Do Meu Folhetim https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br Meias verdades sempre à meia luz Thu, 30 Sep 2021 12:29:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A melhor estratégia https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/01/27/a-melhor-estrategia/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/01/27/a-melhor-estrategia/#respond Mon, 27 Jan 2020 19:59:41 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/damares-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=613 Quando adiantou detalhes da política de educação sexual para adolescentes, pregando sua abstinência, o Ministério dos Direitos Humanos tinha ciência do vespeiro em que enfiava a língua. Ao lado de dezenas de colegas jornalistas, fiz parte do pelotão que fuzilou com argumentos, piadas e dados científicos a estratégia destinada ao fracasso. E quem sabe fosse justamente isso que Damares Alves queria, seguindo a máxima do falem mal, mas falem de mim.

Se estava realmente só de olho na fuzarca, excelente, temos enfim um ministério eficaz no governo. Mas, se a ideia era, a sério, provocar e convencer jovens a não transar até ter idade para a carteira de motorista, aí não havia plano mais furado – nenhuma careta de ministra jamais deu e jamais dará conta de acabar com a libido de meninas e meninos de 16 anos.

Agora, se o governo desejasse realmente investir na educação sexual dos adolescentes, haveria, além das conversas francas com professores e dos livros, uma alternativa eficaz e relativamente barata: jogar na cara a mais dura realidade que possa haver. O que, no caso de proteger de uma gravidez indesejada, significa expor a vida de uma mãe solo às meninas.

O feminismo evoluiu, verdade, e vimos lentamente abrindo os olhos para conceitos ancestrais que não nos são de mais qualquer serventia, mas a maternidade, infelizmente, ainda é um tópico dos mais romantizados, seja na adolescência ou na vida adulta das mulheres.

Paira muitas vezes, no fundo da mente de algumas de nós, a ideia de que ser mãe é algo mágico, e que, como repetem as tias e avós, uma criança é sempre uma bênção. Mentira.

Se, mesmo quando planejado, um filho pode bagunçar os planos de vida, o que dizer de uma gestação-surpresa, especialmente na juventude? E, pior, como fica se essa gestação acontece na juventude de uma garota que não vai receber qualquer apoio do companheiro que – é sempre bom lembrar – é tão responsável pela criança quanto ela?

O Ministério deveria nos levar, nós, as mães solo, às escolas de todo o país, e nos presentear com uma hora de palestra diante de salas de aula lotadas com garotas que ainda podem fazer boas escolhas. Nos sentaríamos de costas para a lousa, e provaríamos, por A mais B, que ficar sem sexo na juventude é realmente uma ideia ridícula, mas que sexo responsável é o que de mais acertado elas podem fazer na vida.

Falaríamos, claro, sobre a perda da liberdade e do sono intrínsecas à maternidade em qualquer idade, mas focaríamos principalmente na parte da batalha em que a vida de uma mãe solo pode se transformar para conseguir participação ativa, afetiva e financeira do pai da criança. Afinal, se marmanjos de 30 anos praticam o aborto masculino diariamente, por que meninos de 15 não o fariam?

Daríamos às alunas nossos próprios exemplos. Falaríamos de negligência, abandono, duelos jurídicos, desrespeito. E sobre como a justiça – aquela que muitos apreciam alardear ser sempre partidária da mulher – muito pouco nos protege ou auxilia, nos transformando em grandes guerreiras exaustas, quando tudo que a gente queria era dedicar nosso peito e energia ao amor pelos filhos e sua criação.

Com exemplos concretos, ministra, nós mudaríamos o futuro. Porque as meninas não têm que parar de ir para a cama – elas têm é que ser ensinadas a fazer isso direito.

 

 

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A sociedade dos meninos https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/06/07/a-sociedade-dos-meninos/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/06/07/a-sociedade-dos-meninos/#respond Fri, 07 Jun 2019 15:10:22 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/06/neymar-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=412 Viagem internacional juntos, anel de compromisso, almoço de domingo com os sogros, primeiro Natal em família, sexo anal, ménage, suruba, bondage, pedido de casamento em Paris: nas duas décadas em que venho praticando o amor, nunca houve entre estes tantos assuntos um tabu, fosse para mim ou para o parceiro. Mas experimenta abrir a boca sobre gravidez para ver o que te acontece.

Óbvio que na adolescência um papo sobre filhos faz qualquer um tremer na base, já que trocar estudos por fraldas sujas quebra os planos de homens e mulheres igualmente, mas qual é a do arrepio masculino adulto quando a gente decide jogar conversa fora imaginando nomes para uma criança hipotética, ou mesmo debatendo a sério os desejos a respeito de com que idade se sonha procriar?

Hoje, primeira sexta-feira do mês de junho de 2019, tenho um filho, um ovário, e uma dúvida: se encaro ou não o desafio de engravidar novamente. Depois de um tumor, oito cirurgias e 39 anos, meu corpo se modificou ao ponto de que fazer uma criança sem ajuda médica pode ser algo um tanto complicado. Por isso tudo, pensamos, nada mais natural do que conversar abertamente sobre isso com os pais em potencial deste filho que eu gostaria de ter.

Só que a realidade é bem menos fofa e com cheirinho de talco. Vivemos em uma sociedade que abriga os homens em um status confortável, no qual considerar a existência de seres mais imaturos e sob sua responsabilidade é não exatamente assustador, mas surreal e impensável. Afinal, se eles ainda são – e ainda o serão até os 40 – os eternos meninos, não haveria como transferir o título a um possível herdeiro.

Sujeitos de 27 anos são chamados de meninos ainda que tenham um filho de sete. Delegam a conta bancária e a defesa de sua honra ao pai e à mãe, se abrigam debaixo da imagem de moleques ainda sem condições psicológicas de assumir uma conduta ajuizada porque se encontram em desenvolvimento. Culpam o córtex frontal em formação pelos tropeços de adulto vacilão que cometem. E todo mundo aplaude, e todo mundo acata, e o menino errado continua como herói.

Das mulheres é cobrado o comprometimento total e irrestrito à maternidade depois que nasce o primeiro filho. Que se abra mão de tudo, do trabalho à diversão, se for para focar na criação da sua criança. Depois que engravidamos, não somos nunca mais chamadas de meninas – viramos todas “guerreiras”, “leoas”, potências. Viramos mulheres.

E acho possível dizer que, na maioria das vezes, ainda que depois de uma gravidez inesperada, acabamos abraçando este papel com gosto – e, se não com prazer, com pelo menos um senso de responsabilidade imenso, com a consciência de que chegou de vez a hora de crescer.

Mesmo quando a maternidade não representa um sonho, nem assim se vê uma mulher correr em pânico do debate. É especialmente ali que ela estará ainda mais comprometida com a defesa de seus ideais e preferências.

Eu queria muito poder conversar sobre as possibilidades que tenho para uma segunda gestação, ou sobre os caminhos que me levassem a mais um filho, mesmo depois dos 40 anos. Queria encontrar espaço para, à mesa do jantar, despretensiosa e confortável, debater meu corpo, meu coração e meu futuro. Mas este é um assunto proibido, aprendi. Eu que sonhe discretamente.

Enquanto permitirmos que meninos tenham meninos e nem assim cresçam, ou que suem de nervoso diante de uma conversa sobre reprodução, seremos obrigados a lidar não apenas com sua omissão, mas também com a espetacularização de seus pecados privados. Homens se acertam na justiça, meninos se resolvem nas redes sociais.

A discussão, neste momento atual, tinha que ser muito mais do que nomear crimes e eleger culpados – era hora de a gente entender que, na geração do culto à imaturidade, as vítimas são ninguém menos do que nós mesmos.

 

 

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Mães: onde vivem, quem são, de que se alimentam? https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/05/10/maes-onde-vivem-quem-sao-de-que-se-alimentam/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/05/10/maes-onde-vivem-quem-sao-de-que-se-alimentam/#respond Fri, 10 May 2019 16:30:30 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/05/plantas-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=398 O mercado publicitário compreendeu já há algum tempo que, para se comunicar com – e vender para – as mães, era necessário mudar a forma com que olhava para elas. Deixar de enxergar seres que vivem para servir à família e que, por isso, amam ganhar panelas, para vê-las como mulheres que, além de criar filhos, também têm profissão e ocupam outros papéis na sociedade. Assim, dá-lhe ofertas de bolsas, maquiagem, eletrônicos e tudo mais de que uma mãe trabalhadora precise para ser feliz.

Acontece que, mesmo com o ajuste no foco da propaganda, as marcas ainda seguem ignorantes. Acham que diversificar seu público-alvo basta para mostrar que sabem o que ser mãe significa. Mas, uma fabricante de calçados, por exemplo, que às vésperas do Dia das Mães apresenta, em sua campanha especial, uma “mãe de planta”, afirma sua incalculável ignorância acerca do tema, e prova que estamos ainda a anos-luz da correta visibilidade.

Com o argumento de reconhecer que não é preciso parir para maternar alguém – e, com isso, abarcar acertada e respeitosamente as mães adotivas, e as madrastas e enteados – a empresa sugere que cada um pode ser mãe de quem e do quê bem lhe convier. É linda, sim, a dedicação de mulheres aos seus pets, e agora também aos seus lírios-da-paz, mas equipará-la à vida de alguém que é responsável por outro ser humano só atrasa as conquistas femininas no mundo.

Não se trata de competição nem de possessividade sobre um título, mas, sim, de reconhecer que, depois de ter, adotar ou agregar um filho, a rotina de uma mulher nunca mais será a mesma. Encontrar (e manter) um emprego, pagar as contas em dia, sair com os amigos, arrumar um namorado, zelar pela saúde, educação e, sobretudo, pela sobrevivência daquele outro ser viram prioridades cujo preço às vezes é altíssimo.

Uma samambaia morre se não recebe água por uma semana. E uma criança, o que acontece com ela quando, por um único dia, não ganha cuidados mínimos? Sendo o pai quem falta com a rega, a consequência obviamente não é maior do que um pequeno aborrecimento, mas quando é a mãe quem não agua o rebento, o resultado é muito pior do que folhas murchas e terra seca.

O levante na internet direcionado à marca autora do post equivocado de Dia das Mães não é em nada surpreendente, assim como também não espantam ninguém as queixas indignadas de clientes que se viram representadas na propaganda, por não captarem o centro de toda a questão. De todo modo, certamente a empresa já se deu conta de que, além das desculpas já pedidas, será necessária uma boa administração de crise – afinal, quem precisa de sapatos de alguém que atira no próprio pé?

A campanha desajeitada serve, no entanto, para abrir um importante debate: se a sociedade não entendeu até hoje quem são as mulheres, tentando cercear sua jurisprudência para dá-la nas mãos de quem quer que seja, como é que podemos esperar, então, que o mundo compreenda quem é esse subgrupo tão complexo de mulheres que cedem sua vida pela vida de outra pessoa? E, se o mundo não faz ideia da identidade materna, por que o fariam os diretores de criação das agências?

Em um mercado concorrido e selvagem, ganhará o produto que se der conta de que nós, mães, somos mulheres que, por dentro, à parte o coração completa e irreversivelmente ocupado, ainda carregamos nossos sonhos de criança, nossos romances adolescentes, as frustrações e desejos da juventude. Mulheres que, não fossem as marcas no corpo e as certidões assinadas, a conta bancária devastada e uma permanente sensação de estar fazendo menos que o ideal, passariam despercebidas em meio a uma legião feminina de matizes infinitas.

Não somos “guerreiras”, senhores publicitários. Tirando as fantasias da infância, quando brincávamos assumindo papéis bélicos, temos pouquíssimo interesse na batalha, e, sim, na paz branda da normalidade. Tampouco queremos ser tratadas por “divinas”, deixando, por favor, o manto sagrado e as asas de anjo para quem pela pureza tenha apreço. É que nós, mães, pasmem, não só transamos, como também gozamos quando bem tratadas.

Não temos uma aparência específica, o que não nos permite ser identificadas de cara no comercial de TV ou em um post do Instagram – abandonar as tentativas de nos rotular e conferir um semblante comum seria de bom tom. Não somos “todo mundo”, mas também não somos “aquelas lá”.

Estão nos acompanhando? Somos, se isso bastar, simplesmente mães, aqueles indivíduos para quem a vida das pessoas a quem escolhemos amar desde o primeiro dia juntos virá sempre em primeiro lugar. Temos como objetivo único e universal garantir que nossos filhos vivam até os 200 anos de idade, com poucas quedas e cortes pelo caminho. E se, de quebra, ainda der para eles serem extremamente felizes no trajeto, para nós tanto melhor.

 

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Chega de levar o aborto para o lado pessoal https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2018/08/06/chega-de-levar-o-aborto-para-o-lado-pessoal/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2018/08/06/chega-de-levar-o-aborto-para-o-lado-pessoal/#respond Mon, 06 Aug 2018 18:10:41 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2018/08/15106089345a0a1026db35a_1510608934_3x2_md-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=248 Tenho uma relação de intimidade com o aborto. Em mais de vinte anos de vida sexual ativa, engravidei duas vezes, tive um filho e perdi outro de maneira espontânea – não, nunca interrompi gravidez nenhuma. Nunca “tirei” um filho. E isso apenas porque não aconteceu de eu precisar, porque, fosse o caso, sendo a favor da legalização como sou, não teria qualquer constrangimento em recorrer à alternativa.

O aborto e eu somos vizinhos a partir do ponto em que eu escapei de um. Não sou mãe de aborto, sou filha. Inconveniente, porque comecei a me formar justamente quando se desfazia um casamento, mas também teimosa, porque me mantive firme e focada em encontrar um jeito de nascer. E, ainda que ninguém tenha tentado na prática me arrancar à força de dentro do útero, a polêmica ideia foi debatida entre as equipes rivais – agora, sabemos qual time venceu.

Questões como essa costumam render aos sobreviventes horas reclinados em divãs. Neles, fala-se sobre rejeição, baixa autoestima, medo da morte. Mas, sejamos adultos, sinceros e fortes: fala-se, também, sobre o quanto o fato de um casal (ou de apenas uma parte deles, como no meu caso) cogitar abortar um bebê não significa efetivamente uma negação àquele sujeito específico.

Quem considerou, um dia, pelo tempo que tenha sido, que eu não nascer seria a opção ideal, não desprezou a mim, e sim a uma situação que, ali, não lhe parecia ideal. E não é isso que fazemos todos os dias, ao longo de todas as nossas vidas? Tomar decisões com base em uma avaliação do cenário completo? Escolhas? Envolvendo outras pessoas, sentimentos, preferindo uns, prejudicando outros.

Houve, na minha vida, múltiplos momentos em que decidi que, fosse positivo o resultado do teste, eu interromperia aquela (ainda imaginária) gravidez. E, na grande maioria das vezes, excetuando, talvez, aquelas em que eu ainda era uma adolescente, a razão primeira de tal escolha seria o contexto. Eu sabia que não queria ter um filho de um parceiro drogado, ou quando estivesse desempregada, ou se desconhecesse o pai da criança – tantas variáveis, um único decreto.

Sendo eu uma mulher branca, instruída, de classe média, muito provavelmente sobreviveria ao procedimento ilegal, já que, de minha posição socialmente privilegiada, seria possível buscar ajuda com segurança. Meus pais, tivessem chegado a um consenso diferente do que permitiu meu nascimento, possivelmente também teriam saído vivos e livres, ambos, de dentro de um consultório furtivo no centro de São Paulo.

Ainda assim, eu luto pelo direito à escolha. Sou a favor, repito, da legalização do aborto, e pela garantia de que todas as mulheres, com ou sem a anuência dos parceiros, famílias, párocos do bairro, possam ser as únicas responsáveis por definir o que será de seu futuro.

Quero ter a opção que meus pais não tiveram, ainda que não fossem recorrer a ela. Quero a concessão que, até hoje, em agosto de 2018, ainda não me é concedida, ainda que dela eu não precise. E quero, sobretudo, que minhas descendentes saibam que são elas as únicas soberanas sobre seus corpos – e que todas nós que viemos antes fazemos parte desta conquista.

 

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Precisamos falar sobre a endometriose https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2017/09/25/precisamos-falar-sobre-a-endometriose/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2017/09/25/precisamos-falar-sobre-a-endometriose/#respond Mon, 25 Sep 2017 14:26:36 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2017/09/IMG_20170925_094059_208-vale2-180x120.jpg http://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=52 Um analgésico, um anti-inflamatório, um anticoncepcional, um antigases, um antiespasmódico. A rotina de cinco comprimidos anti alguma coisa se repete quatro vezes no meu dia, já há alguns meses. A luta contra minha doença começou em janeiro passado, mas, a convivência com ela, sem que eu soubesse de que se tratava, data de quase 20 anos. Vinte. Anos. Duas décadas se passaram até que eu recebesse o diagnóstico, e até que todas as dores, problemas e riscos que meu corpo correu ao longo deste tempo ganhassem uma cara e um nome: endometriose.

Parece terrível esperar tanto tempo assim para saber o que exatamente está comendo seu corpo por dentro e se infiltrando em órgãos diversos, mas, por incrível que pareça, no universo desta doença que afeta 10 milhões de brasileiras, e, em média, 176 milhões de mulheres no mundo, sou até que uma pessoa de sorte. Há pacientes que passam a vida toda sem conseguir uma resposta nem o tratamento adequado, batendo de porta em porta em consultórios, e encontrando apenas mais dúvidas e indicações duvidosas.

Isso porque ainda são poucos os ginecologistas especializados em endometriose no Brasil – e, os poucos que estão disponíveis são acessíveis a um grupo restrito, já que, em sua grande maioria, não atendem consultas vindas de convênios médicos. Restam, assim, as vias particulares, ou os ambulatórios públicos, que penam com a falta de recursos, limitando e retardando o atendimento de mulheres que, muitas vezes, simplesmente não podem esperar.

No meu caso, por exemplo, esperar realmente foi um luxo ao qual eu nunca pude me dar. A relação entre mim e a endometriose sempre foi intensa e urgente, desde quando, por se manifestar em uma de suas formas mais agressivas, ela decidiu invadir meu aparelho urinário, ameaçando o funcionamento do rim direito, bem como atacar os nervos da minha coluna, e também levar embora, em algumas cirurgias, um de meus ovários e uma trompa.

Sim, a fúria da endometriose não costuma ter limites. Por mais que não seja uma doença maligna, como o câncer, ela se comporta de maneira parecida, com células se espalhando para fora de seu lugar habitual, o endométrio. A doença, aliás, é ainda uma ilustre desconhecida de boa parte da população, que ignora inclusive sua definição.

Endometriose é, basicamente, o crescimento anormal do endométrio, tecido que reveste a camada interna do útero. Em termos práticos, funciona assim: todos os meses, em seu período fértil, o corpo da mulher se prepara para abrigar uma nova vida. Neste processo, os hormônios fazem com que o endométrio fique mais grosso, à espera da fecundação. Quando ela não acontece, ele se descama e sangra – diga “oi” para a menstruação.

No caso de quem tem endometriose, esta camada recobre, também, partes externas do útero, no geral porque o fluxo menstrual não é completamente eliminado, voltando pelas trompas e migrando para lugares indevidos. Os focos – que em sua maioria se encontram nos ovários, mas que também podem ser encontrados no intestino, ureter, bexiga e até mesmo pulmões, em casos mais raros – se inflamam, e causam, com isso, dores que nem mesmo o mais destro médico especialista pode descrever. Só conhece quem sente.

As cólicas menstruais causadas pela endometriose podem ser incapacitantes. Você se lembra daquela colega na escola que tinha dificuldades em participar da aula de educação física sempre que estava menstruada, porque dizia que sentia muita dor? Ela provavelmente tinha endometriose. E a amiga do trabalho, que chega até mesmo a faltar ao emprego ao menos um dia, sempre uma vez por mês? Bingo.

Endometriose não é frescura, tampouco uma doença simples, a ser tratada de maneira inconsequente. A cada ano, novas mulheres sofrerão não só com os incômodos mensais causados por ela, mas também com as altas chances de infertilidade que a doença causa, bem como com seus outros sintomas graves, e que permanecem ocultos por serem considerados irrelevantes, ou porque as pacientes não encontram espaço nos consultórios para relatá-los.

Dor na profundidade da vagina durante o sexo, moça, não é normal. Problemas intestinais, com alternância enlouquecedora entre diarreia e prisão de ventre, também não são coisas desimportantes. Nem são fúteis os sangramentos anais, na urina, ou vaginais que eu sei que às vezes você tem, ou sua retenção de líquido, nem, principalmente, o fato de você conviver com dor contínua, 24 horas por dia.

Portanto, fale. Explique ao seu médico o que você sente, com detalhes e, se possível, longamente. Use sua consulta médica, seja ela paga por você, pelo governo ou por seu convênio, para relatar absolutamente tudo que se passa com seu corpo diariamente, há anos, sem pressa nem vergonha. Nós precisamos falar sobre a endometriose. Nós precisamos debater a doença, para que possamos, cada vez mais, ajudar mais mulheres no mundo a receber o diagnóstico e o tratamento corretos. Nós precisamos mostrar a elas que não precisam conviver com a dor, abrir mão de suas vidas sexuais, muito menos do sonho de ser mães.

Enquanto escrevo este texto, aguardo a autorização do plano para o agendamento da minha sétima cirurgia só neste ano. Como não encontrei um bom especialista coberto pelo convênio, recorri à medicina privada, e só conseguirei arcar com a despesa de dezenas de milhares de reais da intervenção porque, por sorte, minha família se ofereceu para emprestar o dinheiro. Apavorante, sim, mas nada novo para mulheres que já viveram esta etapa, e que já desembolsaram salários, carros e até casas para pagar por sua saúde.

Em minha rotina, há dias em que tenho vontade de sumir, jogar todos os comprimidos receitados pelo médico na privada e fingir que não estou doente nem sinto dor. São dias ruins, em que nem os medicamentos conseguem vencer a dor e o desespero. No entanto, há dias bons como hoje, em que permaneço confiante, boto uma roupa bonita e me arrumo como se fosse sair para algum lugar importante, que não um consultório, hospital ou farmácia.

Estes dias bons acontecem, geralmente, porque, neles, recebi mensagens e telefonemas de incentivo e carinho de pessoas que sabem do meu histórico e do momento que estou atravessando. Chefes, familiares, amigos e amigas que, mesmo sem sentir o que sinto, se solidarizam e se interessam por saber mais a respeito da endometriose e seus efeitos na vida de mulheres como eu, espalhadas por todos os cantos do mundo.

E é isso que desejo imensamente para todas elas: uma rede bem informada de amparo para enfrentar e vencer esta doença que não tem cura, mas tem controle. Desejo que elas tenham acesso a espaços importantes como este aqui, para que joguem luz sobre o problema e busquem, em conjunto com seus médicos, a melhor solução para seus casos. Com conhecimento, certamente tudo isso será possível. Precisamos romper o silêncio. Precisamos falar sobre a endometriose.

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