Do Meu Folhetim https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br Meias verdades sempre à meia luz Thu, 30 Sep 2021 12:29:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 2020, um ano sem saliva https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/31/2020-um-ano-sem-saliva/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/31/2020-um-ano-sem-saliva/#respond Thu, 31 Dec 2020 11:00:09 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/bobina-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=908 Comecei (talvez tarde) a postar no Instagram uma retrospectiva das matérias mais legais que fiz em 2020. Percebi que não ia dar tempo para uma publicação diária cobrindo os doze meses, especialmente porque a primeira delas foi ontem e hoje o ano já acaba, mas, enfim, o que importa ao ser humano mesmo é a boa intenção e não a orientação espacial em si.

O objetivo da série de reportagens nunca foi só a autopromoção descarada, vejam como sou boa no que faço, mas também usar as redes sociais como uma espécie de museu de mim mesma caso eu venha a morrer ainda nesta quinta-feira, ou mesmo já no começo de 2021.

Afinal, o coronavírus, o desgosto e a velhice são destino inevitável para todos – a única coisa que a gente tem certeza que democraticamente não virá para nenhum brasileiro é a porra da vacina.

Este 2020 foi um canalha, como diz minha mãe, essa parte é inegável. Mas houve um momento dele que guardarei feliz para sempre na memória, e que eu toparia, para revivê-lo, até mesmo entubar outro 2020 a seco se preciso fosse: minha participação no programa “Roda Viva”, da TV Cultura.

Escalada para representar esta Folha na entrevista com a escritora Nélida Piñon, experimentei emoções variadas. No dia do convite, chorei, emocionada. Na semana seguinte, tive insônia, o que ajudou no projeto de reler tudo que precisava. Na véspera, tive dor de barriga. E, no dia propriamente dito, achei que fosse enfartar seis vezes.

Na sala de maquiagem, a gente fica se achando incrível, porque os funcionários fazem um trabalho espetacular. No cafezinho com a Vera e os outros colegas, antes de entrar no estúdio, tudo parece de novo sob controle, porque é preciso apenas repassar o roteiro de perguntas.

(Meu analista tinha dito que era para eu levar apenas cinco perguntas e improvisar o resto lá, porque mais que isso, assegurou ele, seria sintoma de neurose. Minha lista tinha 24 questões e duas faixas bônus.)

Porém, na hora que toca a musiquinha de abertura do programa, e aquela vinheta gira nos monitores pela primeira vez, ali eu achei que fosse vomitar de nervoso. Ou, no mínimo, cuspir um pedacinho do coração pela boca.

Se no Roda eu estava deslumbrante, nas minhas idas ao supermercado em 2020 eu devia parecer um trapo. Um dia, no corredor das geladeiras, topei com um dos colunistas mais profícuos aqui deste jornal, e que me contou, entre um iogurte e outro, que já estava de saco cheio, que tinha medo de ficar sem dinheiro, sem a filha, sem cabelo, sem saúde.

Horas depois, o colunista me escreveu no WhatsApp. Oferecia ajuda para o caso de eu estar sendo agredida pelo namorado que ele havia acabado de conhecer lá no mercado, ele não sabia se podia confiar que se tratava de um cara bacana, mas que no fim das contas aquelas manchas roxas que eu tinha no olho o haviam deixado preocupado e em estado de alerta.

Eu só tinha decidido que naquela semana não passaria mais o corretivo para olheiras. Grande erro. Eu agora parecia alguém que precisava de um médico, ou da polícia. No Pão de Açúcar, vivemos também outro momento notável de 2020: quando fomos todos desafiados a abrir saquinhos de hortifrúti sem usar saliva na ponta dos dedos.

Se não pode tirar a máscara para nada, obviamente não dá para cuspir na mão em público. Conheci, nesses 300 dias de isolamento, mercados que já deixavam várias sacolinhas abertas e dispostas nas gôndolas para os clientes. Uns fofos.

Em outros, consumidores deram show de técnica ao esfregar o plástico entre as mãos, para vê-lo, aquecido, se abrir como uma flor de primavera. Comigo, o que funcionou foi pingar álcool gel para umectar as digitais, imitando a baba de maneira fidedigna e eficaz, e abrir os saquinhos aos milhares diante de hordas de fregueses incrédulos.

Foi assim que enchi meus carrinhos com ingredientes infinitos para as milhares de receitas que resolvi executar em casa, no início da pandemia, quando eu ainda tinha paciência para cozinhar três vezes ao dia.

O passar dos meses, no entanto, me transformou de Ana Maria Braga em sócia do Rappi. O aplicativo assumiu a tarefa de me manter viva trazendo insumos necessários à manutenção de uma alimentação regrada: a cada uma hora, uma besteira calórica ingerida. Sem falhas.

Fomos, de fato, a extremos neste 2020. Pulamos de gastadores compulsivos no Mercado Livre a poupadores desesperados no último bimestre. Com a escola das crianças instalada em casa, nos transmutamos de Drauzio Varella paciente em pais que evocam o Homem do Saco no recreio.

Em março a gente não conseguia dormir. Em novembro, a gente não conseguia acordar. A vida fitness do primeiro semestre deu lugar ao sedentarismo mórbido no segundo. O plano de endurecer a bunda já foi realocado para depois da aplicação da segunda dose de Coronavac – ou seja, nunca mais nessa existência humana.

E, ainda que essa instabilidade não nos orgulhe, se houve maiores guerreiros que a gente foi neste ano, desconheço. Somos uma exibição em looping do meme da Deise bêbada: levantando, vivos, e ainda fazendo caridade.

Estamos numa agonia imensa para voltar a passar saliva nos saquinhos, nos dedos, nos amigos, em desconhecidos, é verdade. Mas, depois desse desafio que foi 2020, a gente aguenta qualquer coisa, inclusive esperar mais tempo.

Disseram que a palavra do ano foi resiliência. Se não foi, devia ter sido, caso houvesse concursos para eleger coisas e definir períodos. Que em 2021 a gente continue sabendo se adaptar e encontrar saídas.

Feliz ano novo.

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Morrer amanhã https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/10/morrer-amanha/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/10/morrer-amanha/#respond Mon, 10 Aug 2020 10:00:54 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/cova-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=763 Uma grávida de 34 anos deu à luz já inconsciente, e morreu sem ver a filha recém-nascida. Um homem de 37 tinha se mudado havia duas semanas para morar com a namorada, e morreu antes mesmo de desembalar todas as caixas. Outro, de 52, andava ansioso com a formatura do filho na faculdade em dezembro – não deu tempo de esperar.

Se eu morresse amanhã, morria triste de deixar tanta coisa pra trás. Nenhuma hora é boa de se morrer, claro, mas essa agora, justo amanhã, ia não só levar embora comigo as memórias e a expectativa de viver por muito tempo, mas principalmente largaria pelo meio muitos planos importantes.

Quer dizer, eu acho que parece importante ansiar pela florada anual da rosa do deserto que botei perto da janela, para pegar bastante sol. Enfrentei até infestação de pulgões. Eliminei os ovos com cotonetes todo dia de manhã, limpei as folhas com pano. Reguei e adubei a terra. Morrer antes de ver o primeiro botão não parece simpático.

Tem o romance que finalmente comecei a escrever, e que eu não gostaria de partir antes de terminar. Coisa mais sem graça, almejar a vida toda publicar um livro, e deixá-lo escrito pela metade, com os personagens sem saber pra onde ir. Infeliz do escritor que morre antes de bater a página 100.

Morrendo amanhã, não dava tempo de juntar dinheiro para deixar para o meu filho. Ia ficar faltando ajudá-lo na escola nova, no vestibular, vê-lo escolher uma profissão. Não ia dar para saber se ele foi feliz ou não. Nem se comeu direitinho o café da manhã de terça-feira.

Meus pais chorariam o adeus imprevisto. Um filho morrer antes da gente nunca faz parte dos planos. Mas ir embora assim de repente pioraria tudo, eu acho, porque já há meses que não nos vemos. E não ia sobrar ninguém para cuidar deles na velhice. E aquela viagem juntos até algum país distante e bonito não ia mais poder contar comigo.

Se eu morresse amanhã, eu não conheceria em janeiro o bebê da minha amiga. Não saberia se vai mesmo haver ou não um Carnaval. Se vai ter vacina, em que data reabrem as praias, quem vai descobrir a cura. Ficaria eternamente em dúvida sobre quantas cientistas salvarão o mundo dessa vez e sempre.

Era tão melhor não morrer amanhã para esperar e ver quando e de que jeito o presidente cai, se ele pede perdão, se lamenta as mortes, as injúrias, os pés pelas mãos. Ver se quem votou nele admite a culpa, compartilha do crime, sente remorso. Desvendar o modo como sumirão para sempre os desembargadores, os engenheiros formados, os racistas de condomínio.

Ainda faltam três anos para acabar minha segunda faculdade. Duas vidas para ler tudo que eu quero. Uma boa década para dormir no peito do homem que eu amo, outra para conhecer de verdade as mulheres que me cercam. Morrer amanhã não vai me ajudar em nada.

Os planos de mais de 100 mil pessoas só parecem desimportantes porque elas são anônimas. Dê uma cara a elas, e uma lista de sonhos publicada no jornal, e morrer amanhã deixa de ser normal para se tornar, enfim, inaceitável.

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A quarentena é mais difícil para o homem https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/06/19/a-quarentena-e-mais-dificil-para-o-homem/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/06/19/a-quarentena-e-mais-dificil-para-o-homem/#respond Fri, 19 Jun 2020 18:52:13 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/homem.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=725 Tem gente perdendo parente, tem desempregado, tem morador da favela, e dono de negócio falindo, mas ouvi dizer que a quarentena está difícil mesmo é para o homem. Fatores intrinsecamente ligados à masculinidade encontram-se, dizem, acima de todas as dificuldades e agravantes neste severo período que o mundo enfrenta. Estou consternada.

Até os políticos já se deram conta disso e vêm tentando nos avisar. Enquanto o presidente da República entende que salões de beleza são essenciais e autoriza seu funcionamento em meio a uma pandemia que já matou quase 50 mil, um vereador no Mato Grosso do Sul alerta para o óbvio: “Imagina a mulher sem fazer sobrancelha, cabelo, unha, não tem marido nesse mundo que vai aguentar”.

Deve estar complicado mesmo. Acordar todo dia ao lado de uma mina que arruma a casa, arruma o almoço, arruma os filhos, arruma trampo, arruma dinheiro, arruma tempo, mas não se arruma, ah, tenha dó. Realmente não há meios pra que um casamento sobreviva.

Nestas condições, falaram, fica tão difícil ser um cara na quarentena que restam poucas alternativas além de agredir a esposa. Claro, são todos os homens aqui pessoas de bem e respeitosas, não erguem a mão nem pra uma flor, mas agressão verbal todo mundo sabe que existe desde que o mundo é mundo, e se não deixa marca é porque não feriu.

Gorda. Feia. Descuidada.

Isso fora o problema que as mulheres criaram ao ficar em casa o tempo inteiro, acabando com o espaço para as necessidades vitais masculinas. Não há quem sobreviva sem poder bater punheta, por exemplo. E auxílio emergencial pra isso o governo não inventa. Sumir com a namorada de casa um pouco. Porque transar é legal, mas gozar sozinho olhando pra tela do computador não tem preço.

E quem tem filho, então? Coitado. Vocês não imaginam o tamanho da dificuldade. Agora, com a quarentena, é preciso fazer tudo que antes alguém – não sei quem exatamente – fazia. É exaustivo ter que ajudar a mulher em tudo. Ajudar. Fazer metade, ou quase isso. Onde já se viu ter que trabalhar e ainda decidir o que as crianças vão comer no jantar.

Ser homem e pai na quarentena anda muito custoso até mesmo para quem não mora junto com a chata de uma mulher, porque conseguiu se livrar deste problema antes do coronavírus. Ela aparece toda semana, entrega a criança e sai andando, e nem pra ficar e trocar uma fralda, dar uma força, botar pra dormir. Fica tudo na mão do homem, obrigado a cuidar sozinho do próprio filho.

Certos estão aqueles que, pela bênção de Deus, moram em outra cidade, estado ou país. Assim basta dar um telefonema semanal, e se não quiser ligar também tudo bem, porque criança esquece rápido, se ocupa com videogame, não vai nem registrar que o pai faz tempo que não aparece. E é claro que se pegar Covid tem a mãe para resolver. Mulher é para isso.

Mas e pros solteiros sem filhos nem cachorro nem parente, sem vó morando junto, sem compromissos, será que também tá complicado? Super. Primeiro que da única vez que eles tentaram chamar a empregada pra dar um jeito na casa as mulheres da família já falaram um monte e encheram o saco.

Segundo que, sem quem limpe, cozinhe e lave, sobra menos tempo para a punheta, para o Netflix e para o Zoom com os brothers. Fora que alguém tem que trabalhar nessa casa. Porque a vida não é só diversão. Não dá para eu passar duas horas no Tinder, por mais que eu queira, quando há boletos vencendo e uma chefe (tinha que ser mulher) pesando na minha.

A quarentena, disseram, está difícil mesmo é para o homem. Bom seria ter nascido mulher, que consegue tudo mais fácil na vida.

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Apelidinhos e vozinhas https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/06/03/apelidinhos-e-vozinhas/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/06/03/apelidinhos-e-vozinhas/#respond Wed, 03 Jun 2020 21:35:17 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/apelidinho.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=717 Começou quando a cachorra fez algo fofinho, como tentar esconder o osso debaixo do cobertor, ou coçar, de pé, a barriga, usando uma das pernas. Ou foi no dia que ela ficou com as orelhas viradas do avesso parecendo uma menina com o cabelo preso atrás da orelha. Se bem que talvez tenha sido quando a gata ganhou uma personalidade inventada. Agora que ela é cantora, insegura, e meio mentirosinha.

Não sei ao certo. Só sei que, definitivamente, envolvia algum dos bichos da casa. Ou talvez o videogame do menino. Que, por mais que tenha aquela dancinha infernal, também tem uns toques gracinha. Tipo na hora que ele chama o escudo pelo nome em inglês e no diminutivo.

Daí, ou daquilo tudo de antes, tanto faz a origem, foram nascendo os apelidos novos. Que foram ganhando variações. E depois as novas versões açucaradas das variações iniciais. Acabou que todo mundo agora tem um nome novo dentro de casa. E, como ninguém sai mais de casa pra lugar nenhum, o nome novo virou o nome da vida. No RG, em ordem vêm o apelidinho, o sobrenome um, e o sobrenome dois.

Foi quando abriram as porteiras da quarentena e o mundo voltou ao normal, ou ao novo normal, que ninguém sabe ao certo o que significa porque esse tipo de coisa não existe, ou é normal, ou é novo, novo normal não tem. Mas o que importa é que a gente saiu pra rua. De máscara. Passando álcool gel em tudo, ainda. Mas saiu.

E foi meio constrangedor, primeiro porque no novo normal não tem regra de etiqueta estabelecida, então tem quem continue usando o cotovelo no cumprimento, tem que tenha voltado às origens estendendo a mão, e tem os malucos que inventaram saudações inovadoras, que batem o quadril no antebraço ou encostam só as pontinhas dos joelhos.

E, segundo, que foi ainda mais constrangedor porque agora está todo mundo muito tenso, andando na rua meio noia, sem emprego e sem dinheiro, pagando iogurte em seis vezes, dando ração de quinta pros bichos da casa – os ossos que a cachorra esconde são seminovos, e a gata cantora só come milho transgênico no camarim.

De tanto usar moletom e pantufa, a gente não sabe mais se vestir direito. Que dirá botar a blusa pra dentro da calça. Ferro de passar agora é vintage, igual televisão de tubo e computador de torre. Tem aula online pra reaprender a andar de salto, dar nó na gravata, a abotoar sutiã.

Workshops inteiros sobre o que um adulto precisa carregar na carteira, como organizar uma bolsa, vídeos no Youtube para saber ajustar a mochila nas costas. Tutorial para não perder as chaves de casa na rua. Manobras para tirar o carro da garagem módulo um. Confira cinco dicas infalíveis que vão fazer o seu ônibus parar no seu ponto.

E, se não bastassem esses ajustes, toda a inabilidade social, financeira, estética, biblioteconômica e de mobilidade urbana, foi todo mundo solto de volta na rua – de máscara, passando álcool gel em tudo – usando apelidinho fofinho pra chamar os outros. E, pior: falando com vozinha.

Não precisavam vir os sociólogos experientes, e nesse aspecto não havia nada que infectologistas pudessem fazer, porque o mundo inteiro sabe que o mundo inteiro usa uma voz diferente dentro do relacionamento. Pode até demorar para aparecer, mas ela sempre surge e é invariavelmente ridícula.

Então junte-se a isso o fato de que, agora, visualizem que é importante, estamos todos na rua de máscara, com álcool gel, perdendo as chaves, sem mochila, sinalizando pro Penha-Lapa, de moletom e despencando do scarpin, e ainda por cima afinando uma vozinha boçal como forma aceitável de comunicação.

A sorte é que parece que descobriram uma vacina, há estudos que indicam que o processo vem avançando. Até o meio do ano que vem, seremos cerca de dois terços do globo imunizados. Contra a vozinha, obviamente. Porque a do coronavírus parece que demora um pouco mais a chegar.

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Exercício do adeus https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/04/12/exercicio-do-adeus/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/04/12/exercicio-do-adeus/#respond Sun, 12 Apr 2020 23:35:23 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/flores.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=658 Oi.

Imagino que esteja curioso, então, antes de tudo, quero te tranquilizar: foi um sucesso. Seus amigos mais queridos, antigos colegas de trabalho, as mulheres que você amou, toda nossa família. Estavam todos presentes e pensando fortemente na sua história. Claro, tínhamos as limitações que o novo mundo impôs, mas a videoconferência funcionou superbem e, pelo computador, todos puderam se despedir de você.

Pessoalmente, só eu e outros poucos. Bem poucos. Para nos abraçar, foi preciso esperar o fim da cerimônia, e acabei chorando sozinha, de pé em frente ao buraco no gramado imenso e bonito onde depositaram sua urna simples, nem isso eu pude escolher.

Para te vestir, eu havia escolhido aquela camisa bonita azul, sua cor favorita. Aquela, que você trocou na loja depois que te dei uma branca e dois números menor que o correto, alguns aniversários atrás. Mas também não podia. Agora, quem morre vai sem roupa para debaixo da terra, porque não há tempo para formalidades nem gentilezas.

Da tela digital, todos mandavam beijos e abraços. Seu melhor amigo leu um texto bonito, que falava que a morte é apenas a passagem para outro plano, um plano que os olhos da gente não enxergam, onde não há sofrimento nem dor. Um consolo, pai, para quem assistiu sua luta ligado a máquinas geladas, incansáveis. E, mesmo fortes, elas falharam.

Porque, pai, diante deste inimigo, tombam até mesmo os melhores – e eu sei que você se considerava um deles. Talvez por isso você tenha menosprezado o tamanho da ameaça, inflando o peito e se lançando, cego, à batalha. Ou pode ser que você tenha desejado demonstrar coragem, porque foi assim que o mundo te ensinou desde pequeno que era preciso agir caso quisesse sobreviver.

Por muitos anos você foi um sobrevivente. Fruto resistente de uma infância caótica, na cabeça mil demônios, uns pés pelas mãos na hora do amor e do zelo. Um coração imenso e forte. Mas teimoso, pai. Muito teimoso.

E foi essa cabeça-dura, essa descrença, essa mistura de valentia com cegueira, de orgulho com ignorância, que derrotaram você, por fim. Se você morreu, foi por não acreditar que, neste momento do mundo, a maior prova de amor que as pessoas poderiam te dar era ficar longe.

O que custava esperar um pouquinho para fazer de novo seus churrascos? Os almoços de fim de semana? Entender que não dava para sair nem para “uma voltinha”? Por que foi tão difícil acreditar quando eu dizia que a simples presença de parentes e amigos no mesmo lugar seria suficiente para passar para você – alguém do grupo de risco – este vírus invisível, porém poderoso?

Nunca foi fácil fazer você confiar em mim. Espero que agora, quando te conto que, embora triste, foi um adeus bonito, você acredite. Até breve, pai.

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Neste domingo de Páscoa, 12 de abril, meu pai está vivo. Menos forte do que imagina, mas vivo, e presente dentro do possível, dadas as circunstâncias da contenção da pandemia de coronavírus. Mas meu pai, assim como vários pais de muitos conhecidos, várias mães, avôs e avós, teimosamente não acreditam nas estatísticas nem nas recomendações das autoridades de saúde do mundo todo, e ignoram a necessidade da quarentena e do isolamento social. Escrevo essa carta na tentativa de que ele e todos os que ainda não compreenderam a gravidade do momento se convençam e mudem seu comportamento. Eu amo meu pai, e já há mais de um mês não nos encontramos. E isso porque eu não quero ter que escrever essa despedida de verdade. Não agora, não por isso. Se você ama alguém, também mantenha distância. Fique em casa. O tempo vai provar nossa razão e nosso afeto.

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Está liberado sentir medo https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/04/05/esta-liberado-sentir-medo/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/04/05/esta-liberado-sentir-medo/#respond Mon, 06 Apr 2020 01:02:02 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/isolamento.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=652 Não há mais certezas, tampouco a ordem como a conhecíamos antes, mas há, pela primeira vez em tempos, a liberdade para sermos vulneráveis o quanto for preciso. A observação é de Alain de Botton, escritor suíço que acredita que a crise que o mundo atravessa ao menos poupou a humanidade da pressão de estar feliz.

Os brasileiros manjam pouco de filosofia. Porque, se na teoria compreendem colocações assim tão certeiras quanto profundas, na prática o que se vê não poderia mover-se em sentido mais oposto. As redes sociais que o digam. É nelas que mora a versão mais faceira do isolamento. Lá, parece, a obrigação de ser contente não desaparece nunca.

Com uma conta bancária e duas mansões de vantagem, os endinheirados romantizam o isolamento mostrando as bolhas nos dedos da surpreendentemente divertida (e inédita) faxina (que consideram) completa. Legendam com hashtags imperativas suas fotos estendidos no extenso jardim gramado, completando o treino funcional antes de um mergulho na piscina. Assim até eu ficava em casa.

Por falar em bolha, a minha é composta de classe-médiers que enxergam na quarentena a possibilidade de mudar não só a si mesmos, mas ao mundo como um todo. Pretendem alcançar e compartilhar a iluminação espiritual por meio de lives com conteúdo tão eclético quanto tutoriais de panquecas americanas, performances dos amigos artistas, e teorias gênero-sócio-raciais sobre a estrutura dos reality shows.

Neste nosso universo peculiar, debatemos memes no Zoom, nos compadecemos da Europa, e fustigamos panela enquanto não chega o Rappi com o mercado da semana. Mas tudo, sempre, com muito bom-humor, porque não somos nem loucos de aparentar desespero.

Nos esquecemos, no entanto, que uma coisa é manter o otimismo em prol da saúde mental. Outra, bem diferente, é obrigar-se a ele, impedindo que ocasionalmente brotem os medos e questionamentos naturais de um período comparável apenas às agruras de uma guerra mundial ou à época da peste.

Algo como ser tudo bem bolar atividades lúdicas para os filhos, e ser tudo bem também sentir vontade de chorar em cima do trenzinho feito de rolos velhos de papel higiênico.

A dependência da felicidade eterna é tão grande que, quando um sujeito, todo excêntrico, expõe sua fragilidade pelas redes – e isso sem se valer do subterfúgio do relato autodepreciativo -, não nos conectamos com ele. Pulamos o post, rolamos para outro perfil. Passamos para alguém que nos lembre menos da nossa própria impermanência e vulnerabilidade.

Quantos de nós realmente estamos oferecendo algum tipo de ajuda? Do apoio emocional aos que perderam parentes, ao prato de comida para quem não tem nada na geladeira? Não cuidamos direito nem dos nossos velhos, que dirá dos velhos dos outros. E, se estamos inertes, não é falta de força, mas de compreensão da realidade.

É dela que vem a romantização do isolamento. As selfies em família com máscaras fofas combinando. A era da felicidade obrigatória, no entanto, já passou, e para sobreviver a este momento é preciso desvendar os olhos para a urgência do mundo. Dos que estão em casa sem perspectiva de trabalho ou dinheiro, dos que vão perder coisas importantes. O tempo de um bom negócio. De uma relação. A última chance de uma sonhada maternidade. Os últimos anos da vida.

Claro que é saudável usar o confinamento como uma oportunidade de reconexão com a família, para mergulhar num projeto pessoal, buscar autoconhecimento. Ninguém sugere aqui que se antecipe o luto e se espere pelo fim. O pedido é apenas pelo emprego da sobriedade que o momento pede. Se já conseguimos reconhecer a importância de ficar em casa, também seremos capazes de compreender o valor que o sentir medo tem.

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Envelheça longe daqui https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/03/27/envelheca-longe-daqui/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/03/27/envelheca-longe-daqui/#respond Fri, 27 Mar 2020 21:20:59 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/Idosa-.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=649 Em “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, o Arganaz e a protagonista estão sentados lado a lado na plateia de um tribunal. “Gostaria que você não me apertasse tanto, mal posso respirar”, reclama o mamífero, ao que Alice docilmente responde que não pode evitar. “Estou crescendo”, explica.

Arganaz avisa a amiga: “Você não tem o direito de crescer aqui”. “Não diga tolice”, repreende a menina. “Não sabe que também está crescendo?”. Indignado, ele responde: “É, mas cresço num ritmo razoável, não dessa maneira absurda”.

A atual epidemia de coronavírus no mundo é nossa Alice. Por causa de sua presença e imponência, somos obrigados a lembrar que, queiramos ou não, temos todos o mesmo destino: crescer e envelhecer. E, a depender da etapa em que estamos neste caminho, é possível que a gente se identifique mais ou menos com as dores previstas nele.

Há quem até entenda que a velhice lhe aguarda, mas imagina que seja algo distante. Outros, mais conscientes, percebem desde muito cedo que, quando menos se espera, a terceira idade bate à porta, impiedosa e democrática. Mas, à parte a equipe em que se joga, de maior ou menor negação da realidade, somos unânimes no pânico e no desgosto com o desfecho da trama.

De todo modo, estarmos sob a ameaça de uma doença que mata muito mais idosos do que crianças e adultos expôs o que de pior temos como pessoas. Somos, cada vez mais, uma sociedade obcecada com a juventude, que idolatra conceitos como a beleza, a perfeição e o vigor. Rejeitamos tudo que se opõe a eles.

E, diante de um vírus tão seletivo ao ceifar vidas, também perderam, alguns de nós, o pudor de admitir que, se pudessem, também fariam como ele: ofereceriam os velhos ao sacrifício. Respiram, aliviados, com as baixas taxas de mortalidade daqueles abaixo dos 50, e propõem sugestões esdrúxulas de funcionamento do mundo, travestindo riscos de cuidados.

Em entrevista ao caderno de saúde deste jornal, a antropóloga e também colunista da Folha Mirian Goldenberg explica que, em suas pesquisas com nonagenários, escuta frequentemente a queixa de que, se antes da pandemia eles já se sentiam descartáveis, agora a percepção é de uma morte simbólica. Até porque, muitos deles têm plena consciência do desprezo evidenciado pela doença.

Ele está lá, sublinhado na fala de empresários gananciosos, eles próprios à imagem e semelhança dos “velhinhos” a quem ofendem ao sugerir que, ah vá, tudo bem que morram se o país e os jovens não pararem. Passassem, como Alice, através do espelho, veriam do outro lado a aparência com a qual tanto se enojam, e, mais que as rugas evidentes, o ridículo de quem tenta a qualquer custo camuflar o que todo mundo vê.

Está, sobretudo, emoldurado pela boca infecta daquele que, em vez de pouco ou nada fazer, deveria desempenhar o papel de líder maior de uma nação que, até 2060, estima ter 32% de sua população na faixa acima dos 60 anos – a mesma que ele, sem qualquer honra ou histórico notável, já ocupa.

É um “Cortem-lhe a cabeça” que se ouve quando a decisão superior de um governo, impulsionada pela pressão dos empresários que se acham muito jovens, ordena que se encerre a quarentena. Isolamento, este, que tem por objetivo principal resguardar e tratar de maneira digna os futuros doentes (doentes velhos, é claro, são sempre eles que atrapalham).

Na trama de Lewis Carroll, é justamente mirando o Arganaz que a Rainha de Copas aplica seu bordão pela última vez, antes que o livro termine. Aquele que reclamava do curso natural da vida, que negava à protagonista o direito de cumprir com seu ciclo humano, acaba na fila real para ter a cabeça cortada.

Importante lembrar que o Arganaz é o menor personagem de “Alice” – em tamanho, e em relevância. Porque é assim que roedores preguiçosos tendem a entrar para a história.

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Manhês em quarentena https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/03/17/manhes-em-quarentena/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/03/17/manhes-em-quarentena/#respond Tue, 17 Mar 2020 16:53:00 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/isolamento-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=634 Os números do coronavírus são impressionantes, mas mais impressionante mesmo é o número de vezes que meu filho já falou a palavra “mãe” na manhã de hoje. Estamos no primeiro dia de isolamento – ontem, ele foi à escola apenas para buscar materiais e orientações sobre o ensino à distância. Surpreendente, mas não encontrei até agora entre os papeis na mochila algum que me dissesse a verdade: que este vai ser um período infernal.

O portal virtual do colégio tenta de algum modo reproduzir o que aconteceria em sala de aula, não estivesse o mundo seguindo um roteiro clássico de filme com o Morgan Freeman. Mas faltam os amigos, o clima da classe, e falta, especialmente, a professora. O que dizer dessa mulher que eu mal conheço e já amo?

A única vez em que meu filho não usou o pronome “mãe” para evocar minha atenção foi quando trocou meu nome pelo dela. “Prô, me ajuda?”, pediu, confuso com a plataforma bugada e cheia de pastas de lição em branco, e confuso com a figura que, em vez de giz e canetões, empunha uma colher de pau coberta de lentilha.

Mas foi um breve deslize, lapso mental de rompimento recente. Afinal, até sexta passada era dela que ele recebia todo o auxílio, todo o carinho e suporte e cobranças necessárias a um menino de 11 anos que agora me aponta na tela do computador um exercício sobre potência em matemática, e outro do período paleolítico em história.

E eu, o que eu entendo disso tudo? Faz pelo menos 25 anos que tive essas aulas no colégio, e não faço ideia de por onde começar a orientá-lo. E, ainda que soubesse o caminho, ainda desconheceria a fórmula mágica que ensina mães em home office a coordenar demandas do trabalho com as da prole.

Uma amiga produtora de TV pergunta no grupo das meninas se alguma de nós topa gravar programa que vai mostrar atividades lúdicas boladas pelas famílias para o período de quarentena. Outra amiga responde que ela topa, sim, e que as atividades lúdicas às quais ela vai submeter os filhos envolvem faxina e arrumação de armários.

Porque é isso, a rotina não para. O chefe não vai perdoar minhas entregas (e é bom que não perdoe mesmo, pelamor, precisamos todos mais que nunca nos manter empregados), a casa não vai perdoar mais que dois dias sem vassoura e pano, há que se lavar roupa, há que se fazer comida, a cachorra ainda tem que sair para passear, ainda que seja de máscara.

Paro três minutos para conferir o WhatsApp, ouço os áudios de colegas da mesma classe enfrentando problemas semelhantes e pedindo socorro, uma mãe se solidariza, quem quer o DVD do “Croods” emprestado, e sorrateira me perco no meme que alguém mandou noutra janela, a imagem de uma mulher em frente ao computador com três crianças que jazem amarradas no tapete logo atrás. Eu rio.

Só que nem bem começo a achar graça e cogito compartilhar no grupo de mães do bairro, e sou convocada para ajudar a fazer rodar o vídeo sobre constelações da aula de ciências. Está travado. Eu também.

Levei três horas para conseguir terminar de escrever esse texto. Só nesta frase, foram 16 minutos. Contabilizei 212 “mães”, 74 “manhê”, e isso que nem todas as falas da criança foram testadas para o vírus do vício verbal.

A cebola da lentilha queimou há pouco, mais ou menos ao mesmo tempo em que as gatas derrubaram o varal em cima da terra dos vasos. Juro que, se não fosse total grupo de risco, era na casa da minha mãe que eu ia cumprir minha parcela da quarentena. Ô, mãe, me ajuda?

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