Do Meu Folhetim https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br Meias verdades sempre à meia luz Thu, 30 Sep 2021 12:29:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Me sinto pronta https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/11/13/me-sinto-pronta/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/11/13/me-sinto-pronta/#respond Fri, 13 Nov 2020 17:46:11 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/exército-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=862 Tenho uma prima que foi soldado. A gente aqui no Brasil recebeu a carta da mãe dela, todo mundo ainda muito criança, e ela, que já tinha idade pra muitas coisas, contava que entrou para o exército junto com o irmão, isso lá em Israel. Lembro que, tonta, pensei que ela ia levar um tiro na primeira semana. Mas que morrer de farda no exterior parecia chique o suficiente pra fazer valer a pena essa experiência.

Ela voltou ao Brasil alguns anos depois, por um período. Já tinha saído da corporação, lutava krav-magá, e agora era segurança particular da família dona de um banco muito milionário, moradora do bairro do Morumbi.

Em um dia de folga, resolvemos dar uma volta de carro atrás do Jóquei Clube. Demos de cara com uma travesti com o pinto de fora, duas da tarde, sol a pino. A soldado chorou. Eu dei ré correndo. Entendi ali que ser do exército não valia de nada quando o bicho pegava realmente.

Parece, agora, que o Brasil declarou guerra aos Estados Unidos. O presidente avisou que quando acaba a saliva tem que ter pólvora, e eu não tenho certeza se consegui entender direito a frase, até porque ele fala que a gente não precisa usar a pólvora, só mesmo saber que tem, e, enfim, o importante é saber que, caramba, vai ter guerra. Real, oficial, sangrenta.

Me sinto pronta. Não vou amarelar diante das grandes ameaças como fez minha prima e a piroca do Morumbi. Eu vou entrar para ganhar. Já estou com a roupa de ir, e ela tem tudo que uma grande soldado brasileira precisa para enfrentar com bravura os ianques: camisa verde e amarela, bandeira amarrada que nem capa, máscara do véio da Havan para despistar o inimigo.

Ainda estou no aguardo das coordenadas do comandante, mas imagino que começaremos a invasão por Miami, primeiro porque é bom entrar em território familiar, e segundo porque, de quebra, com tudo sitiado, barricadas, latão de lixo pegando fogo nos cruzamentos, pode ser que role um pit stop no outlet da Adidas.

Inclusive imprimi a tabela de conversão de tamanho para tênis e outros calçados, e vou levar dobradinha no bolso da pochete camuflada junto com meu canivete. Agendando tudo com cuidado, a gente ainda chega na época da Black Friday.

Já me vejo apertando no chão com minha botina Vulcabrás a loira cabeça do inimigo. Mandando que ele implore por meio litro de coca diet, ask pra sair, ou eu mostrarei meu lado mais sórdido de brasilidade viril. Quem é a palhaça aqui agora? Quem tá falando com otário aqui é você, ô, gringo.

Vou entrar chutando a porta daqueles Starbucks todos. Arregaçar na essência de caramelo porque agora é tudo nosso. Todo dia vai ser dia de maldade, de levar sem pagar um enxoval inteiro pro meu afilhado na loja da Gap. De furar fila da Apple na crueldade, pilhar maquiagem na mão grande e trazer de baciada pras amigas.

Quem foi que disse que precisa saber a cor exata da base e só trazer uma caixinha? Aqui é Lancôme, porra, aqui é Brasil!

Servirei com honra e dedicação. Mostrarei minhas técnicas todas de embate corporal adquiridas por anos assistindo Naruto. Que honra, senhor presidente, estar em plena forma física no momento em que o país mais precisa de mim. Aqui missão que é dada é sempre missão cumprida.

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O segundo governo Bolsonaro https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/09/30/o-segundo-governo-bolsonaro/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/09/30/o-segundo-governo-bolsonaro/#respond Wed, 30 Sep 2020 19:46:50 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/Bolsonaro-Pedro-Ladeira-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=826 Tenho visto bastante gente reclamando deste segundo governo Bolsonaro. Dizem que o presidente é inábil, ignóbil, incrivelmente instável. Mas só se espanta com o clima de suspense e apreensão de agora quem não viveu o primeiro governo Bolsonaro. A gente, que estava lá, hoje em dia não se surpreende com mais nada.

Naqueles tempos, as ameaças eram bem comuns. Coisas tipo essa frase dita no começo da semana, sobre o líder estar à beira de tomar “aquela decisão”. Fica todo mundo com medo, né. Vai saber qual decisão é essa. Mas, o pessoal que viveu aquele primeiro governo garante: quem ameaça demais, pouco faz.

Era até um ditado na época do primeiro governo Bolsonaro. Que, pra quem não se lembra, aconteceu não especificamente em um momento do país, mas, sim, em um momento específico da vida da gente, que hoje cresceu e virou mulher.

O primeiro governo Bolsonaro podia até não ter o Bolsonaro, mas tinha um monte de homem igual ao Bolsonaro tomando conta de tomar conta da vida da gente. E se ocupando, junto com isso, de meter terror como forma de liderar.

Quem foi menina adolescente perto de figuras masculinas dominantes pode se declarar sobrevivente do primeiro governo Bolsonaro. Um período histórico em que palmada era coisa de frouxo, e onde chefe de família bom mesmo só trabalhava com chinelo pra cima.

Volta e meia a população que viveu este período se sentia intimidada: se as coisas não mudassem, ia ficar todo mundo sem figura paterna. Ou o pessoal andava na linha e acabava com a baderna, ou o primeiro governo Bolsonaro ia mostrar o que era bom pra tosse.

Daí que a gente, menina, aprendeu a tossir escondido. As mais espertas desenvolveram técnicas de guerrilha. Houve quem se exilasse para além das fronteiras, na casa da avó ou na de uma amiga. Onde fosse possível evitar um dos piores símbolos do primeiro governo, além das ameaças e da violência gratuita: as piadas sem graça.

Todo mundo era alvo, naquele mandato, das anedotas inadequadas. Mas, a exemplo do que aconteceria anos depois, no segundo governo, os primos negros das meninas, as amigas lésbicas das meninas, os vizinhos gays das meninas, e os ancestrais índios das meninas, assim como as próprias meninas, eram os focos favoritos da malícia.

O primeiro governo Bolsonaro podia até não ter o Bolsonaro, mas tinha aquelas figuras paternas iguais ao Bolsonaro, e vinha ainda, de brinde, com alguns tios escolhidos para os ministérios.

Quem viveu naquela época costuma lembrar o tio da pasta da mulher e família, que mandava todo mundo pra igreja no domingo e falava que aborto aqui em casa nunca, e também o tio responsável pelo meio ambiente.

Era geralmente dele que partia a ideia de mandar prum sítio os cachorrinhos que envelheciam. Ou a decisão de cimentar o gramadinho do chalé que a população mantinha pras férias em família no litoral.

Em resumo, não é que o segundo governo Bolsonaro seja menos complicado para quem viveu o primeiro. Se submeter a figuras masculinas de liderança desequilibradas emocionalmente nunca é fácil, seja na política ou dentro de casa. É só que o fato de ter sobrevivido a estados particulares de exceção confere ao sujeito a estranha mania de ter fé nas coisas.

Porque se o tio crente, o avô racista e o pai agressivo conseguiram mudar, resta uma pontinha de esperança de que todo o resto também mude. Talvez não neste mandato, pode ser que realmente não dê mais. Mas ao menos que seja a tempo de evitar a terceira edição do governo Bolsonaro.

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Morrer amanhã https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/10/morrer-amanha/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/10/morrer-amanha/#respond Mon, 10 Aug 2020 10:00:54 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/cova-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=763 Uma grávida de 34 anos deu à luz já inconsciente, e morreu sem ver a filha recém-nascida. Um homem de 37 tinha se mudado havia duas semanas para morar com a namorada, e morreu antes mesmo de desembalar todas as caixas. Outro, de 52, andava ansioso com a formatura do filho na faculdade em dezembro – não deu tempo de esperar.

Se eu morresse amanhã, morria triste de deixar tanta coisa pra trás. Nenhuma hora é boa de se morrer, claro, mas essa agora, justo amanhã, ia não só levar embora comigo as memórias e a expectativa de viver por muito tempo, mas principalmente largaria pelo meio muitos planos importantes.

Quer dizer, eu acho que parece importante ansiar pela florada anual da rosa do deserto que botei perto da janela, para pegar bastante sol. Enfrentei até infestação de pulgões. Eliminei os ovos com cotonetes todo dia de manhã, limpei as folhas com pano. Reguei e adubei a terra. Morrer antes de ver o primeiro botão não parece simpático.

Tem o romance que finalmente comecei a escrever, e que eu não gostaria de partir antes de terminar. Coisa mais sem graça, almejar a vida toda publicar um livro, e deixá-lo escrito pela metade, com os personagens sem saber pra onde ir. Infeliz do escritor que morre antes de bater a página 100.

Morrendo amanhã, não dava tempo de juntar dinheiro para deixar para o meu filho. Ia ficar faltando ajudá-lo na escola nova, no vestibular, vê-lo escolher uma profissão. Não ia dar para saber se ele foi feliz ou não. Nem se comeu direitinho o café da manhã de terça-feira.

Meus pais chorariam o adeus imprevisto. Um filho morrer antes da gente nunca faz parte dos planos. Mas ir embora assim de repente pioraria tudo, eu acho, porque já há meses que não nos vemos. E não ia sobrar ninguém para cuidar deles na velhice. E aquela viagem juntos até algum país distante e bonito não ia mais poder contar comigo.

Se eu morresse amanhã, eu não conheceria em janeiro o bebê da minha amiga. Não saberia se vai mesmo haver ou não um Carnaval. Se vai ter vacina, em que data reabrem as praias, quem vai descobrir a cura. Ficaria eternamente em dúvida sobre quantas cientistas salvarão o mundo dessa vez e sempre.

Era tão melhor não morrer amanhã para esperar e ver quando e de que jeito o presidente cai, se ele pede perdão, se lamenta as mortes, as injúrias, os pés pelas mãos. Ver se quem votou nele admite a culpa, compartilha do crime, sente remorso. Desvendar o modo como sumirão para sempre os desembargadores, os engenheiros formados, os racistas de condomínio.

Ainda faltam três anos para acabar minha segunda faculdade. Duas vidas para ler tudo que eu quero. Uma boa década para dormir no peito do homem que eu amo, outra para conhecer de verdade as mulheres que me cercam. Morrer amanhã não vai me ajudar em nada.

Os planos de mais de 100 mil pessoas só parecem desimportantes porque elas são anônimas. Dê uma cara a elas, e uma lista de sonhos publicada no jornal, e morrer amanhã deixa de ser normal para se tornar, enfim, inaceitável.

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Freud explica https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/07/09/freud-explica/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/07/09/freud-explica/#respond Thu, 09 Jul 2020 19:35:40 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/divã.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=737 Pergunto se seria o caso de falar de ressentimentos e de gente que não consegue desapegar do passado, e ele até considera um bom tema, até que eu explico que o gancho é a postagem da ex-mulher do meu pai no Instagram, dizendo que ele não sabe cuidar das plantas do sítio igual ela cuidava. Tem quatro anos que eles se separaram. Ideia ruim, decidimos.

E se eu surfasse na onda do Bolsonaro com Covid, sem Covid, tá fugindo, não tá fugindo, olha a cobra, é mentira, puxo festas juninas, isolamento social sem quentão, as manifestações culturais, está aí uma problemática, daí desenvolvo até fechar com uma piada sobre ainda estarmos de quarentena no Natal? Não? Ok, perdão.

Também dava para fazer um paralelo, ainda dentro do tópico Bolsonaro, veja se me acompanha, eu digo que faz bastante tempo que ele não aparece para ofender ninguém, que até tirou água potável dos índios, fez vídeo vendendo cloroquina, mas não foi a público para efetivamente esfaquear verbalmente ninguém, correto?

E é nessa hora que eu digo que a gente está com saudades, até, por mais difícil de admitir que isso seja, porque a gente se habituou à violência, porque até mesmo ao abuso o ser humano se acostuma. Posso falar de feminismo e relacionamento abusivo, nesse ponto, e mencionar aquela sua frase clássica, como é mesmo, aquela que diz que até a merda é quentinha.

Tudo bem, eu posso pensar em outra coisa.

Podia ser um texto em solidariedade aos colegas mal compreendidos recentemente, o que você acha? Teve aquele texto falando sobre desejar a morte dos outros, viu o problema que deu? E rolou ontem um negócio com o Adão, o cartunista, que desde os anos 1990 falava de libertação sexual feminina e agora ficam chamando o cara de machista por causa de uma tirinha da Aline.

Dava pra usar isso e dizer que falta interpretação de texto e contextualização pra muita gente. Que hoje em dia todo mundo lê tudo correndo, e, pior, lê tudo procurando nessa leitura uma sombra que lhe convenha, você deve ver isso muito aqui no seu trabalho, não vê?

Daí eu usava esse mote para mencionar um texto incrível que li na internet, duma moça feminista, não conhecia ainda, agora estou seguindo, e ela falava que não dá para pensar em relacionamento aberto enquanto os caras não sabem nem lidar com o trabalho doméstico direito.

E eu ia falar que gostei muito do que li, mas que, putz, talvez aquele fosse um viés excludente, porque os caras que lavam louça e as cuecas vão achar que o texto não é pra eles, sacou, não vão acusar o golpe, e a mensagem não vai ser passada concretamente. Né? Luiz?

Luiz, você travou, eu acho. Tá me ouvindo?

Você congelou. Já reparou que ninguém congela numa cara boa? Será que isso dava um bom texto? Eu sei. Tá foda. Só ideia ridícula. Meu namorado sugeriu que eu fizesse um texto sobre a ironia de uma jornalista que fala de criatividade nas redes sociais não saber sobre o que escrever no post da semana no jornal.

Mas não tem coisa mais manjada que escritor escrever sobre bloqueio de escrita. Tanta gente já fez isso? Hum. E se eu fizesse uma lista de autores que já escreveram sobre isso e botasse uns trechos? Ruim, né. Texto com lista não dá.

Já sei! E um texto em que eu descreva essa nossa conversa aqui, eu e meu analista, o povo adora essas intimidades, e eu contando que eu te contei que não estava conseguindo escolher um tema, e falando dos assuntos que pensei e te falei, mas que você achou todos péssimos e me mandou pensar melhor?

50 minutos, já? Não é possível. Sessão virtual não pode durar um pouco mais? Seu próximo cliente ainda nem chegou. Digo, não chamou aí no Zoom. Eu vou continuar bloqueada, Luiz, socorro. Faz alguma coisa. Você acha que o problema são meus pais? Tem a ver com a introjeção do superego? A falta do objeto ou o significante criaram uma simbiose latente?

Luiz? Luiz? Você sumiu de novo.

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Ofmessias https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/04/22/ofmessias/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/04/22/ofmessias/#respond Thu, 23 Apr 2020 00:44:55 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/aias.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=671 Em frente ao muro de onde pendem os corpos dos enforcados, a personagem Offred se recorda da frase de Tia Lydia a respeito de como as coisas podem não parecer comuns agora, mas que, depois de um tempo, elas se tornarão ordinárias. “Ordinário é aquilo com que você está acostumado”, diz, no capítulo seis do livro “O Conto da Aia”.

No romance de Margaret Atwood, escrito em 1985, o costume é uma necessidade. Cultivá-lo busca evitar a anarquia. Naquela que é a exacerbação da conduta machista, materializada em uma nova sociedade chamada Gilead, a ideia não é fazer com que as pessoas achem que a ordem geral está correta, mas, sim, fazê-las esquecer como seria (e foi) um mundo diferente.

Em um cenário como este, conceitos antes repugnantes se tornam aceitáveis. Submeter mulheres a estupros mensais sob a justificativa do sagrado, torturá-las, humilhá-las, desprezar e eliminar homens que rejeitem exercer a dominação, ameaçar qualquer força dissonante: tudo é válido se é a isso que nos acostumamos.

Não é difícil se habituar ao tóxico. Pegue a síndrome de Estocolmo e o afeto pelo agressor, os relacionamentos abusivos que atravessam anos, ou os funcionários que resistem a abandonar o emprego mesmo sob persistentes episódios de assédio moral.

Como em Gilead, muitas vezes estes cativos não conseguem se lembrar de como era a vida antes. Assim, não só entendem que as condições atuais são as únicas possíveis, como chegam ao extremo de se convencer de que nunca mais haverá nada melhor que elas. Fora daqui não há de haver vida, determinam.

São mais propensos a cair neste vão irracional indivíduos já fragilizados emocionalmente de alguma forma. A moça que, com baixa autoestima, se conecta a um parceiro que a inferioriza ainda mais, o empregado inseguro de sua performance, convicto de que aquela vaga sub-humana é a única que pode conseguir.

Ou, quem sabe, também os cidadãos em isolamento social preventivo. Ameaçados pela equação do medo multiplicado por fatores variados, à míngua do equilíbrio emocional tendem a se esquecer como era o mundo antes desse atual, em que um líder se vale de ameaças, humilhações e desprezo para exercer o poder.

Exaltar torturadores, sugerir a morte de milhares, minimizar a fome, caluniar a imprensa, ridicularizar minorias, e sobretudo subestimar um vírus mortal que assola o mundo – conceitos antes repugnantes se tornam aceitáveis. Perdoam-se os crimes do comandante, veste-se o chapéu branco, ergue-se a saia em sinal de submissão. Adota-se um novo nome, com um Of na frente para designar posse.

Porque só assim para explicar a apatia que nos assola. Essa inércia. Talvez tivessem orgulho de nós os criadores de Gilead, ao ver que o máximo de insurgência contra o absurdo a que nos prestamos é amassar o fundo de panelas nas janelas dos apartamentos.

Mas, se não estamos indiferentes nem conformados, e sim apenas exaustos da imoralidade e dos desaforos, parece que é chegada a hora de reagir. Encarar o muro de onde pendem os enforcados e responder que não, não vamos nos acostumar nem tomar por ordinária a barbárie.

A ficção prova que há meios de fugir de Gilead. De não ser mais Of de messias algum. Sejamos, portanto, nossas próprias heroínas e heróis: nolite te bastardes carborundorum.

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Já tentou fazer sentido hoje? https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/11/12/ja-tentou-fazer-sentido-hoje/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/11/12/ja-tentou-fazer-sentido-hoje/#respond Tue, 12 Nov 2019 18:46:54 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/bacurau-320x154.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=560 Tá tudo muito esquisito. A velocidade das coisas que não dou conta de acompanhar, um presidente voa embora de seu país e eu ainda nem tive tempo de saber o que acho da viagem, do trajeto, do passageiro. Alienada, talvez, atrasada, mais provável. Ruas em outro canto pegaram fogo, um preso é solto, hienas, leões, óleo nas praias, reformas.

Andando pela rua escutei um miado no cano ligado à calha da loja de roupas. Domingo, tudo fechado. Um caminhão de bombeiros muito grande para transportar animais liga a sirene quando passa em frente ao bar, comigo dentro. Eu não sei o que vou fazer com esse filhote, agora. Ser responsável pelo outro quando mal se é responsável por si.

Já tentou dar comprimido para gato? Já tentou fazer sentido quando o mundo lá fora derrete feito vela de sete dias?

Pensei em usar a tampa da caneta como micropá e cavar a pele do rosto para ver até onde se chega. Se eu usasse essa espinha como atalho, porta de entrada. Talvez eu encontre meu cérebro. Pode ser que lá dentro alguma explicação esteja dando sopa.

Sinto vontade de comer bifes de bichos que nem existem. Invisto um bom dinheiro no suco de açaí do mercado chique da esquina, para depois esquecer a garrafa fora da geladeira e o açaí explodir manchando a parede do apartamento que nem é meu.

Que custa uma fortuna todo mês. Igual à conta de luz, e olha que eu nem tenho ar condicionado.

Vai ver é porque meus banhos demoram, enquanto fantasio sobre enfiar o sabonete inteiro na boca. Ou sobre como seria se eu trocasse o chuveiro pelo tanque da área de serviço, se eu ia caber, se era melhor cruzar as pernas ou deixá-las para fora.

Eu não sei mais se te amo. Não me lembro se terminei de ler aquele livro que você me deu. De quantos dias eu preciso para caminhar daqui até a Austrália? E se eu parar na sua casa antes?

Acho que as redes sociais estão me fazendo mal. As coisas lá são exatamente como eu queria que elas fossem, mas não são. Eu não tenho aqueles peitos, olha que móveis mais lindos, mentira que existe uma praia assim tão azul. Minhas paredes têm suco de açaí explodido.

O prazo da biometria está acabando. Posso mentir minha identidade? Se eu roer a pelinha em volta das unhas meu nome aparece diferente?

Um jornalista bateu no outro e apareceu ao vivo no rádio e na televisão. Conheço os dois. Torço só para um. As pessoas queriam um desfecho diferente, mais surreal e sangrento, foi o que li numa matéria de internet. Eu, que nunca quis matar ninguém, queria saber quantas vezes por dia um assassino pensa em como teria sido a vida se tivesse mudado de ideia minutos antes. Vou comprar uma violeta e deixar morrer só para testar em quais dias da semana me arrependo.

Eu não devia ter gastado aquele dinheiro. Nem dado aquele beijo. Onde eu estaria se nunca tivesse enviado aquela mensagem? Como faz para tirar a cabeça entalada no portão de ferro?

Quero sair sem roupa na rua. Mas meus peitos não são de Instagram. Ligo para a amiga astróloga. Ela explica que tá tudo esquisito mesmo, e que vai continuar piorando até janeiro do ano que vem. Mas isso é muito tempo. Mas é pro seu bem. Mercúrio não está retrógrado? Até está, mas ele é o menor dos seus problemas.

Já tentou escrever texto com retrogradação astral rolando?

Junte uma colherinha de chá de manteiga ou requeijão, faça uma bolinha, ponha o comprimido lá dentro e enfie no fundo da goela. É importante que ao menos os gatos sejam medicados em meio ao caos.

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Pegar mulher amadurece https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/10/28/pegar-mulher-amadurece/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/10/28/pegar-mulher-amadurece/#respond Tue, 29 Oct 2019 00:08:41 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/ilustra-ana-matsusaki-320x213.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=544 Na palestra do psicólogo, o tema era como as famílias vêm terceirizando a educação dos filhos, impedindo sua autonomia, estimulando competições injustas e o consumismo desenfreado. Um baita trabalho porco, esse nosso, e eu me vi à beira de vestir a carapuça aos prantos quando o terapeuta, um homem na casa dos 40, deu como exemplo uma conversa hipotética entre um pai e um moleque adolescente: “Sou melhor que você, filho, que ainda nem pegou mulher na vida”.

Parece que o jogo virou, doutor. Eu, que estava quase topando rachar com a humanidade esta culpa pelo fracasso absoluto na criação de seres humanos, agora não só continuo me achando uma mãe excelente, como passei a duvidar da sua capacidade como analista, palestrante, humorista e adulto. Ou essa colocação aí não é coisa de moleque?

Na tentativa de fazer graça, diante de um público majoritariamente feminino, o psicólogo aponta relações sexuais como índice de medição do sucesso, e ainda escolhe um vocabulário tão ultrapassado quanto asqueroso. Meu filho de 11 anos não faria melhor.

Uma amiga compartilhou uma imagem que diz que a prova de que sexualidade não é escolha é que ainda gostamos de homens (e isso não tem relação alguma com nos acharmos superiores por qualquer motivo, se você ainda não entendeu o feminismo volte 30 textos no blog e muitas casas na vida).

Acho que essa sensação – genuína – vem do fato de que nós, mulheres, vimos nos esforçando tanto para evoluir, é yoga, é análise, é tantra, é mapa astral, é ciranda para a lua, Freud, Lacan, livros, é coração aberto, e do outro lado vemos tão pouco esforço em prol de entrar em reforma para melhor atender-nos. Desanima.

Assistir figuras escolhidas para compartilhar conhecimento optarem por se comportar de maneira imatura, ainda que em um lapso de segundo, faz pensar que talvez haja uma autorização silenciosa e coletiva para que homens sigam sendo meninos eternamente.

Isso sem falar nas instâncias superiores, ocupadas por indivíduos que parecem recém-egressos do Ensino Fundamental II. A já exaustivamente comentada República da Quinta Série. Óbvio que uma parcela considerável da população constata e se incomoda com a conduta pueril de quem foi escolhido para liderar as decisões máximas da nação, mas em muitos casos os que apontam o dedo se esquecem de seus telhados de vidro.

A prática comum de rotular companheiras como um empecilho à felicidade e à independência, por exemplo, uma receita clássica dos comerciais de menos de uma década atrás. É um costume malandro que não se dá nem ao trabalho de uma retrospectiva histórica. Afinal, se há um sexo que passou séculos sendo podado e diminuído, e que por isso teria direito a todo o ranço do mundo, este sexo definitivamente não é o masculino.

Escolher aquelas que são para casar e as que valem para trepar – e depois reclamar da própria escolha -, classificar-nos com base apenas na subjetiva qualidade dos nossos atributos físicos, alimentar uma rotina de flerte constante com futuras candidatas à vaga já preenchida em uma relação mutuamente acordada como monogâmica: são ou não são práticas idênticas à de, em 2019, falar que o filho ainda não cresceu simplesmente porque ainda não “pegou mulher”?

Ninguém cresceu, parece. E, deste modo, fica realmente difícil imaginar que as próximas gerações se apresentem melhoradas, tendo como exemplo adultos estacionados bem antes do colegial. O problema pode até ser as famílias terceirizando a educação, impedindo autonomia, estimulando competições injustas e o consumismo desenfreado, mas é importante que a gente fale sobre essa imaturidade masculina normatizada e tente de algum modo trabalhá-la.

Em uma sociedade em que um psicólogo propaga em público discursos machistas arcaicos, em que nossos parceiros nos enxergam como bruxas castradoras, e o presidente da República chama a filha de fraquejada para, depois, se fantasiar de imperador-mirim ameaçando levar a bola embora depois que suas regras egocêntricas não são seguidas, é preciso redobrar o foco e a ponderação. O preço da liberdade é mais do que nunca a eterna vigilância.

 

 

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Dá-se um jeito https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/09/10/da-se-um-jeito/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/09/10/da-se-um-jeito/#respond Tue, 10 Sep 2019 19:28:59 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/mais-amor-320x213.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=490 Quando isso tudo aqui ainda era mato, e nada estava definido, eles disseram pra gente que aquele era o único jeito que havia. Não tinha mais nenhum outro jeito, concluíram brilhantemente, e, diante disso tudo, a gente ia ter que achar um novo jeito. Pois acharam.

O jeito foi dar uma cambalhota pro abismo, segurando três facas na boca e uma tesoura na mão, do jeito que a mãe da gente gritava para nunca fazer. Mas era um jeito. Um jeito de mudar, e também de devastar, discriminar, ameaçar, humilhar. Só que, se ninguém explicou que tinha um jeito específico, que mal havia? Importante é que deram um jeito, e era disso que a gente sabia.

Daí, depois que o jeito todo foi dado, tudo ficou de um jeito esquisito. Passou a não ter mais jeito de achar emprego, de ir para a escola, de fazer pesquisa, de comer direito e limpo, de escolher a cor da roupa, de respirar, de pagar conta, de falar livre. Nem mesmo jeito de beijar quem a gente quisesse, do jeito que a gente desejasse, tinha mais jeito de acontecer. Fomos virando todos uns sem jeito.

Ficamos sem jeito de admitir as coisas. De reconhecer que, de um jeito ou de outro, tinha o dedo de todo mundo naquele jeito que escolheram dar lá no começo. A gente realmente nunca levou jeito para me culpa, fosse do lado que fosse, mas talvez um jeito de começar a resolver as coisas era a gente, agora, passar a ao menos se desculpar pelo mau jeito.

Foi mal, gente, foi mal, nós mesmos, perdão por estar tudo desse jeito. Sabemos muito que, tivesse sido feito tudo com mais jeito, o jeito que a gente estava hoje era seguramente diferente. E agora, diante do caos, o que mais se escuta é que eles confiam na gente, e que a gente vai dar um jeito. Não importa o que te falte, eles dizem, mas algum jeito é certo que se dá.

Dá medo, fato, e parece que não tem, de novo, mais nenhum jeito.

Mas eu confio que, sim, nós daremos um jeito na escuridão das tardes, no desânimo generalizado, na falta de respeito e de educação. Com jeito, manteremos os pés firmes no chão e a cabeça acima das nuvens de fumaça e tóxico. O coração no céu e a boca no sol, um jeito de comer e engolir luz. Adotaremos novo posicionamento, que não mais o que nos põe em jeito de dominó, uns na frente dos outros. Agora, os ombros se escoram com jeito, e, emparelhados, ninguém mais cai.

Este será o nosso jeito pelos próximos três anos. Até chegar a hora em que, de algum jeito, a gente possa dar um jeito em tudo e reconstruir a nossa casa. Vamos cuidar para que nenhum de nós esmoreça, achando que do jeito que está tudo parece o fim das coisas mais uma vez.

De jeito maneira. Afinal, aprendemos que pra tudo “dá-se” um jeito, sim.

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Tem coca aí no bagageiro https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/06/27/tem-coca-ai-no-bagageiro/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/06/27/tem-coca-ai-no-bagageiro/#respond Thu, 27 Jun 2019 17:03:09 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/06/avião-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=429 Junto com os gafanhotos e a gripe espanhola, a maior desgraça da humanidade é quando vaza o vidrinho de xampu dentro da mala e fica tudo melecado. Não importa o que você precise usar naquela viagem, se é roupa limpa, sapato, livro ou remédio, vai estar tudo contaminado com a gosma do Colorama Nutre Ovo.

Por isso tem tanta gente que ensina na internet a organizar uma mala direitinho, prevenindo acidentes e ainda otimizando o espaço pra acomodar mais coisas que a gente realmente vá usar enquanto estiver fora de casa. Mais ou menos o que a japonesa Marie Kondo faz nas residências, só que aqui são especialistas em bagagem.

Já tem alguns anos que aprendi, por exemplo, a confeccionar rolinhos com as blusas e calças, porque parece que assim, tipo salsicha, elas cabem mais e cabem melhor. E a transferir os produtos de higiene para frascos minúsculos, com a contagem exata daquilo que vai ser necessário durante os dias viajando (e, ainda assim, compactos, eles às vezes insistem em explodir mini explosõezinhas desgraçadas).

Uma coisa que ninguém nunca me ensinou até hoje foi a arrumar mala com drogas. Nunca havia sofrido muito por causa disso, até porque eu achava que era ilegal, mas agora que a gente viu que dá pra sair fácil do Brasil com 39 kg de cocaína, sem arcar com taxas nem ser preso na revista, poxa, achei que ficou faltando o módulo entorpecente nos vídeos dos influenciadores de viagem no Instagram.

Algo na linha Marie Kondo mesmo, não carregue excessos, leve apenas aquilo que for consumir – ou comercializar. Pense que é possível repetir os looks. Que ninguém usa nada além de chinelo quando é verão. Que a maioria dos hotéis tem secador de cabelo. E que a cocaína vai sempre melhor se embalada em saquinhos plásticos e dissimulada nos fundos falsos.

Além de pensar que era proibido, eu também imaginava que estava definido pelo governo que só podia levar mala com 10 kg no máximo, então gostaria de uma ou outra aula no Youtube sobre como ajeitar padê na bagagem sem ter que pagar excesso no guichê.

Até porque tem pouca coisa mais humilhante na vida do que se ajoelhar na frente do atendente para abrir a Sansonite e escavar de lá de dentro suas intimidades, decidindo qual sapato vai, qual sapato fica, qual droga vai, qual droga fica, e isso que a gente já era obrigado a botar tudo no ziplock pra mostrar na imigração (neste caso, se eu levar cristal já dissolvido na água ela vai pro saquinho, pro frasquinho minúsculo ou jogo tudo fora?).

Os oficiais da revista e da alfândega me deixam em pânico, e eu nem 1 kg de cocaína transporto nas férias. Fico nervosa quando vou passar no raio x, ainda que não tenha dinheiro pra contrabandear nem meia garrafa de uísque, mas porque sempre acho que, de algum modo surreal, os policiais vão encontrar a ponta daquele cigarro de maconha que fumei com os pescadores em Caraíva no reveillón de 1998.

Ou mesmo a caixinha de Rivotril, que levo inteira diante da ameaça de insônia perpétua causada pelo jet lag, e que reconheço que tem toda cara de tráfico, mas que se me derem cinco minutos para achar a receita médica aqui na bolsa vou poder mostrar que é pra consumo pessoal mesmo.

Podiam ensinar a gente não só a sair com drogas, mas também a voltar com elas. Sou continuamente tão contida nos souvenirs, no máximo um chaveiro local ou chocolates do freeshop, que seria interessante aprender a voltar pra casa com tóxicos típicos de cada carimbo do passaporte. Minha tia, por exemplo, ia amar provar uma carreirinha de pó colombiano.

Mas confio piamente que tal pauta já esteja no radar do governo, isso de orientar melhor nós, os passageiros. Afinal, quem já extinguiu o horário de verão e a tomada de três pinos não faz nada além de zelar ininterruptamente por sua nação.

 

 

 

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Um capitão sem amigos https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/05/19/um-capitao-sem-amigos/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/05/19/um-capitao-sem-amigos/#respond Sun, 19 May 2019 15:43:28 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/05/pinóquio-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=403 As notificações do grupo da família no WhatsApp estão desativadas até 2022, mas volta e meia acho de bom tom conferir o que os primos escrevem para tumultuar a sequência de figuras fofas de gatinhos que as tias mandam. A reação é quase sempre de susto, não porque os comentários sejam surreais – eles são, mas a gente acostuma -, mas sim porque eles parecem escritos pelo meu ex-marido: magoados, amargos, ressentidos. E o ex, obviamente, já nem faz mais parte do grupo.

Além dele, expulso compulsoriamente após o divórcio, já tem alguns meses que também a parte legal e sensível abandonou a comunidade. Sobraram só os bolsonaristas e os de estômago forte, além de uma meia dúzia de desatentos o suficiente para passar sem ver pelas provocações dos da primeira categoria. O fato é que, tirando as mensagens de parabéns e os lamentos pelos familiares já desencarnados, as mensagens digitadas naquela terra são quase sempre uma enfezada defesa da política atual.

Tanto meus primos quanto meu finado digníssimo têm em comum esse traço editorial: produzem sempre obras embrulhadas em ranço. Até mesmo quando o assunto é dos mais neutros, imprimem na escolha das palavras um certo nível de deboche misturado a raiva antiga. Se a pauta evolui para análise de figuras no poder das decisões, então, ainda pior.

Eles, os parentes, vivem putos atacando quem acha patético fazer arminha com a mão, e ele, o ex, está sempre revoltado com o simples fato de eu continuar existindo. Todo mundo irado, todo mundo digitando merda. Qualquer semelhança com os discursos de ódio do Planalto não é mera coincidência.

Desconfio que nenhum deles tenha amigos. Os primos, o ex, o Jair. Porque passar raiva todo mundo passa. Desejar dor de dente a um desafeto também é intrínseco ao ser humano, assim como se imaginar autor de lindas réplicas quilométricas e ofensivas na medida. A diferença está, no entanto, no que cada indivíduo faz com essa bile depois que ela brota na garganta – você engole ou cospe? E, se cospe, tem quem ajude a limpar?

Pense em para quantas coisas boas os amigos servem. Companhia, cumplicidade, estender a mão, pegar no pé. São craques, sobretudo, em impedir catástrofes – é um amigx quem esconde a chave do carro depois que a gente já tomou todas, e é um amigx quem pode revisar os textos que a gente deseja postar no Face, mandar no Whats, citar na DR.

Sem o filtro da consciência externa, e sem a pesada mão do editor sobre os pensamentos, estamos todos na roça. Publicamos obscenidades, respondemos absurdos, ofendemos e tretamos com todo mundo, enquanto, se houvesse um amigo por perto, nada disso acontecia. Uma voz perguntaria, suave: “Será mesmo, capitão? Talvez o senhor não devesse”. E o resto (não) era história.

Tudo bem que fazer amigos na infância já não é fácil, imagina depois de velho. Talvez fique ainda mais complicado quando se é de extrema direita, imagino. Mas, se até Pinóquio, o menino com corpo e cara de pau da famosa fábula, descolou um conselheiro zeloso como o Grilo Falante, por que estes outros garotos também despreparados para o mundo não conseguiriam?

Na história, é a Fada Azul quem dá o raciocínio ao boneco. No Brasil de 2019, as coisas já há tempos não são tão lúdicas, e o única solução para a socialização dos homens sem amigos responde por um nome menos mágico: “lucidez”.

 

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