Do Meu Folhetim https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br Meias verdades sempre à meia luz Thu, 30 Sep 2021 12:29:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Obsessão pelo corpo delas https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/05/obsessao-pelo-corpo-delas/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/05/obsessao-pelo-corpo-delas/#respond Tue, 05 Jan 2021 10:00:51 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/corpofeminino-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=927 Um homem uma vez me confessou que tinha muita vontade de aprender mais sobre o feminismo, para conseguir se modificar de acordo com o que entendesse ser possível. Mas, dizia ele, mesmo com esse desejo, ainda era difícil encontrar quem tirasse suas dúvidas com calma, sem entender que indagações às vezes podem ser fruto do desconhecimento, e não da arrogância.

Sim, eu sei que nós mulheres não estamos bravas, estamos exaustas. E que isso transparece no reflexo que quase sempre temos diante de situações como estas, de questionamento sobre as demandas da luta feminista. Porém, ainda assim, gosto de manter em mente, em qualquer circunstância, essa conversa que tive no passado. Ela me serve como uma diretriz para atuar melhor.

E é ela quem me orienta aqui hoje, ao publicar este texto. É por ela que parto do pressuposto de que talvez seja importante explicar antes de discutir. Nos últimos dias, duas colunas também da Folha trataram, cada uma à sua maneira, do emprego do corpo feminino no mundo. Ambas foram assinadas por doutores em filosofia.

Na primeira, o assunto é aborto. A autora defende que há limites para a liberdade total da mulher decidir se quer dar continuidade a uma gravidez não planejada. Ao dizer que o feto é “a mais frágil, indefesa e inocente de todas as criaturas”, explica que não é apenas o corpo da mulher que estaria “em jogo” diante desta decisão.

Classifica como decadência moral a liberação do aborto, enquanto reconhece que estar grávida de uma criança que não se quer é uma “situação limite”. Ignora no texto questões sociais, de saúde pública e de educação. E desvia deliberadamente de explicar por que mulheres não podem decidir o que fazer com o próprio corpo, enquanto aos homens é assegurado o direito de decidir não só o que fazer consigo, mas também conosco.

Publicado algumas horas depois, o outro texto, escrito em primeira pessoa por um homem, mescla as expressões “sexo frágil”, “mulher raiz”, “lugar de fala” e “sabor de mulher” em uma narrativa que pode até dar sinais de que veio em missão de paz, e que qualquer aparente ofensa seria apenas um mal entendido de quem não compreende humor e artimanhas literárias.

Acontece que provocações neste campo do feminismo são cafonas e arriscadas demais, e, se falta compreensão de alguma natureza, ela certamente não vem da parte do leitor.

Pode parecer difícil entender essa fixação dos pensadores sobre o corpo feminino. Basta, no entanto, uma breve visita à literatura feminista para esclarecer essas origens. Naomi Wolf, por exemplo, explica com clareza em seu “O Mito da Beleza” a função que a criação de padrões estéticos universais tem no controle das mulheres pela sociedade.

E isso mesmo que –e especialmente que- se diga que um verdadeiro “apreciador tende a ter um gosto inclusivo”, sem restrições às imperfeições e diferenças. Nossa luta, mais do que nunca, não é para que sejamos apreciadas, não custa repetir.

Sendo assim, a tal da “abordagem filosófica da estética” não deveria suscitar brincadeiras, especialmente quando há não só milhares de maneiras de se louvar e respeitar uma mulher, mas, principalmente, quando há milhares de maneiras de se fazer boas crônicas a esse respeito.

Outra autora importante para assimilar a obsessão sobre o corpo feminino no mundo é Silvia Federici, muito bem citada pela colega Vera Iaconelli em coluna publicada nesta segunda-feira (4), para falar também de aborto, mas em termos absolutamente opostos – e extraordinários, diga-se – ao do primeiro texto postado no jornal com este tema, nesta semana.

Vera lembra que foi do Renascimento em diante que se intensificou o controle da sexualidade da mulher, e da gestação e seus desdobramentos. “Só à base de muita violência e séculos de doutrinação é que as mulheres passaram a se identificar com seu lugar” de submissão ao homem, escreve a colunista.

Mas, se já sabemos a origem do problema, por que optar por perpetuá-lo? Por que seguir alucinados na fiscalização do lugar da mulher no mundo, conferindo a ele peso, qualidade, valor?

É fundamental debater questões como o aborto, talvez alguém responda. Concordo, desde que se trate de fato de um debate, com um pensar crítico, e com a construção clara de uma premissa – ainda mais quando a discussão diz nascer do campo da filosofia. Para enumerar julgamentos, bons ou ruins, nunca foi preciso ter doutorado em nada.

Entendo que, como feminista, é meu dever manter a calma sempre que possível, para conseguir me engajar com profundidade na luta. Respirar e escrever, por exemplo, quando o desejo na verdade é de gritar. Foi isso que aquela conversa antiga me ensinou.

Isso, e a compreender que, às vezes, as opiniões podem sair brutas e egoístas não porque falte conhecimento ao emissor, mas porque arrogantemente lhe parece mais cômodo não ter de mostrar ao leitor de onde veio seu ponto de vista.

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Botox e o desserviço ao feminismo https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/17/botox-e-o-desservico-ao-feminismo/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/17/botox-e-o-desservico-ao-feminismo/#respond Thu, 17 Dec 2020 19:42:41 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/injeção-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=892 Quando engravidei do meu filho, além do volume na barriga, surgiu também uma pinta esquisita na minha testa. Como era vizinha a uma outra que minha mãe dizia que eu sempre tivera (e que misteriosamente sumiu na juventude), imaginei que pudesse ser uma reedição da pinta antiga, ou quem sabe até um desdobramento. Afinal, eu também me desdobrava ali, lentamente, em uma pessoa adicional.

A poesia barata não convenceu meu amigo médico. Numa visita prum café em casa, ele viu que a mancha marrom só crescia, talvez mais rápido até do que o próprio bebê, nascido já fazia mais de ano. Me deu bronca. E eu marquei minha primeira consulta em uma dermatologista.

O consultório da doutora Carmen parecia muito mais caro do que o meu convênio podia pagar. Casas com escadas curvas no meio da sala toda de mármore são sempre coisas impressionantes, e não à toa estavam em todos os núcleos ricos das novelas da Globo dos anos 1990. Subi à sala de exame me sentindo a Carolina Ferraz.

Ao fim da consulta, saí com a pinta, aparentemente benigna, e sem pagar um real.

Saí também com receitas para cremes manipulados, uma indicação de outros produtos que qualquer esquina vendia, e um pedido para colágeno em pó de uma farmácia chiquérrima, que fazia sachêzinhos efervescentes com gosto de refresco de limão ou laranja, pode escolher. Procedimentos, doutora? Para você, ainda não.

Tudo aconteceu há muitos anos. Quando eu ainda parecia distante dos temidos 40, aquele momento da vida em que os homens – aqueles de quem a gente infelizmente ainda gosta, e a quem infelizmente ainda são confiadas todas as decisões sobre o que tem valor ou não no mundo – passam a dizer que somos velhas. E a gente infelizmente passa a acreditar.

Saindo da escola do meu filho, depois de deixá-lo na aula, uma outra mãe (ou talvez ela fosse uma maluca nômade muito bem vestida) me abordou no portão. Achou um absurdo eu já ter um filho daquela idade. Disse isso rindo, pelo menos, senão certamente eu teria ficado com medo. Ou ofendida. Ou os dois.

Expliquei que só pareço jovem. Que na verdade sou uma senhora, que já não tenho valor sexual na sociedade, que olha aqui essa pelanquinha em cima do olho, esse bigode chinês, enfim. Fiz o papel que me é esperado como mulher, de me colocar para baixo sozinha, sem precisar que ninguém me ajude.

“Mas você faz umas coisinhas, né?”, perguntou, girando o dedo indicador em volta do próprio rosto. Olha, eu ainda não fazia coisinha nenhuma. Mas, naquele momento, achei que talvez fosse o sinal para começar a fazer.

Esperei até 2020, na pandemia, com todo mundo engordando, entristecendo, e envelhecendo 50 anos em cinco meses. Doutora Carmen se ligou que sua escada curva no casarão com sala toda de mármore era demais para mortais da Amil, e agora não fazia mais parte do meu plano. Procurei uma indicação mais perto de casa.

Como eu previa, já dava, sim, para começar a fazer coisas pela pele do meu rosto, especialmente preventivas. E, como eu não sou a Jennifer Lopez, não tenho problema nenhum em escrever sobre isso e dizer: fiz botox e preenchimento, não me arrependo de ter feito, e ainda estou juntando dinheiro para fazer de novo. E por que fiz? Porque achei que devia, e porque gostei do resultado.

A JLo pode até achar que a gente acredita na sua rotina da skincare exclusivamente à base de azeite de oliva por 51 anos. Mas o desserviço que uma mulher famosa, talentosa e ainda por cima bonita presta ao dizer um absurdo desses não cabe num livro, nem mesmo em uma biblioteca inteira feminista.

Ser uma pessoa pública e não querer divulgar voluntariamente uma informação estética é uma coisa – mas mentir sobre ela quando perguntada é algo muito diferente. E, graças à evolução do feminismo, estamos exaustas de ser feitas de otárias nesse aspecto.

Não à toa, passamos a idolatrar quem nos traz a verdade, mostrando que o normal é ser normal como a gente, com procedimentos, até, mas com celulite, sim, com estria, quilos onde não queria ter, nariz diferente do que sonhou.

Com 2,1 milhões de seguidores, a modelo e jornalista Danae Mercer, dos Emirados Árabes, se dedica a desconstruir a perfeição de fotos de celebridades nas redes.

Na Austrália, Celeste Barber satiriza para seus 7,5 milhões de seguidores as mulheres com formas insuperáveis que se dizem totalmente naturais, e que dominam aquilo de que o Instagram mais se alimenta: as aparências.

O ponto de ambas não é dizer que mulheres lindas são menores ou que merecem menos respeito, mas sim provar que, para exibir corpos e rostos perfeitos, quase sempre é preciso muito esforço, dedicação e, por que não?, às vezes até mesmo uma ou outra intervenção.

Aos 29 anos, a modelo Emily Ratajkowski, por exemplo, odeia o trabalho de Danae e de Celeste – a segunda é bloqueada em suas redes, e impedida de divulgar seu nome. Assim como Jennifer Lopez, Emily presta, com isso, um desserviço à evolução feminina.

Hoje é quinta, e o debate e esse textão aqui repercutem no grupo de WhatsApp das amigas antes que eu resolva publicá-lo. Alguém pergunta se pagar por procedimentos estéticos faz da gente menos feminista. Eu respondo que é justamente o contrário.

Que, sim, cada uma tem o direito de escolher divulgar só o que tiver vontade de sua vida pessoal, e que ninguém tem a obrigação de admitir absolutamente nada para ninguém. Mas que reivindicar uma sublimidade estética natural quando não foi assim que ela surgiu, isso, sim, é um golpe infame e imperdoável no feminismo.

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O corpo que habito https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/09/23/o-corpo-que-habito/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/09/23/o-corpo-que-habito/#respond Wed, 23 Sep 2020 19:53:28 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/líbero-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=822 A única vez que minha avó brigou comigo foi porque joguei um absorvente privada abaixo, daqueles grandes que a gente chama de modess. Enrolei bem bonitinho, ele fez ploft na água, e apertei a descarga assistindo seu caminho até o buraco do vaso. Quer dizer, a ideia era que ele entrasse no buraco, mas obviamente não entrou. Passou um pedacinho e ficou ali entalado, me olhando sem saber como sair.

Eu também fiquei sem ideia de como ia sair do banheiro e avisar minha avó que precisava de ajuda porque tinha entupido sem querer a privada. Não tinha a dimensão do erro, mas já me contorcia de humilhação e medo. Sabia que ia dar trabalho para a mulher que eu mais respeitava no mundo, e tudo pela minha menstruação.

Passei o fim da infância inteirinho desejando menstruar. Acordava e corria para ver se a calcinha estava suja. Fazia pequenas promessas silenciosas olhando entre as coxas, e ao santo que me ajudasse garantia devoção absoluta. Sentia como se meu corpo fosse controlado por alguém que não eu mesma. O divino. Talvez minha avó.

Li esses dias o romance do Itamar Vieira Júnior. Nem o acidente que decepou parte da sua identidade fez a protagonista de “Torto Arado” se sentir dona do próprio corpo. Escondida da avó, mas ainda temente a ela, a menina pega o facão guardado há décadas na mala debaixo da cama. Sangra. Quase morre. E seu corpo ainda não é seu.

Precisa viver muitos anos depois disso, enfrentar um marido agressivo, livrar-se dele, e só, então, tomar posse. Enfim dominar cada pedaço do chão que habita. Para sentir prazer em ganhar carinho, quando alguém vem trançar seu cabelo. Para sentir afeto pelos outros e também por ela.

Mulheres passam mesmo grandes pedaços da vida como inquilinas de si mesmas. Ao menos é assim que nos sentimos. Ocupando algo que não nos pertence, e que é da jurisdição de outro. Como acreditar que não é isso, se quem devia zelar pela integridade do nosso corpo escolhe mandar nele a todo custo? Alguém que se entende ministra de todas as mulheres?

É por isso que amo a literatura. Porque ela é tão aberta, mas ao mesmo tempo tão justa em sua beleza. Em páginas de livros não cabem Damares. Só cabem Belonísias e Bibianas, só cabe eu, só cabe você. Nelas a gente sangra com um propósito, e ele envolve sempre libertação, nunca clausura.

Passei o fim da infância inteirinho desejando menstruar. Três décadas depois, e a menstruação é o meu maior problema: queria poder sangrar todo mês, e não posso. Mas está tudo bem, também, porque já há um tempo que eu descobri quem manda em mim nessa história. Nunca foram os santos, tampouco a minha avó. Sempre fui eu, a grande protagonista.

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Tati Bernardi, meu Deus do céu! https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/09/16/tati-bernardi-meu-deus-do-ceu/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/09/16/tati-bernardi-meu-deus-do-ceu/#respond Wed, 16 Sep 2020 20:34:56 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/tati-bernardi_featured-620x435-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=808 A Tati Bernardi escreveu esses dias uma coluna inteirinha sobre o Caetano Veloso, e sobre como ela achava que devia ter agido diferente quando teve a oportunidade de conhecê-lo. Ela queria ter enfileirado bolinhas de guardanapo e dado vexame, mas só conseguiu fingir naturalidade. Já eu, quando conheci a Tati, lá em 2012, também queria ter me comportado diferente. Não me deixaram.

Assim como o Caetano pra ela, a Tati era pra mim uma referência. Quando comecei a trabalhar na revista, ela já escrevia pra lá fazia tempo, em uma coluna parecida com a que assina hoje em dia aqui na Folha. Por muitas vezes, me pediram pra fechar seus textos – o que, no jornalismo, significa revisar e jogar na página a produção de alguém.

Para entender o sentimento, é como se o galãzinho de “Malhação” fosse recrutado a bater texto com o Tony Ramos. Por mais que eu já tivesse mais de uma década de carreira, fazer aquilo que a Tati fazia era uma meta gigante para qualquer mulher que escreve. Assinar textos em revistas de circulação nacional. Ser lida, ser adorada.

Só que eu não podia adorar Tati Bernardi. Por mais que, como Caetano com ela, sua escrita em mim movimentasse coragens e forças, a Tati era uma mulher que me desprezava. Ela me achava um nada. Foi isso que me ensinaram no lugar onde a gente trabalhava.

E, a fim de me proteger da indiferença, eu decidi então que ia detestar Tati Bernardi com ainda mais dedicação do que diziam que ela me detestava. Viramos inimigas mútuas, sem que nunca tivéssemos nos visto pessoalmente. Sem que me fosse dada a oportunidade de enfileirar bolinhas de guardanapo ou de dar vexame.

Além de escolher por mim as minhas próprias amizades, e de retumbar na base diária a minha insignificância, aquele meu chefe também se preocupou em me colocar no meu lugarzinho submisso de mulher. Suas escolhas criminosas teriam, hoje em dia, consequências bem diferentes. Mas, naquela época, em 2012, quando eu quase conheci a Tati, não renderam nada pra ele além de uma leve dor de cabeça.

A Tati agora me achava uma vadia. Eu eu achava ela frígida. Foi o que disseram pra mim, foi o que disseram pra ela.

Passei oito anos detestando Tati Bernardi com toda a disciplina de que sou capaz quando abraço qualquer projeto. Nesse período, me recusei a ler seus livros, suas colunas, não ouvia seus podcasts.

Ficava irritada toda vez que algum amigo ou amiga recomendava coisas dela – e todo dia alguém me recomendava alguma coisa dela. Porque Tati Bernardi está em todos os lugares. Era como o galãzinho de “Malhação” tentar fugir por uma década da presença do onipresente Tony Ramos.

Um mês atrás entendi que era hora de parar de bobagem. Que tudo bem a Tati achar de mim o que ela quisesse, mas que era importante entrevistá-la sobre o lançamento do seu romance recente. Tomei coragem e fiz o convite.

Ouvi-la falar por uma hora me fez, de novo, como em 2012, desejar ardentemente ser sua amiga. Mostrar meu deslumbramento e pedir foto, Mas, como fez Tati com Caetano, eu só me sentei comportadinha e falei “é um belo livro”. Eu soube ali quem era a pessoa que eu havia me tornado.

Escrevo este texto no dia em que finalmente conheci Tati Bernardi. Ainda não nos encontramos pessoalmente, é quarentena no Brasil, mas, depois de tanto tempo, pudemos nos despir e falar abertamente sobre quem nós duas somos. E era claro que não podíamos estar mais distantes daquilo que, há oito anos, foi pintado de nós.

É curioso que todas as vezes em que ouço histórias de mulheres que se detestaram por anos há quase sempre o ego de um homem problemático envolvido na questão. Com a gente não foi diferente. Uma pena que tenham me roubado tanto, coisas, sentimentos, pessoas. Que eu tenha perdido oito anos não sendo amiga da Tati.

Mas a gente ainda vai viver muito, até ficar bem velhinha, e tirar esse atraso todo. Quem sabe a Tati ainda almoça comigo aqui em casa, depois a gente sai pra tomar um drinque de casalzinho, com sorte ela até me canta num episódio de podcast. Ainda vou ter a chance de ser muito caipira e muito idiota tremendo do seu lado, Tati. E te prometo que vamos juntas reencontrar Caetano.

 

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Este texto não vai falar dela https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/17/este-texto-nao-vai-falar-dela/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/17/este-texto-nao-vai-falar-dela/#respond Mon, 17 Aug 2020 17:01:20 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/aborto-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=768 Você sabe o assunto deste texto. Em momentos de indignação generalizada, de perplexidade com a humanidade, acontece mesmo de toda gente opinar. Só que hoje, neste espaço, por estes poucos minutos, o mundo vai ser um lugar normal e justo. De proteção e cuidado. E, por isso, este texto, que é sobre este assunto, vai falar dele sem falar.

Quando nascem, os lobos são cegos, surdos e dependentes. Mamam até a décima semana. A criação de uma ninhada é de responsabilidade não apenas da mãe, mas de toda a comunidade, que colabora, cada um à sua maneira, para a educação dos filhotes. Até os oito meses, eles são ensinados a caçar e a participar do mundo em segurança. Os mais novos nunca são deixados para trás. Um lobo vive em média dez anos.

A Igreja Católica teve um papel fundamental na história da humanidade. Na Idade Média, que durou quase mil anos, o acesso à sabedoria era restrito aos clérigos, porque todos os livros ficavam enclausurados em mosteiros, protegidos por monges copistas. Puderam, assim, os livros, ser preservados e sobreviver à passagem do tempo.

Com capacidade adaptativa impressionante, as pragas podem colonizar praticamente qualquer ambiente, e se reproduzir de maneira vertiginosa. Bibliotecas contemporâneas combatem traças com técnicas que envolvem privação de oxigênio, aplicação de nitrogênio e armadilhas adesivas. Monges, padres ou pastores são inúteis neste e em vários outros processos.

O papel fundamental da Igreja continua, assim, restrito àquele período específico.

O Carandiru foi um presídio na zona norte de São Paulo, inaugurado em 1920 e desativado em 2002. Chegou a abrigar mais de oito mil presos. Por dez anos, o médico Drauzio Varella realizou atendimentos nas dependências da cadeia.

Em seu site, Varella relata que acusados de crimes sexuais cumpriam pena isolados nas celas do último andar do Pavilhão Cinco. Só assim, para mantê-los vivos, explica o médico, a salvo da fúria assassina dos companheiros de cárcere.

As cadeias têm códigos próprios, internos e extraoficiais de conduta. Lá, um homem que violenta alguém nestes termos não merece perdão. A despeito de qualquer esforço da segurança interna, mais cedo ou mais tarde acabará massacrado e morto. Na ótica dos criminosos, cometeu o único delito absurdo, entre tantos que a raça humana é capaz de cometer.

Indivíduos que se desenvolveram em ambientes sem segurança e amor se tornam adultos medrosos. Recorrem frequentemente à imposição e à agressão verbal como defesa, a fim de proteger a imagem que criam de si mesmos, a de seres onipotentes. São, no entanto, incapazes de lutar verdadeiramente por qualquer ideal.

A psicanálise enquadra estas pessoas no espectro megalômano. Fascinadas pelo poder e por si mesmas, entendem que são adoradas como salvadores, líderes a ser seguidos, donas da palavra que vai incitar a todos.

Sarah Domville-Taylor nasceu em 1870, na Inglaterra. Casou-se com Robert Winter em 1890, e anexou ao seu o sobrenome do marido. Depois de ficar viúva, juntou-se à União Britânica Fascista. Ficou famosa por ostentar a bandeira nazista em suas casas. Foi acusada de espionagem, mas nunca sofreu consequências dada a sua proximidade com o rei George VI e Winston Churchill. Sarah Winter morreu em 1944.

Você sabe o assunto deste texto. Porém, não é expondo e opinando sobre a tragédia que tornaremos o mundo um lugar normal e justo. De proteção e cuidado. Por isso, este texto, que é sobre este assunto, fala dele sem falar. Precisamos aprender a nobreza, e praticá-la acima do ego. Não é nem nunca foi sobre nós. É sobre facilitar o anonimato a quem nunca deveria ter sido arracanda dele.

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Freud explica https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/07/09/freud-explica/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/07/09/freud-explica/#respond Thu, 09 Jul 2020 19:35:40 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/divã.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=737 Pergunto se seria o caso de falar de ressentimentos e de gente que não consegue desapegar do passado, e ele até considera um bom tema, até que eu explico que o gancho é a postagem da ex-mulher do meu pai no Instagram, dizendo que ele não sabe cuidar das plantas do sítio igual ela cuidava. Tem quatro anos que eles se separaram. Ideia ruim, decidimos.

E se eu surfasse na onda do Bolsonaro com Covid, sem Covid, tá fugindo, não tá fugindo, olha a cobra, é mentira, puxo festas juninas, isolamento social sem quentão, as manifestações culturais, está aí uma problemática, daí desenvolvo até fechar com uma piada sobre ainda estarmos de quarentena no Natal? Não? Ok, perdão.

Também dava para fazer um paralelo, ainda dentro do tópico Bolsonaro, veja se me acompanha, eu digo que faz bastante tempo que ele não aparece para ofender ninguém, que até tirou água potável dos índios, fez vídeo vendendo cloroquina, mas não foi a público para efetivamente esfaquear verbalmente ninguém, correto?

E é nessa hora que eu digo que a gente está com saudades, até, por mais difícil de admitir que isso seja, porque a gente se habituou à violência, porque até mesmo ao abuso o ser humano se acostuma. Posso falar de feminismo e relacionamento abusivo, nesse ponto, e mencionar aquela sua frase clássica, como é mesmo, aquela que diz que até a merda é quentinha.

Tudo bem, eu posso pensar em outra coisa.

Podia ser um texto em solidariedade aos colegas mal compreendidos recentemente, o que você acha? Teve aquele texto falando sobre desejar a morte dos outros, viu o problema que deu? E rolou ontem um negócio com o Adão, o cartunista, que desde os anos 1990 falava de libertação sexual feminina e agora ficam chamando o cara de machista por causa de uma tirinha da Aline.

Dava pra usar isso e dizer que falta interpretação de texto e contextualização pra muita gente. Que hoje em dia todo mundo lê tudo correndo, e, pior, lê tudo procurando nessa leitura uma sombra que lhe convenha, você deve ver isso muito aqui no seu trabalho, não vê?

Daí eu usava esse mote para mencionar um texto incrível que li na internet, duma moça feminista, não conhecia ainda, agora estou seguindo, e ela falava que não dá para pensar em relacionamento aberto enquanto os caras não sabem nem lidar com o trabalho doméstico direito.

E eu ia falar que gostei muito do que li, mas que, putz, talvez aquele fosse um viés excludente, porque os caras que lavam louça e as cuecas vão achar que o texto não é pra eles, sacou, não vão acusar o golpe, e a mensagem não vai ser passada concretamente. Né? Luiz?

Luiz, você travou, eu acho. Tá me ouvindo?

Você congelou. Já reparou que ninguém congela numa cara boa? Será que isso dava um bom texto? Eu sei. Tá foda. Só ideia ridícula. Meu namorado sugeriu que eu fizesse um texto sobre a ironia de uma jornalista que fala de criatividade nas redes sociais não saber sobre o que escrever no post da semana no jornal.

Mas não tem coisa mais manjada que escritor escrever sobre bloqueio de escrita. Tanta gente já fez isso? Hum. E se eu fizesse uma lista de autores que já escreveram sobre isso e botasse uns trechos? Ruim, né. Texto com lista não dá.

Já sei! E um texto em que eu descreva essa nossa conversa aqui, eu e meu analista, o povo adora essas intimidades, e eu contando que eu te contei que não estava conseguindo escolher um tema, e falando dos assuntos que pensei e te falei, mas que você achou todos péssimos e me mandou pensar melhor?

50 minutos, já? Não é possível. Sessão virtual não pode durar um pouco mais? Seu próximo cliente ainda nem chegou. Digo, não chamou aí no Zoom. Eu vou continuar bloqueada, Luiz, socorro. Faz alguma coisa. Você acha que o problema são meus pais? Tem a ver com a introjeção do superego? A falta do objeto ou o significante criaram uma simbiose latente?

Luiz? Luiz? Você sumiu de novo.

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Você não é obrigada a nada https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/10/18/voce-nao-e-obrigada-a-nada/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/10/18/voce-nao-e-obrigada-a-nada/#respond Fri, 18 Oct 2019 18:48:51 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/astronauta-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=537 Quando eu estava grávida, torcia pra que não fosse uma menina. Eu tinha medo de ter uma filha e ela crescer me detestando, de passarmos a vida inteira brigadas, de ela me achar ridícula e querer ir embora para longe. Eu torcia pra não ser uma menina porque não sabia lidar com menina nenhuma, nem mesmo a menina que eu era.

Tem mais de uma década que eu dei à luz um garoto, e fiquei desde então esperando a oportunidade para me redimir do medo cego. Porque, em dez anos de amadurecimento, aprendi sobre a força e a união femininas, e sobre como, curada das minhas feridas, eu teria muito a colaborar na criação de outra mulher.

É provável que esta menina nunca aconteça – já tenho 39 anos, um único ovário, e poucas vantagens diante daquilo que os médicos gostam de chamar de relógio biológico.

Mas esta menina dá seus jeitos, e ainda que não venha de mim, ela vem para mim o tempo todo: na forma de mulheres mais jovens que cruzam meu caminho, ela se manifesta secretamente, a mandar acenos de alma discretos. E, inserida nesses encontros, a minha menina me escuta atentamente desaguar conselhos importantes.

Eu venho repetindo para ela, ultimamente, uma das mensagens fundamentais da jornada de ser mulher. Você precisa saber que não é obrigada a nada na vida. A gente demora a aprender isso, e eu gosto de dar atalhos para as minhas meninas.

Há poucos dias, em uma tarde ensolarada de domingo, revi uma adolescente que, quando conheci, tinha o rosto lavado e fresco de quem acaba de se levantar da cama. Agora, ela usava bastante maquiagem, e batia uns longos cílios postiços por trás dos quais demorei a reconhecer os traços bonitos que havia visto uma única vez, naquele rápido encontro.

Dissemos “oi”. Ela fazia força para esconder um roxo no pescoço com o cabelo curto, e garanti que não funcionaria porque fora a segunda coisa que notei quando a vi de longe (a primeira, as pestanas).

Perguntei se tinha valido a pena ganhar aquele hematoma intenso. Garantiu que não. Contou que, em meio aos beijos que trocava na balada, o homem tombou seu pescoço para o lado e aplicou o golpe com a boca. Demorei para ver que não tinha que aceitar aquilo, explicou. Ela teve dúvidas se era obrigada a gostar.

Na construção da identidade de mulher que vem fazendo, ela cogitou que talvez fosse necessário dizer sim à violência travestida de amor e sexo que às vezes nos ofertam. E, pode ser que nem percebesse, também emulava o que considero um dos maiores símbolos atuais da opressão e da ditadura da beleza: uma maquiagem carregada e padronizada.

As redes sociais estão lotadas de vídeos de meninas jovens ensinando produções com muita base pesada, sombras, correções do que nunca esteve errado, e sempre, sem depender da ocasião, os pares de longos cílios postiços colados às pálpebras.

É assim que uma mulher deve sair de casa se quiser ser considerada bonita, parecem dizer. Se quiser se encaixar no padrão. Se quiser cumprir com aquilo que dela é esperado.

Nisso, aquelas que não sabem, não podem ou não conseguem cumprir com o ritual da base, sombra, correção, cílios, sofrem caladas por entender que, assim, estarão automaticamente excluídas do lugar que gostariam de ocupar.

E, vejam, ninguém está dizendo que não é certo usar a maquiagem de que se gosta. Que é errado botar postiços para ir à padaria logo cedo pra buscar pão. Estou só mesmo repetindo à minha menina que não é preciso. Que ela não é obrigada.

Sei que ela vai enfrentar essa dúvida ainda muitas vezes ao longo da vida. Mas eu gostaria muito que ela se lembrasse dessa nossa conversa, e soubesse que não, que nunca, que jamais será obrigada a permanecer com quem não quer, a aceitar o que lhe fere, a abaixar a cabeça para a insensatez, a se calar perante a opressão.

E, se um dia você titubeou e se esqueceu da sua liberdade, não tem problema. Sempre há tempo para fazer diferente. Porque o mundo dá voltas, menina.

Ele é lindo, e azul, e todo seu. Aliás, anunciaram hoje no jornal que duas astronautas fizeram a primeira caminhada espacial 100% feminina, filha, eu não sei se você viu. E eu aproveitei esse dia importante para vir aqui te contar de novo que você não é obrigada a nada, menina, mas você pode absolutamente tudo.

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O mito do dedo podre https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/09/02/o-mito-do-dedo-podre/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/09/02/o-mito-do-dedo-podre/#respond Mon, 02 Sep 2019 20:23:15 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/morango-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=482 Eu tenho uma amiga, que tem uma cunhada, cuja vizinha era prima de uma conhecida de uma moça que, nossa senhora, só se relacionava com homem merda. Essa mulher, coitada, entrava e saía de namoros que, por mais que parecessem bonitinhos no começo, acabavam com ela arrasada na cama, chorando a decepção e a rejeição do amor errado. E sabe o que essa moça conhecida da prima da vizinha sempre ouvia dos amigos? Ela ouvia que tinha o dedo podre.

Pode até parecer que eu estou falando de mim mesma. E estou, realmente. Afinal, de que serve um espaço público em um jornal de circulação nacional se não for para passar vergonha perante a sociedade?

Gastei a vida inteira escutando essa expressão da boca de mãe, de pai, de amigos, de colegas de trabalho. Como uma jardineira que só cultiva adubo, era incriminada pelos fracassos contínuos na minha vida amorosa. Dedo podre.

Se você digitar essa expressão no Google, aliás, vai se deparar com matérias em sites diversos que responsabilizam única e exclusivamente as mulheres pelas escolhas erradas, e pelos relacionamentos malsucedidos.

Dizem os psicólogos entrevistados nas tais reportagens que, ao escolher um homem estragado como companheiro, nós, mulheres, estamos das duas, uma: ou ansiosas para ter alguém a qualquer custo e evitar ficar sozinhas, ou presas à fantasia de que somos capazes de salvar um cara problemático.

Nenhum desses profissionais leva em consideração, no entanto, o fato de que, muitas vezes, aquele morangão bonito exposto na gôndola do supermercado demora um tempo até mostrar seu lado cheio de mofo. Em outras palavras, sem metáforas cafonas de hortifruti, seria bacana que essas pessoas ouvidas nas matérias se lembrassem de que não é sempre que as pessoas se apresentam do jeito que elas realmente são.

Se um homem usa uma máscara poderosa nos primeiros meses de relacionamento, para só depois – e bem aos poucos – revelar sua verdadeira personalidade, será que a culpa continua sendo da mulher que se apaixonou por ele? Será que ela sofre mesmo da maldição do dedo podre?

Óbvio que há os motivos inconscientes que nos direcionam e conseguem, inclusive, antever as tragédias, convidando a conectar nossos buracos emocionais com os buracos emocionais do outro. Longe de mim desmentir analista, até porque sem o meu eu não sobrevivo. Mas a impressão que fica é a de que parece muito mais fácil culpabilizar a mulher do que avaliar o quadro como um todo.

Nesse panorama geral, há fatores como, por exemplo, a raridade que é encontrar um sujeito 100% afinado com o mundo de hoje, e aberto para as mudanças fruto das conquistas do feminismo, por exemplo. Ou esses psicólogos que dão entrevista nunca ouviram falar em esquerdomacho, o tipo que parece fofo no começo, mas que, com o tempo, revela ser uma grande cilada, Bino?

O fato é que nós mulheres estamos sempre nessa posição passiva. Se “conseguimos” conquistar um homem – e eu colocaria aspas triplas aqui se a revisora não fosse me dar um pito -, ele está sendo generoso em nos aceitar como somos. Se ele vai embora, fizemos algo de errado. E, se ele acaba se mostrando um mau partido, o crime é termos o dedo podre, e não ver o problema com antecedência.

Oras, nos poupem. De nada adianta a gente ler, estudar, se informar, se analisar, fazer yoga, assistir todas as temporadas de “O Conto da Aia”, se não se encerrar o padrão em que toda mulher é invariavelmente culpada por tudo que lhe acontece. Quero, sim, toda a responsabilidade que vem com a evolução e o chamado “empoderamento”, mas também seria genial se, ao mesmo tempo, a gente finalmente jogasse luz sobre o que não é despesa nossa nessa conta.

Até porque, se um dedo é mesmo podre, a última coisa que ele sabe ou deve fazer é passar pano.

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Tem sempre um homem me explicando https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/06/19/tem-sempre-um-homem-me-explicando/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/06/19/tem-sempre-um-homem-me-explicando/#respond Wed, 19 Jun 2019 10:22:58 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/06/mansplaning-320x213.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=419 Você já conhece a mecânica: eu escrevo no computador, publico aqui neste espaço, quem fica curioso lê, muitos gostam, outros detestam, e na semana seguinte tudo se repete. É assim já há alguns anos, sejamos nós quem formos e de onde quer que venhamos. Acontece que excepcionalmente hoje vou sugerir que, caso você, leitor, seja uma mulher, peça a ajuda de um homem para entender o que se segue.

Não que eu nos considere incapazes, longe de mim, fazemos parte do mesmo time. Sempre confiei cegamente em nosso potencial. Mas é que, de uns tempos para cá, os homens passaram a me explicar coisas com tão mais frequência do que já o faziam, que ando pensando se nascemos realmente habilitadas a assimilar alguma coisa.

O rapaz que meteu a mão na minha coxa essa semana, por exemplo. Parece haver a possibilidade de eu não ter compreendido corretamente a natureza do gesto deslavado, segundo me explicou um amigo. Ainda que se tratasse de um instrutor e o ambiente fosse o da academia, existe a chance de que o que eu supus se tratar de assédio tenha sido apenas um toque de adestramento.

Pareceu um apertão gratuito na minha perna, mas foi uma cortesia. Viu só? Se ninguém me explicasse, eu nunca saberia.

Depois de uma série de visitas de inspeção, hoje começam as obras no banheiro de serviço lá de casa, e o zelador, de quem já carinhosamente já tratei aqui nesta coluna, passou dois dias fazendo questão de explicar minhas obrigações como inquilina, inclusive aquelas que nem constam do contrato de locação ou do regulamento do prédio.

Vai ver ele gentilmente se dispôs a me adiantar com exclusividade regras ainda inéditas, mas que estarão presentes na nova versão revista e ampliada destes estatutos, a ser lançada em data a definir. E eu, esta ingrata, tendo a coragem de achar ruim.

Tanto ele quanto o porteiro e o encanador só querem meu bem quando me explicam que é preciso quebrar paredes para acessar tubulações. Eu tinha mais era que agradecer.

O médico que entrevistei pra matéria, também, foi outro cara todo cheio de boa vontade. E eu, que bruxa, aborrecida à toa. Torcendo o nariz para um ato generoso de um profissional da saúde que dedicou seu tempo a explicar para mim o que uma mulher sente durante o orgasmo e nas cólicas menstruais. Olha que, agora, acho que finalmente eu entendi. Tomara.

Já o médico que não entrevistei pra matéria era de um altruísmo sem fim – depois de aceitar responder às minhas perguntas, voltou atrás no meio da conversa, dizendo que minha pauta não era tão boa quanto aquela outra que ele, urologista, imaginou para o jornal, e que só continuaria respondendo se seguíssemos pela ideia dele. Eu quis chorar e senti raiva, mas apenas porque ainda sou uma pessoa pequena no caminho espiritual da iluminação. Eu tinha mais era que ter lhe dado um forte abraço.

Tem gente que se lembra ainda da boa sorte que tive recentemente, ao ganhar uma explicação em rede nacional a respeito de gêneros literários, bem como sobre minhas reais intenções ao escolher um deles na hora de planejar um livro. Sou uma autora infantilóide que não manja nada de biografias. Já pensou se ninguém me explica e eu esqueço meu lugarzinho no mercado editorial? Ufa, que essa foi por pouco.

Daí que, em meio a esse mar de generosidade, já tem um mês que venho sentindo um chamado. Nada a ver com o descarrego na roda de umbanda que frequento, mas com a escola de kung fu que abriu na rua de baixo. Espio as aulas dia sim, dia não, e, além de pirar na luta quase dança, ainda acho fabuloso o fato de haver mulheres em todos os grupos, e de um dos mestres se chamar Manuela e portar uma faixa preta nos quadris.

Em outras épocas eu interpretaria meu fascínio como um sinal de que é hora de fazer a matrícula, mas, como ando assim, digamos, muito mulher para compreender as coisas sozinha, achei por bem me abrir com um dos alunos: meu filho, dez anos, homem, turma infantil das 19h.

Se ele achava que eu tinha capacidade para aprender os exercícios, se na opinião dele eu ia conseguir chutar bem, se ele vê alguma possibilidade de as pessoas rirem de mim enquanto erro tudo na frente do espelho – não deixei de fazer nenhuma pergunta.

Guardei para o final aquela que considerei a mais difícil de responder (mesmo quando se é um homem parece que vez ou outra rola uma incerteza, me explicou um psicólogo certa feita, para uma reportagem). “E se eu não nasci para lutar porque não sei como se bate de verdade em alguém?”, indaguei.

E ele, muito masculino, devolveu: “Daí é só buscar dentro de você toda a irritação com o que não pode mudar na vida, e descontar a frustração no tatame. É muito simples, mãe, só não vê quem não tá a fim”.

Finalmente uma explicação decente. O mundo talvez ainda tenha salvação.

 

 

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Haja ioga https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/02/05/haja-ioga/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/02/05/haja-ioga/#respond Tue, 05 Feb 2019 21:41:59 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/yoga-320x213.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=337 Chico Buarque é deus, mas os tempos andam tão sombrios que é preciso discordar dele vez ou outra. Quando ele diz, por exemplo, que a bailarina não tem pereba, febre amarela, calcinha velha ou qualquer problema que seja, porque eu acho muito que nem ela escapa do climão de caos que toma conta de tudo.

Uma amiga manda mensagem para contar que encomendou no site gringo um livro fantástico, fecha aspas. Ou que tem tudo para assim ser. “Como se Relacionar com Homens Quando Você Odeia Homens”, obviamente em inglês (língua em que tudo parece menos sincero) e, embora a sinopse garanta que se trata de uma obra humorística, suspeito que seja um texto de suspense e terror.

É que, ao contrário da bailarina, as minhas cascas de ferida são muitas, e venho supondo já há algum tempo que não há como manter o equilíbrio mental sendo heterossexual nessa vida. Também não dá para parar de fumar, eu acho, porque ando tentando largar o cigarro, mas só faço acender um atrás do outro a cada toco que tomo de homem.

Talvez nem seja culpa deles, talvez seja só cansaço mesmo, consequência da jornada dupla, disseram, parece que embaralha os pensamentos. Ou pode ser a falta de grana, que me obrigada à tal jornada dupla, e às vezes até à jornada quádrupla quando vejo que já deu três da manhã e me levantei para lavar a louça ou preparar a lancheira do menino para amanhã.

Mas seja qual for o motivo do meu mau humor e da minha má vontade, e do mau humor e da má vontade do meu círculo de amigos quase inteiro, e da rabugice e da falta de saco do pessoal do trabalho, no metrô e na fila do supermercado, acho que há um movimento global de bateção de cabeça, um transtorno generalizado em que ninguém entende ninguém e onde haja ioga e abraço na árvore pra que a gente apreenda alguma coisa.

Queremos mudança, mas seguimos escolhendo velhos formatos. Sonhamos com uma faxina geral e de novo espalhamos os bibelôs mais ultrapassados pelas esferas da vida. Esperamos que os filhos cresçam educados e diferentes, mas largamos o trabalho todo na mão dos celulares e televisões e babás em casa. Pretendemos ser feministas, mas não temos paciência para incluir os homens no processo de transformação da sociedade.

A culpa é das redes sociais, grita em caps lock minha tia no grupo da família, apoiada pela minha mãe que garante que chegou o apocalipse, pra depois apitar mensagem do meu primo dizendo que só quem pode explicar a Babel moderna é o Olavo de Carvalho, clica aqui neste link para ouvir a entrevista que ele deu para este site que dá até medo de entrar e pegar vírus.

Penso, no final das contas, que o mal-estar coletivo possa vir do fato de estarmos todos aprendendo enquanto fazemos. E ser pioneiro no que for dá trabalho e demanda sacrifícios – o primeiro montanhista a desbravar o Everest parece que desceu de lá sem a ponta do nariz, congelada e quebrada na nevasca extrema, jura de novo meu primo de novo no WhatsApp.

Em meio a tantas opiniões, quem melhor definiu o rolê recentemente foi meu filho. Na saída do cinema, depois da aventura que conta a história de dois amigos personagens de fliperama, tagarelamos sobre as piadas, os efeitos, o sabor da pipoca e meu breve e quase discreto cochilo, e comento que só não gostei do vilão, que achei exagerado e meio inverossímil.

Ele, então, explica que se não gostei foi porque não entendi. Que o monstrão só é daquele tamanho porque às vezes os sentimentos também tomam proporções colossais, e a gente pensa que não vai dar conta de lidar com eles. “Como quando a gente briga com o namorado, sente raiva de alguém, quando fica possessivo com as coisas na escola, ou tem medo do que vai acontecer no futuro”, enumera. Ele tem só dez anos, e já manja bem mais das coisas do que eu, a bailarina sortuda e todo mundo junto. Segura essa, Chico Buarque.

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