionária. É que me dá gosto comprar uniformes para ele.

A vida de mãe solo nunca foi fácil, mas houve momentos ainda mais complicados. Eles coincidiram justamente com a fase em que uma criança pequena suja roupas o dia todo, todos os dias. É porque o suquinho derrama na blusa, é porque foi dia de dar carrinho na quadra na hora do recreio –sempre tem uma explicação boa pra que tudo volte imundo do colégio.

E nem mesmo o luxo que é ter uma máquina de lavar concede privilégios suficientes a quem, às dez da noite, pendura no varal uma roupa que precisa estar enxuta às sete da manhã. Por uma década, sequei muita camiseta na porta do forno, atrás da geladeira, no ferro e com secador de cabelos.

Funciona assim quando não se tem dinheiro para comprar mais de duas camisetinhas e uma calça –nada custa menos de R$ 50, afinal.

Quando nem assim dava pra secar o uniforme, quando não funcionavam nem o forno, a geladeira, o ferro, o secador, Teodoro ia para a escola vestindo um uniforme usado, sem lavar, disfarçado com um spray cheiroso daqueles que ajudam a passar as roupas na tábua.

Era nesses dias que eu tinha certeza de não haver mãe pior que eu no mundo.

Assisti ontem a “Manhãs de Setembro”, série da Amazon Prime que tem Liniker como protagonista. Estreou em junho passado. Chorei de novo, igual chorava escondido naqueles dias passados.

Uma personagem manda o filho escolher: ou vai de uniforme molhado, ou vai de vestido emprestado pra escola, porque não deu tempo de a única camisetinha secar.

Se eu já visitei a loja de uniformes três vezes só na última semana, foi porque, agora que a vida melhorou um pouco à custa de muito trabalho, eu finalmente posso comprar as coisas que sempre quis para o meu filho.

Sinto prazer em trazer a sacola pra casa, dar as peças na mão dele e ver que tudo serve, que está tudo limpo, que há itens suficientes para revezar e higienizar e depois guardar na gaveta.

Já houve um tempo em que torci pra que ele crescesse sem nunca saber que, às vezes, foi pra escola de calça remendada às pressas, de camiseta molhada ou sem lavar. Mas, agora, meu maior desejo é que ele se lembre de todos os detalhes.

Porque, lembrando tudo, ele poderá trocar a memória velha por uma melhor e mais honrosa, e, quem sabe, até ter um pouco de orgulho de mim.

]]>
0
A língua da morte https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/02/24/a-lingua-da-morte/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/02/24/a-lingua-da-morte/#respond Wed, 24 Feb 2021 13:46:06 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/pignato-gato-coração-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=959 Sei que Santo Expedito cuida das coisas urgentes. Tinha um amigo que colecionava santinhos com versões variadas das cores das roupas do santo, da proporção do corvo que ele esmaga com a sandália, e da paisagem atrás da cena. E este amigo explicou que, por mais que na prática fizesse Expedito de baralho, acreditava que algum poder emanava daquele bolo de imagens que ele carregava na bolsa.

Das outras santas, cujos nomes estampam as velas de sétimo dia na prateleira do mercadinho perto de casa, eu não sei nada sobre a área de atuação. Não sei exatamente quem ajudam. E, se de fato ajudam alguém, eu provavelmente seria a última da fila dos assistidos, porque não tenho fé em coisa alguma.

Fácil apelar agora. Dizem que quando o avião está caindo todo mundo sabe rezar um Pai Nosso. Depois de enterrar minha gata, eu agora quero acender uma vela. Fiz um altarzinho em cima da mesa de trabalho, tem foto, lembranças dela, e penso que devo iluminar tudo por sete dias, queimando. Escolho a vela do anjo da guarda, parece neutra. Animais certamente têm quem olhe por eles.

Também decidi cuidar de plantas, na tentativa de lidar com o desespero da ausência. Comprei duas orquídeas, que sei que vou matar muito em breve –não sei nada de santos, de botânica sei menos ainda. Botei lírios num vaso, iguais aos que entreguei no consultório da veterinária, para agradecer por tudo. O perfume é bom e distrai.

Uma aula de tricô online está agendada para quinta-feira. Quem sabe produzir cachecóis e meias para bebês que nunca vou gerar possa acalmar a saudade. Retomei, ainda, os livros de colorir, embora não domine qualquer técnica artística nem possua instrumentos adequados, e insista em preencher as formas das páginas com lápis de cor velhos, emprestados do quarto do meu filho.

Ele se esqueceu de me dizer alguma coisa bonita no dia da morte da gata. Ligou só para perguntar se podia jogar videogame àquela hora. Criança é assim mesmo, minha mãe defendeu. Minha avó não me defendia das coisas nunca. Um dia eu roubei uma calculadora da minha prima. Ela convocou todos à sala de jantar e expôs minha contravenção, me fazendo pedir desculpas publicamente.

Eu acho que a gente devia ser mais exposto às coisas desde cedo. Não à humilhação pela cleptomania, o psicólogo cuidava dessa parte. Mas que era importante, por exemplo, a gente ter mais contato com o inevitável da morte. Por que é que nunca me levaram a um velório antes de eu ter idade para dirigir um carro? Me esconderam todos os enterros, cremações, choros diante da má notícia.

E, na ideia de me poupar da dor, deixaram de me ensinar a lidar com ela. Tenho 40 anos. A gata não seria a única morta duma existência assim tão longa, obviamente. Mas, porque meus mortos só me foram autorizados depois de adulta, acho que vivo mal cada nova perda. Não aprendi o luto, e então me obceco com plantas, tricô, livros de colorir.

Há livros e filmes sobre a morte, feitos especialmente para as crianças. Assisti um, outro dia, do pianista que cai, distraído, no bueiro aberto na rua. É lindo, como são lindas as histórias que recebo frequentemente, pelo trabalho, contadas pela literatura infanto-juvenil.

Mas e se, além de lindas, elas também desistissem um pouco de investigar e adivinhar o que acontece com quem se foi, e retratassem o que já se sabe, pela prática, que acontece com quem ficou?

Deve ter desenhos que falam abertamente da ausência e da saudade. Do vazio que se abre quando um ser querido desaparece para sempre. Mas acho que precisamos de mais. De coisas, encontros, aulas, qualquer oportunidade que fale para as crianças sobre o universal “nunca mais”.

Virei uma adulta inábil diante da morte. E, ao mesmo, eu sou tão feita dela. Meu peito e minha carne, tecidos de perdas. Meus muitos mortos tentam, a cada vez que se apresentam, me ensinar um pouco a maior lição da vida. Aquela que fala de solidão, força e impermanência.

Eu juro que tento assimilar tudo. E sigo. Fazendo as lições e acumulando saudades. De vez em quando ainda compro velas de sétimo dia e orquídeas que não sei usar ou manter. Aos tropeços, estudo. É parecido com quando a gente resolve aprender outro idioma depois de velho. É mais difícil, mas não impossível.

Um dia, vou me tornar fluente na língua da morte.

]]>
0
Estoque de cloroquina https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/22/estoque-de-cloroquina/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/22/estoque-de-cloroquina/#respond Fri, 22 Jan 2021 21:18:22 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/cloroquina-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=948 Depois que descobriram que o aplicativo do governo recomendava cloroquina e remédio de verme pra qualquer ser vivo com dor de barriga (ou de cabeça, de unha encravada, de cabelo caindo), ontem ele foi desativado e acabou a graça de a gente simular tratamento pra cachorro, bebê ou espada de São Jorge.

Resta saber, agora, o que vai ser feito de tantas caixinhas extra do remédio. As matérias publicadas no meio do ano passado diziam que os estoques do Exército brasileiro eram tão surreais que havia cloroquina suficiente para abastecer a nação por 18 anos ininterruptos.

São cerca de 1,8 milhão de comprimidos que, agora, depois que todo mundo entendeu que não existe tratamento precoce para Covid-19, só vão ter vazão se o Brasil inteiro contrair malária. Ou desenvolver lúpus.

Daí fica a pergunta: que é que se faz com tanta cloroquina? Quem frequenta estas bandas para xingar colunista e escreve “mito, mito, mito” na caixa de comentários certamente sugere que eu pegue a caixinha e enfie onde o sol não bate.

Primeiro que sou tão fiel ao isolamento social que aqui o sol não bate em lugar nenhum. A dermatologista até pediu reposição de vitamina D. Segundo que, obrigada pelo interesse, mas não vai estar rolando. Sou da escola que entende que pimenta, refresco e remédio são coisas que os outros definem sozinhos onde e como pretendem usar.

O questionamento persiste. A solução mais óbvia e fácil seria usar todas essas caixinhas para fazer maquetes escolares com muitos prédios cheios de estilo. Umas unidades sozinhas de pé, outras deitadinhas e empilhadas. Algumas recortadas. Mas tudo formando uma cidade imensa, com plaquinha na frente escrito “Bem-vindos à Cloroquina”.

Mas a gente sabe que o governo não gosta de obviedades ou facilidades. Vai preferir soluções mais desafiadoras ao problema do estoque entupido. De repente uma boa era pavimentar as ruas esburacadas com as embalagens. Com esse tanto, resolvia o problema das 27 unidades federativas inteiras, e ainda sobrava.

Por falar em asfalto, valia quem sabe construir com caixinhas uma ponte ligando o Brasil a algum lugar bonito do mundo. Ou transformar o papelão em aço, e desenvolver trilhos para mais ferrovias. Quem sabe fazer metrô com a cloroquina e melhorar a vida de quem precisa de transporte público nas capitais.

Podia construir escolas de cloroquina. Hospitais. Incinerar tudo e, com as cinzas, moldar novos professores, médicos, moradias populares, universidades, livros, respiradores, cédulas de R$ 200, acesso à cultura, saneamento básico, polícia que não mata. Vai ver que, se enfileirar 1,8 milhões de comprimidos, dá até para reimprimir a Constituição.

E, se o governo começar a achar problema, basta encontrar alguém que tope, e então armar a venda de todas as toneladas encalhadas. Com o dinheiro arrecadado, a gente compra vacina pra todos os brasileiros, e ninguém mais vai precisar morrer de Covid.

A única parte difícil é que haja um país tão otário quanto o nosso. Se não surgirem interessados, quem sabe dá pra inventar uma nação nova no mapa, todinha feita à base de caixinhas de cloroquina.

]]>
0
Houston, I have a problem https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/15/houston-i-have-a-problem/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/15/houston-i-have-a-problem/#respond Fri, 15 Jan 2021 10:00:24 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/sono-2-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=941 Filhos adolescentes são uma dádiva, porque fazem você celebrar materialmente a passagem do tempo, ficar feliz em acompanhar de perto o desenvolvimento da personalidade de alguém, agradecer ao universo pela bênção de ser digno de presenciar milagres. Mas filhos adolescentes também são insuportáveis. Enlouquecedores. Invejáveis.

Eu morro de inveja do cara de 12 anos que mora comigo. Primeiro porque ele tem mais colágeno do que eu conseguiria comprar na minha dermatologista. Segundo, porque ele não dorme, ele desmaia. Pense em alguém que não tem problema pra pegar no sono, nunca. E que, pra acordar, só com balde de água fria e três Pai Nosso.

Na quarentena, enquanto ele sonha profundo, eu desenvolvi uma relação doentia com o sono. Primeiro, não conseguia que ele chegasse. Acabei com o estoque de antialérgico da casa. Depois, fui para drogas mais pesadas, e comecei a comprar escondida do marido cartelinhas de Dramin a cada visita à farmácia. Quando vi, estava aceitando frascos de melatonina de uma amiga.

Quando acabaram todos os tipos de comprimido disponíveis, entrei em pânico. Será que eu seria capaz de dormir novamente, sem a ajuda de um negocinho? Claro que não. Eu tinha perdido o dom. Procurei oficinas. Lives. Entrei em um curso online sobre como pegar no sono e fazer amigos enquanto durmo. Fracasso. Segui acordada e sozinha.

Um dia, o jogo virou. Passei a sentir um cansaço tremendo sempre depois das oito da noite, e uma vontade desesperadora de me cobrir com um lençolzinho cheiroso, de luz apagada. Meu problema agora era que eu não conseguia mais me manter desperta no horário que o resto da casa funcionava.

Os tambores do índice do Netflix viraram minha canção de ninar. Antes mesmo que a família pudesse dar play no episódio do dia, eu já estava aconchegada em algum cantinho do sofá, com a cara apoiada no braço. Quando alguém se dignava a me chamar, dando um chacoalhão no ombro, o apartamento já estava todo escuro, e estou certa de que todo mundo ficava puto comigo.

Fui atrás de ser uma pessoa melhor. De equilibrar os hábitos e nem tanto morrer exausta, nem tanto viver zumbi na madrugada. Passei a me programar para ir para a cama em um bom horário, largar as telas, ler um bom livro. Embarcar numa noite tranquila de sono reparador até que o despertador tocasse.

Mas dei pra acordar com dor no ombro. Você já se relacionou com alguém bonito? Dá vontade de adormecer olhando pra cara da pessoa, quase um estímulo para os sonhos bons. Só que o problema é levantar na manhã seguinte com os trapézios estraçalhados depois de oito horas de pressão.

Entendi que a raiz dos meus problemas estava no travesseiro. Essa merda aqui, que não troco faz anos, estou ficando mais torta e mais velha por causa dela, aposto. Era urgente comprar um novo, e não podia ser pela internet. Me ensinaram que travesseiro e colchão a gente vai na loja para experimentar.

Deitei de calça jeans, máscara e óculos numa cama que ficava bem no meio do showroom. Provei três modelos, todos com a etiqueta na embalagem indicado que eram as melhores opções para quem, como eu, dorme de lado paquerando o parceiro. Escolhi o mais duro, mais alto, e mais barato dos três. Dinheiro não nasce em árvore.

Para a primeira noite, me arrumei como se fosse transar com o travesseiro. Passei creme e botei perfume. Peguei um shortinho bem minúsculo na gaveta dos pijamas. Joguei fora o plástico que dizia que, dentro daquela espuma, havia tecnologia da Nasa. Eu sei de que Nasa eles estão falando. Ela é mais Marcos Pontes do que agência americana. Mas, mesmo assim, eu estava pronta.

Foi quando Houston, we have a problem. Acordei com torcicolo. E o torcicolo me deixou mal-humorada, e quando eu fico mal-humorada eu perco ainda mais colágeno. Gastei 130 realidades para começar um dia velha e me sentindo pior do que me senti durante toda a quarentena, desde a fase do Dramin até o cochilo no começo do Netflix.

Agora, escrevo este texto sentada sobre o travesseiro novo. Porque, se o Código do Consumidor diz que eu não posso devolver um item no qual já tenha esfregado o escalpo, a solução talvez esteja em tentar amaciá-lo com a bunda.

Ou isso, ou trocá-lo na surdina pelo travesseiro do meu filho. Para um adolescente saudável, não faz a menor diferença se debaixo da sua cabeça o recheio é da Nasa, de plumas, de espuma, ou de um pacote inteirinho de Cheetos.

 

]]>
0
Obsessão pelo corpo delas https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/05/obsessao-pelo-corpo-delas/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/05/obsessao-pelo-corpo-delas/#respond Tue, 05 Jan 2021 10:00:51 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/corpofeminino-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=927 Um homem uma vez me confessou que tinha muita vontade de aprender mais sobre o feminismo, para conseguir se modificar de acordo com o que entendesse ser possível. Mas, dizia ele, mesmo com esse desejo, ainda era difícil encontrar quem tirasse suas dúvidas com calma, sem entender que indagações às vezes podem ser fruto do desconhecimento, e não da arrogância.

Sim, eu sei que nós mulheres não estamos bravas, estamos exaustas. E que isso transparece no reflexo que quase sempre temos diante de situações como estas, de questionamento sobre as demandas da luta feminista. Porém, ainda assim, gosto de manter em mente, em qualquer circunstância, essa conversa que tive no passado. Ela me serve como uma diretriz para atuar melhor.

E é ela quem me orienta aqui hoje, ao publicar este texto. É por ela que parto do pressuposto de que talvez seja importante explicar antes de discutir. Nos últimos dias, duas colunas também da Folha trataram, cada uma à sua maneira, do emprego do corpo feminino no mundo. Ambas foram assinadas por doutores em filosofia.

Na primeira, o assunto é aborto. A autora defende que há limites para a liberdade total da mulher decidir se quer dar continuidade a uma gravidez não planejada. Ao dizer que o feto é “a mais frágil, indefesa e inocente de todas as criaturas”, explica que não é apenas o corpo da mulher que estaria “em jogo” diante desta decisão.

Classifica como decadência moral a liberação do aborto, enquanto reconhece que estar grávida de uma criança que não se quer é uma “situação limite”. Ignora no texto questões sociais, de saúde pública e de educação. E desvia deliberadamente de explicar por que mulheres não podem decidir o que fazer com o próprio corpo, enquanto aos homens é assegurado o direito de decidir não só o que fazer consigo, mas também conosco.

Publicado algumas horas depois, o outro texto, escrito em primeira pessoa por um homem, mescla as expressões “sexo frágil”, “mulher raiz”, “lugar de fala” e “sabor de mulher” em uma narrativa que pode até dar sinais de que veio em missão de paz, e que qualquer aparente ofensa seria apenas um mal entendido de quem não compreende humor e artimanhas literárias.

Acontece que provocações neste campo do feminismo são cafonas e arriscadas demais, e, se falta compreensão de alguma natureza, ela certamente não vem da parte do leitor.

Pode parecer difícil entender essa fixação dos pensadores sobre o corpo feminino. Basta, no entanto, uma breve visita à literatura feminista para esclarecer essas origens. Naomi Wolf, por exemplo, explica com clareza em seu “O Mito da Beleza” a função que a criação de padrões estéticos universais tem no controle das mulheres pela sociedade.

E isso mesmo que –e especialmente que- se diga que um verdadeiro “apreciador tende a ter um gosto inclusivo”, sem restrições às imperfeições e diferenças. Nossa luta, mais do que nunca, não é para que sejamos apreciadas, não custa repetir.

Sendo assim, a tal da “abordagem filosófica da estética” não deveria suscitar brincadeiras, especialmente quando há não só milhares de maneiras de se louvar e respeitar uma mulher, mas, principalmente, quando há milhares de maneiras de se fazer boas crônicas a esse respeito.

Outra autora importante para assimilar a obsessão sobre o corpo feminino no mundo é Silvia Federici, muito bem citada pela colega Vera Iaconelli em coluna publicada nesta segunda-feira (4), para falar também de aborto, mas em termos absolutamente opostos – e extraordinários, diga-se – ao do primeiro texto postado no jornal com este tema, nesta semana.

Vera lembra que foi do Renascimento em diante que se intensificou o controle da sexualidade da mulher, e da gestação e seus desdobramentos. “Só à base de muita violência e séculos de doutrinação é que as mulheres passaram a se identificar com seu lugar” de submissão ao homem, escreve a colunista.

Mas, se já sabemos a origem do problema, por que optar por perpetuá-lo? Por que seguir alucinados na fiscalização do lugar da mulher no mundo, conferindo a ele peso, qualidade, valor?

É fundamental debater questões como o aborto, talvez alguém responda. Concordo, desde que se trate de fato de um debate, com um pensar crítico, e com a construção clara de uma premissa – ainda mais quando a discussão diz nascer do campo da filosofia. Para enumerar julgamentos, bons ou ruins, nunca foi preciso ter doutorado em nada.

Entendo que, como feminista, é meu dever manter a calma sempre que possível, para conseguir me engajar com profundidade na luta. Respirar e escrever, por exemplo, quando o desejo na verdade é de gritar. Foi isso que aquela conversa antiga me ensinou.

Isso, e a compreender que, às vezes, as opiniões podem sair brutas e egoístas não porque falte conhecimento ao emissor, mas porque arrogantemente lhe parece mais cômodo não ter de mostrar ao leitor de onde veio seu ponto de vista.

]]>
0
2020, um ano sem saliva https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/31/2020-um-ano-sem-saliva/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/31/2020-um-ano-sem-saliva/#respond Thu, 31 Dec 2020 11:00:09 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/bobina-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=908 Comecei (talvez tarde) a postar no Instagram uma retrospectiva das matérias mais legais que fiz em 2020. Percebi que não ia dar tempo para uma publicação diária cobrindo os doze meses, especialmente porque a primeira delas foi ontem e hoje o ano já acaba, mas, enfim, o que importa ao ser humano mesmo é a boa intenção e não a orientação espacial em si.

O objetivo da série de reportagens nunca foi só a autopromoção descarada, vejam como sou boa no que faço, mas também usar as redes sociais como uma espécie de museu de mim mesma caso eu venha a morrer ainda nesta quinta-feira, ou mesmo já no começo de 2021.

Afinal, o coronavírus, o desgosto e a velhice são destino inevitável para todos – a única coisa que a gente tem certeza que democraticamente não virá para nenhum brasileiro é a porra da vacina.

Este 2020 foi um canalha, como diz minha mãe, essa parte é inegável. Mas houve um momento dele que guardarei feliz para sempre na memória, e que eu toparia, para revivê-lo, até mesmo entubar outro 2020 a seco se preciso fosse: minha participação no programa “Roda Viva”, da TV Cultura.

Escalada para representar esta Folha na entrevista com a escritora Nélida Piñon, experimentei emoções variadas. No dia do convite, chorei, emocionada. Na semana seguinte, tive insônia, o que ajudou no projeto de reler tudo que precisava. Na véspera, tive dor de barriga. E, no dia propriamente dito, achei que fosse enfartar seis vezes.

Na sala de maquiagem, a gente fica se achando incrível, porque os funcionários fazem um trabalho espetacular. No cafezinho com a Vera e os outros colegas, antes de entrar no estúdio, tudo parece de novo sob controle, porque é preciso apenas repassar o roteiro de perguntas.

(Meu analista tinha dito que era para eu levar apenas cinco perguntas e improvisar o resto lá, porque mais que isso, assegurou ele, seria sintoma de neurose. Minha lista tinha 24 questões e duas faixas bônus.)

Porém, na hora que toca a musiquinha de abertura do programa, e aquela vinheta gira nos monitores pela primeira vez, ali eu achei que fosse vomitar de nervoso. Ou, no mínimo, cuspir um pedacinho do coração pela boca.

Se no Roda eu estava deslumbrante, nas minhas idas ao supermercado em 2020 eu devia parecer um trapo. Um dia, no corredor das geladeiras, topei com um dos colunistas mais profícuos aqui deste jornal, e que me contou, entre um iogurte e outro, que já estava de saco cheio, que tinha medo de ficar sem dinheiro, sem a filha, sem cabelo, sem saúde.

Horas depois, o colunista me escreveu no WhatsApp. Oferecia ajuda para o caso de eu estar sendo agredida pelo namorado que ele havia acabado de conhecer lá no mercado, ele não sabia se podia confiar que se tratava de um cara bacana, mas que no fim das contas aquelas manchas roxas que eu tinha no olho o haviam deixado preocupado e em estado de alerta.

Eu só tinha decidido que naquela semana não passaria mais o corretivo para olheiras. Grande erro. Eu agora parecia alguém que precisava de um médico, ou da polícia. No Pão de Açúcar, vivemos também outro momento notável de 2020: quando fomos todos desafiados a abrir saquinhos de hortifrúti sem usar saliva na ponta dos dedos.

Se não pode tirar a máscara para nada, obviamente não dá para cuspir na mão em público. Conheci, nesses 300 dias de isolamento, mercados que já deixavam várias sacolinhas abertas e dispostas nas gôndolas para os clientes. Uns fofos.

Em outros, consumidores deram show de técnica ao esfregar o plástico entre as mãos, para vê-lo, aquecido, se abrir como uma flor de primavera. Comigo, o que funcionou foi pingar álcool gel para umectar as digitais, imitando a baba de maneira fidedigna e eficaz, e abrir os saquinhos aos milhares diante de hordas de fregueses incrédulos.

Foi assim que enchi meus carrinhos com ingredientes infinitos para as milhares de receitas que resolvi executar em casa, no início da pandemia, quando eu ainda tinha paciência para cozinhar três vezes ao dia.

O passar dos meses, no entanto, me transformou de Ana Maria Braga em sócia do Rappi. O aplicativo assumiu a tarefa de me manter viva trazendo insumos necessários à manutenção de uma alimentação regrada: a cada uma hora, uma besteira calórica ingerida. Sem falhas.

Fomos, de fato, a extremos neste 2020. Pulamos de gastadores compulsivos no Mercado Livre a poupadores desesperados no último bimestre. Com a escola das crianças instalada em casa, nos transmutamos de Drauzio Varella paciente em pais que evocam o Homem do Saco no recreio.

Em março a gente não conseguia dormir. Em novembro, a gente não conseguia acordar. A vida fitness do primeiro semestre deu lugar ao sedentarismo mórbido no segundo. O plano de endurecer a bunda já foi realocado para depois da aplicação da segunda dose de Coronavac – ou seja, nunca mais nessa existência humana.

E, ainda que essa instabilidade não nos orgulhe, se houve maiores guerreiros que a gente foi neste ano, desconheço. Somos uma exibição em looping do meme da Deise bêbada: levantando, vivos, e ainda fazendo caridade.

Estamos numa agonia imensa para voltar a passar saliva nos saquinhos, nos dedos, nos amigos, em desconhecidos, é verdade. Mas, depois desse desafio que foi 2020, a gente aguenta qualquer coisa, inclusive esperar mais tempo.

Disseram que a palavra do ano foi resiliência. Se não foi, devia ter sido, caso houvesse concursos para eleger coisas e definir períodos. Que em 2021 a gente continue sabendo se adaptar e encontrar saídas.

Feliz ano novo.

]]>
0
Juíza Viviane, pela última vez https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/25/juiza-viviane-pela-ultima-vez/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/25/juiza-viviane-pela-ultima-vez/#respond Fri, 25 Dec 2020 19:31:00 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/luiza-pannunzio-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=904 A noite de Natal começa com a notícia de que uma juíza foi morta na frente das três filhas pequenas, no Rio de Janeiro. O vídeo gravado por um vizinho mostra a cena, e reproduz os gritos das meninas, que imploravam para o pai parar de esfaquear Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, sentada no chão, já ferida pelo ex-marido.

Um crime premeditado, ao que indicam as investigações. Das milhares de escolhas que tinha diante do fim do relacionamento, anunciado por Viviane em setembro passado, Paulo José Arronenzi optou por um crime.

Ouço o desespero agudo das filhas da juíza enquanto viajo de volta de Santos para São Paulo. No cemitério, a quatro quilômetros da praia, dava para sentir o cheiro da maresia mesmo debaixo da chuva insistente. Parecia, ali, em um breve período, que não havia lugar no mundo em que a dor fosse mais pesada que a nossa.

Talvez a besta tenha esperado nosso sofrimento acabar para erguer a faca no Rio. Penso se um mundo com quase 8 bilhões de habitantes funciona mesmo desse jeito, com turnos de desgraça sendo alternados para garantir que, por instantes, as tormentas sejam exclusivas de alguém.

Fazia poucas horas desde que dois coveiros tinham empurrado o caixão para dentro de uma parede. No cimento cobrindo os tijolos que fecharam a sepultura, escreveram com um graveto o sobrenome da nossa família.

Debaixo do andaime onde os homens se equilibravam, dois cachorros esperam o fim do serviço, enquanto lascas de concreto molhado caem e se agarram nos seus pelos das costas. “Eles escolhem ficar perto da gente o tempo todo”, explicou um dos funcionários. “Não importam muito as condições”.

Escolher me parecia coisa reservada aos humanos. Errar nas escolhas, então, mais ainda.

Rosa Montero escreveu em “A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver” que, quando presenciamos uma morte ou um nascimento, uma brecha na ilusão brilhante da vida se abre, para que possamos enxergar o real funcionamento do mundo. Olho o caixão, os cães, a chuva. Então são estes os bastidores?

Milhões escolheram assistir o show que Caetano Veloso fez na internet, com a expectativa de abrir uma brecha na dor brilhante de uma quarentena eterna. Gosto quando ele explica que “de nada valeria acontecer de eu ser gente, e gente é outra alegria”.

Não tem sido fácil isso de acontecer de ser gente. Melhor seria ser cachorro.

Escolher, protegida na metade do corpo por um andaime bambo na quadra 80, esperar pelo fim do sofrimento dos outros, tantos outros, foram só 18 enterrados naquela véspera de Natal de 2020, e só então descobrir que talvez meu turno de martírio esteja reservado, e que pode ser que ele ainda chegue. E que seja mais duro que lascas de cimento fresco presos à pelagem.

No bloco abaixo da notícia sobre o assassinato covarde de Viviane, um link mostra imagens de passageiros aglomerados do saguão do aeroporto de Guarulhos. Viagens de Natal, de réveillon, de férias. No dia seguinte, a manchete de Natal fala que o Brasil já pode ter superado 220 mil mortos pela Covid-19.

Qual será a sensação de escolher a morte, seja a sua própria ou a de outro alguém? Como será que se decide assassinar alguém?

Uma matéria diz que, quando perguntado se se arrependia de ter esfaqueado a mãe de suas filhas, enquanto elas gritavam pedindo clemência, Paulo José “deu de ombros”, como se respondesse que tanto faz. Uma morta caída no chão, e outras três de pé, mortas, de olhos abertos.

Penso se no cemitério onde vão enterrar Viviane também moram cachorros. E se vai chover quando escreverem seu nome pela última vez.

 

 

 

 

 

 

 

 

]]>
0
Botox e o desserviço ao feminismo https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/17/botox-e-o-desservico-ao-feminismo/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/17/botox-e-o-desservico-ao-feminismo/#respond Thu, 17 Dec 2020 19:42:41 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/injeção-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=892 Quando engravidei do meu filho, além do volume na barriga, surgiu também uma pinta esquisita na minha testa. Como era vizinha a uma outra que minha mãe dizia que eu sempre tivera (e que misteriosamente sumiu na juventude), imaginei que pudesse ser uma reedição da pinta antiga, ou quem sabe até um desdobramento. Afinal, eu também me desdobrava ali, lentamente, em uma pessoa adicional.

A poesia barata não convenceu meu amigo médico. Numa visita prum café em casa, ele viu que a mancha marrom só crescia, talvez mais rápido até do que o próprio bebê, nascido já fazia mais de ano. Me deu bronca. E eu marquei minha primeira consulta em uma dermatologista.

O consultório da doutora Carmen parecia muito mais caro do que o meu convênio podia pagar. Casas com escadas curvas no meio da sala toda de mármore são sempre coisas impressionantes, e não à toa estavam em todos os núcleos ricos das novelas da Globo dos anos 1990. Subi à sala de exame me sentindo a Carolina Ferraz.

Ao fim da consulta, saí com a pinta, aparentemente benigna, e sem pagar um real.

Saí também com receitas para cremes manipulados, uma indicação de outros produtos que qualquer esquina vendia, e um pedido para colágeno em pó de uma farmácia chiquérrima, que fazia sachêzinhos efervescentes com gosto de refresco de limão ou laranja, pode escolher. Procedimentos, doutora? Para você, ainda não.

Tudo aconteceu há muitos anos. Quando eu ainda parecia distante dos temidos 40, aquele momento da vida em que os homens – aqueles de quem a gente infelizmente ainda gosta, e a quem infelizmente ainda são confiadas todas as decisões sobre o que tem valor ou não no mundo – passam a dizer que somos velhas. E a gente infelizmente passa a acreditar.

Saindo da escola do meu filho, depois de deixá-lo na aula, uma outra mãe (ou talvez ela fosse uma maluca nômade muito bem vestida) me abordou no portão. Achou um absurdo eu já ter um filho daquela idade. Disse isso rindo, pelo menos, senão certamente eu teria ficado com medo. Ou ofendida. Ou os dois.

Expliquei que só pareço jovem. Que na verdade sou uma senhora, que já não tenho valor sexual na sociedade, que olha aqui essa pelanquinha em cima do olho, esse bigode chinês, enfim. Fiz o papel que me é esperado como mulher, de me colocar para baixo sozinha, sem precisar que ninguém me ajude.

“Mas você faz umas coisinhas, né?”, perguntou, girando o dedo indicador em volta do próprio rosto. Olha, eu ainda não fazia coisinha nenhuma. Mas, naquele momento, achei que talvez fosse o sinal para começar a fazer.

Esperei até 2020, na pandemia, com todo mundo engordando, entristecendo, e envelhecendo 50 anos em cinco meses. Doutora Carmen se ligou que sua escada curva no casarão com sala toda de mármore era demais para mortais da Amil, e agora não fazia mais parte do meu plano. Procurei uma indicação mais perto de casa.

Como eu previa, já dava, sim, para começar a fazer coisas pela pele do meu rosto, especialmente preventivas. E, como eu não sou a Jennifer Lopez, não tenho problema nenhum em escrever sobre isso e dizer: fiz botox e preenchimento, não me arrependo de ter feito, e ainda estou juntando dinheiro para fazer de novo. E por que fiz? Porque achei que devia, e porque gostei do resultado.

A JLo pode até achar que a gente acredita na sua rotina da skincare exclusivamente à base de azeite de oliva por 51 anos. Mas o desserviço que uma mulher famosa, talentosa e ainda por cima bonita presta ao dizer um absurdo desses não cabe num livro, nem mesmo em uma biblioteca inteira feminista.

Ser uma pessoa pública e não querer divulgar voluntariamente uma informação estética é uma coisa – mas mentir sobre ela quando perguntada é algo muito diferente. E, graças à evolução do feminismo, estamos exaustas de ser feitas de otárias nesse aspecto.

Não à toa, passamos a idolatrar quem nos traz a verdade, mostrando que o normal é ser normal como a gente, com procedimentos, até, mas com celulite, sim, com estria, quilos onde não queria ter, nariz diferente do que sonhou.

Com 2,1 milhões de seguidores, a modelo e jornalista Danae Mercer, dos Emirados Árabes, se dedica a desconstruir a perfeição de fotos de celebridades nas redes.

Na Austrália, Celeste Barber satiriza para seus 7,5 milhões de seguidores as mulheres com formas insuperáveis que se dizem totalmente naturais, e que dominam aquilo de que o Instagram mais se alimenta: as aparências.

O ponto de ambas não é dizer que mulheres lindas são menores ou que merecem menos respeito, mas sim provar que, para exibir corpos e rostos perfeitos, quase sempre é preciso muito esforço, dedicação e, por que não?, às vezes até mesmo uma ou outra intervenção.

Aos 29 anos, a modelo Emily Ratajkowski, por exemplo, odeia o trabalho de Danae e de Celeste – a segunda é bloqueada em suas redes, e impedida de divulgar seu nome. Assim como Jennifer Lopez, Emily presta, com isso, um desserviço à evolução feminina.

Hoje é quinta, e o debate e esse textão aqui repercutem no grupo de WhatsApp das amigas antes que eu resolva publicá-lo. Alguém pergunta se pagar por procedimentos estéticos faz da gente menos feminista. Eu respondo que é justamente o contrário.

Que, sim, cada uma tem o direito de escolher divulgar só o que tiver vontade de sua vida pessoal, e que ninguém tem a obrigação de admitir absolutamente nada para ninguém. Mas que reivindicar uma sublimidade estética natural quando não foi assim que ela surgiu, isso, sim, é um golpe infame e imperdoável no feminismo.

]]>
0
No fundo do poço https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/11/no-fundo-do-poco/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/11/no-fundo-do-poco/#respond Fri, 11 Dec 2020 10:00:27 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/elevador-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=884 Democrática que é, a psicanálise explica todo mundo. Comigo não ia ser diferente. Está lá nos livros, não sei exatamente se foi Freud, Winnicott ou Jung quem escreveu, não importa, mas a literatura clínica dá conta, de maneira muito clara, de mostrar porque é que a gente é assim desse jeito.

Na viagem para o Uruguai, por exemplo, quando não tinha uma vírgula fora do lugar, o voo saindo no horário, e eu nem pagando pelas passagens estava, não havia motivo algum para entrar em pânico quando as portas do avião finalmente se fecharam e a aeromoça anunciou para breve a decolagem.

Mas eu surtei e achei que fosse morrer sufocada.

Acontece geralmente se eu começo a prestar atenção demais no lugar em que pode ser que o ar acabe. Prevendo que vou entrar em pânico e que, como todo ser humano fora de controle, consumirei mais oxigênio, sei que – não falei? – o que havia de disponível para todo mundo respirar vai ficar sensivelmente mais escasso.

Pode ser na máquina de ressonância magnética. Em um banheiro químico. Salas de espera muito pequenas e sem janela para a rua. No Airbus, no Boeing ou no Fokker 100. E, principalmente, no elevador.

Eu não suporto elevadores. Se meu destino é abaixo do sexto andar, adoto as escadas com felicidade e vigor muscular nas coxas. Se preciso ir mais pra cima, entro na cabine tentando fingir que sou uma pessoa normal, sem neuroses descritas pela psicanálise – falhar invariavelmente acho que faz parte do quadro.

Tem um nome, isso. Chama claustrofobia. De acordo com os mestres da mente, é um mal que acomete quem tem problemas para dimensionar o próprio espaço pessoal. Pelo que entendi em estudos pregressos, e na busca que acabei de fazer aqui no Google, são (somos) pessoas que não entendem direito onde acabam e onde o outro começa.

Agora tira a gente do elevador e bota num apartamento na quarentena. Eu suporto bem a minha casa, não costumo surtar e achar que vou morrer sufocada aqui dentro. Mas, se sou um ser com problemas para perceber onde acaba o meu cotovelo e onde começa o cotovelo do outro, o confinamento em família não parece promissor.

Esse quarto aqui é o meu ou é o da criança? Essa almofadinha no chão é minha ou é da gata? Foi meu marido quem mijou na tampa da privada ou fui eu, com a minha inveja do falo, que esqueci para trás essas gotinhas?

A dentista fica no oitavo andar de um prédio perto da Avenida Paulista. O elevador é daquele tipo moderno, com espelho na parede do fundo, e portas sem qualquer tipo de ventilação – o ar condicionado de última geração instalado no teto dá conta do recado. Uma caixa metálica completamente vedada, puxada por cabos de aço, com um poço de 2,5 metros ao fundo.

Bastante atraente. Pela primeira vez na vida, considero como seria ficar presa no elevador sem entrar em pânico. Talvez meu filho precise de mim. Essa semana é de fechamento do bimestre e estudo pra provas. Meu marido nunca lembra onde a gente guardou a coleira da cachorra depois do último passeio. Será que eles se viram bem sozinhos em casa?

Antigamente, eu imaginava que os adultos gostavam de ficar sozinhos em casa porque aproveitavam para cozinhar pelados, tirar meleca à vontade, beber todo o estoque de vinho, assistir filme pornô em um telão na sala. Cresci, e descobri que é tudo isso mesmo que eles fazem.

Dentro da bolsa, ainda no térreo, vejo que veio comigo o último exemplar da revista piauí. Ela é boa porque costuma ter reportagens de 90 páginas de extensão cada. Também trouxe uma maçã e água. Calculo que dá para passar uma semana com conforto aqui dentro.

Aproveito enquanto ainda há sinal de celular no elevador, e abro de novo a barra de pesquisa. Acho que é uma boa hora para saber se Freud, Winnicott ou Jung escreveram alguma coisa sobre métodos para curar fobias na marra.

]]>
0