Do Meu Folhetim https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br Meias verdades sempre à meia luz Thu, 30 Sep 2021 12:29:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Medo do Ano-Novo https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/01/01/medo-do-ano-novo/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/01/01/medo-do-ano-novo/#respond Wed, 01 Jan 2020 17:57:15 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/reveillon-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=596 Enquanto meus primos tinham medo do escuro, meu pesadelo era o Réveillon. Como se fosse um ente físico e palpável, o ritual absolutamente simbólico inventado pela humanidade para legitimar acender rojões e comer lentilhas e pular marolas tudo junto numa mesma noite me assombrava de maneira surreal. Se estivesse ao meu alcance infantil, eu escolheria todo ano dormir profundo durante a passagem de um calendário para o outro.

Era um pavor sem lógica. Não havia qualquer trauma no meu histórico. Tirando aquela vez que ficamos engarrafados na Imigrantes na praça do pedágio, e, sem ceia, comemos Cebolitos brindando o Ano-Novo do lado de fora do Fusca, nada de triste nunca me aconteceu em uma noite de virada.

Ainda assim, temi pela minha vida por toda a infância, sempre que o relógio ameaçava bater a inevitável meia-noite. As vinhetas de Réveillon da Globo também não ajudavam. Meu intestino gelava no primeiro acorde da musiquinha, e não precisava nem o Lima Duarte dizer que hoje era um novo dia de um novo tempo para eu sentir vontade de vomitar.

Em 1986, aumentaram o terror convidando o Araken, o showman, para integrar o elenco. Não bastava me assustar por toda a Copa do Mundo, ele agora vestia branco e avisava: o futuro já começou.

Criança tímida, sofri calada o tormento. Ninguém nunca soube do flagelo que era para mim o comercial da Brahma e seus personagens de branco bebendo na praia. Ou o coral na TV entoando a contagem regressiva. Eu fingia bem. Era uma boa convidada da festa.

Participava ativamente dos rituais. Branco era a única cor possível nas roupas. Brindar sempre, nem que fosse com refrigerante. Comia direitinho as sementes de romã para guardar depois na carteira, em filetinhos de papel alumínio, na divisória do cartão de crédito. Levantava o pé esquerdo do chão assim que faltasse um minuto, para garantir que só o direito estivesse ali firme no começo do novo ano.

Gostava de escolher com as primas uma cor de calcinha, a depender do que mais se desejasse para os meses que vinham. Quando criança, amarelo para ter dinheiro pra comprar gibi e picolé. Depois, adolescente, vermelho, porque eram muitas as paixões platônicas.

Assim, acompanhada e inserida no contexto, ficava mais fácil atravessar o problema. Mas, depois de adulta, quando acontece de às vezes a gente não ser convidada para festa alguma, foi preciso muita coragem para vez ou outra encarar sozinha o “Show da Virada” sem surtos. Não chorar de medo à visão do Lulu Santos na Paulista.

Ontem foi Ano-Novo de novo. Passei de vestido azul, sentada no chão, com a cachorra no colo. Sem copo na mão. Calcinha velha e branca. Numa casa na serra, pouca gente por perto. Não senti medo, pela primeira vez. Talvez esteja curada.

Vai ver meu medo era da televisão. Ou da Rede Globo especificamente. Talvez o pavor fosse de deixar algo ir embora. Apego. Como soltar assim, em dez segundos de trás pra frente, algo que foi meu por 365 dias? Será que o próximo ano seria tão bom quanto? Quiçá pior ainda que este antigo? Medo do novo. Medo de crescer.

A maior pena da vida é que às vezes a gente demora tempo demais pra aprender. E mais tempo ainda pra reconhecer e mudar as coisas. Quem sabe o Araken tentava desde 1986 me passar esse recado. Às vezes, as grandes lições podem vir na forma de uma mascote na TV, ou no calendário novo em folha que o pet shop dá de graça quando a gente compra ração em dezembro.

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Os solitários da praça de alimentação https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2018/05/14/os-solitarios-da-praca-de-alimentacao/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2018/05/14/os-solitarios-da-praca-de-alimentacao/#respond Tue, 15 May 2018 01:20:50 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2018/05/praça-320x213.jpg http://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=168 Adultos são meninos e meninas altos, de terno, salto alto, que caminham pela Paulista, Copacabana, pegam ônibus e fila de mercado, todos com seus buracos no peito encobertos por roupa de gente grande, contas e crachás de empresas importantes. A gente se esbarra nos caminhos, deixa cair uma pilha de livros, a bolsa, e corre para tapar de volta o rombo antes que alguma outra criança grande perceba.

Acho sempre, enfim, que a gente cresce só em tamanho, e que tudo que se era com cinco, dez anos, talvez, continua para sempre existindo. O gosto por pudim furadinho ou liso brilhante, o talento com as figurinhas no bafo, o nojo de sabonete de aveia no banho e o prazer em desfiar o cobertor de chenille até pegar no sono – preferências se misturam aos desconsolos e moldam uma personalidade que, a exemplo das orelhas, já nasce praticamente do tamanho que terá até o fim da vida.

Muito por isso, tenho dó de adultos que comem sozinhos em praça de alimentação. Porque meu raio-x desnuda uma menina sem amigos atrás do uniforme da enfermeira mastigando mecânica um filé de frango com batatas. E o garoto avacalhado por ser ruim de futebol agora almoça todo dia em silêncio, mesmo quando racha a mesa de maneira tão próxima com desconhecidos que, se esticarem a mão, beliscam um pedaço do seu pastel de carne.

Um amigo diz que é justamente esse senso de coletividade que o fascina nas áreas dos restaurantes em centros comerciais. Que elas o fazem lembrar e rememoram, resistentes, o clima das tavernas, e isso com muito mais poder que os restaurantes, onde os espaços físicos são claramente delimitados, e socializar de maneira tão íntima parece algo impensado e até mesmo constrangedor.

E eu, que não consigo enxergar os shoppings da mesma maneira que ele, com essa perspectiva otimista e bonita de garoto bem criado em família amorosa, entendo que é esta justamente uma prova do meu argumento de que, seja sentados à beira do Giraffas ou apertando o passo para fugir da chuva, a gente só cresce para cima – para os lados, às vezes – e escolhe, discretamente, um jeito diferente de disfarçar uma angústia. Tenho 1,68m, ombros largos, porte de nadadora e uma forte tristeza de infância. Flagro solidão onde não tem.

Outro dia trombei em um menino-homem de tênis brancos. De alguma forma pareceu que a dor dele se conectava à minha, sei lá se por parecidas ou porque opostas, e ele, armando cabaninha com as mãos como fazíamos na infância, mostrou bem cuidadoso seu buraco no peito para mim.

Eu quis enfiar o dedo para sentir a textura, ou cobrir com gaze e deixar respirar para formar casquinha. Mas ele me deu as costas e saiu correndo, decerto achando que eu pudesse querer combinar sua fresta na minha, procriar de nós um monte de fendas pequenininhas. Correu com os tênis brancos pisando as poças, e de cadarço desamarrado perigando cair. Nunca mais o vi.

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Redes sociais são um golpe na autoestima dos adolescentes https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2018/04/26/redes-sociais-sao-um-golpe-na-autoestima-dos-adolescentes/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2018/04/26/redes-sociais-sao-um-golpe-na-autoestima-dos-adolescentes/#respond Thu, 26 Apr 2018 23:45:03 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2018/04/instagram-320x213.jpeg http://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=158 Debaixo d’água rolam festas, eu estrelo videoclipes de bandas famosas, danço em câmera lenta com pares invisíveis, sou cobiçada por 20 pretendentes. Tem dias em que finalizo treinando os discursos que farei quando ganhar o Jabuti com um livro que nunca escrevi. No box do chuveiro, enfim, eu sou a versão mais bem-sucedida de mim.

Meu primeiro beijo foi no azulejo frio debaixo da prateleira de shampoo. Transei com todos os crushs em orgias quiméricas antes mesmo de perder a virgindade. Na infância, era filha de pais famosos, grandes atores da TV, e não me faltava nada, não tinha carência de ninguém.

A vida fantasiosa que eu reproduzia naquela época era o fruto de um mundo que ainda nem sonhava com internet, e que passava fax ou telegrama quando tinha uma necessidade urgente. Eu cobiçava o pouco que me chegava às mãos por meio de revistas de adolescente e filmes românticos na televisão.

Isso significa, sobretudo, que o abismo entre quem eu era e quem eu gostaria de ser não era assim tão monstruoso. No entanto, basta que pulemos duas décadas pra frente, e a catástrofe se estabelece: da vida real das garotas e garotos para o delírio das vidas no Instagram e Facebook, a desproporção é enorme.

Se eu sonhava com utopias baratas tipo namorar o astro da banda de rock do momento, e ter, no máximo, peitos menores ou sobrancelhas curvadinhas, hoje em dia não dá para sonhar com menos do que um corpo perfeito e firme, saldos astronômicos no banco, guarda-roupas de atualização diária, celulares, maquiagens, tênis, bonés, viagens a continentes distantes com praias paradisíacas em que se possa exibir em fotos todos os nossos corpos perfeitos e firmes, nossos saldos astronômicos no banco, nossos guarda-roupas de atualização diária, nossos celulares, nossas maquiagens, nossos tênis, nossos bonés, nossas viagens, nossos continentes.

Imagino o golpe na autoestima das crianças e jovens de hoje em dia, constantemente se comparando a figuras e vidas postiças inalcançáveis nem como todo o dinheiro do mundo, nem com toda a sorte do mundo. Vocês percebem, meninos, que nada daquilo existe? Que todo mundo que ostenta na tela do seu celular também faz cocô, fica doente, tem bafo, pereba, lombriga, ameba (inclusive a bailarina)?

Fui uma menina com sérios problemas de autoestima, e sou uma adulta que luta em frente ao espelho todos os dias. Porque este é um dado importante de se debater: o amor próprio não é um negócio fixo, inabalável. Ele flutua de acordo com as condições de tempo, temperatura e pressão, e pode sumir completamente, inclusive, se sofrer um baque muito grande.

Qual garota nunca se achou a mais feia da turma por não ter silicone na alma? Qual menino não ponderou a possibilidade de jamais conseguir conquistar alguém que ama só porque não tem os músculos e o carro da moda? E quais desses jovens não foi do inferno ao céu quando se viu remotamente parecido com os grandes ícones dessa espelunca chamada universo virtual?

Se o avanço das redes é inevitável, está na hora de pensarmos um modo de elucidar aos mais jovens que a vida real vai muito além dos stories e recebidos, e que, sim, também é ok experimentar vez ou outra uma dor de cotovelo. Só não dá para deixar nossos moleques crescerem sob a sombra de uma biografia inatingível, cegos para o que a tão valiosa diversidade que eles invariavelmente já trazem dentro de si mesmos.

 

 

 

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Quem em sã consciência sonha em ser madrasta? Eu que não https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2017/12/18/quem-em-sa-consciencia-sonha-em-ser-madrasta-eu-que-nao/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2017/12/18/quem-em-sa-consciencia-sonha-em-ser-madrasta-eu-que-nao/#respond Mon, 18 Dec 2017 15:57:45 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2017/12/madrasta-180x111.jpeg http://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=125 Prazer, eu sou uma madrasta. Quando preenchi a vaga, não foi muito por escolha própria, mas, sim, porque se apaixonar por alguém que já tem filhos de relações anteriores exige que se assuma o emprego de maneira completa – não dá para namorar um cara que é pai e não se responsabilizar pela criança que vem junto.

Agora, o que dá para escolher é como se vai abraçar esta responsabilidade. Em resumo, você pode tentar ser legal, ou você pode ser uma completa escrota e virar um pesadelo eterno na vida do seu enteado ou enteada. É preciso admitir que, já de antemão, não somos lá a raça mais bem vista da sociedade. Se nas histórias infantis somos a escória da humanidade, na vida real algumas de nós também não colaboraram muito para melhorar nossa imagem.

Dê um Google em notícias usando apenas a palavra “madrasta”. Lá estará nossa classe torturando meninos e meninas, machucando, judiando física e psicologicamente, botando em prática com louvor o papel de vilã assassina que acompanha a alcunha desde que o mundo é mundo. Desta forma, quem em sã consciência deseja virar madrasta nessa vida? Eu que nunca quis.

Não fazia parte de nenhum sonho meu conviver e lidar com a criação de alguém e não poder questioná-la. Acrescentar ao calendário datas oficiais de convivência com a ex-mulher do homem que amo. Rezar para que todos, os seus os meus e os nossos, se respeitem e, que sorte seria, se gostem e curtam estar em sua companhia. Eu fui enteada a vida inteira, e soube sempre que não era amada verdadeiramente, pelo contrário – se havia um estorvo, aquela era eu. Já pensou se um dia mesmo que sem querer eu fizesse o mesmo com alguma criança no mundo? De modo que não seria muito mais fácil não ser madrasta, e ponto final?

Seria, se não houvesse um profundo carinho por aquelas duas (às vezes três, quatro, muitas) pessoas que entram na sua vida de repente, sem licitações ou formalidades. Vrá, e lá estão eles dormindo na sua casa, repartindo sua cama, comendo sua comida, tomando sua rotina, sentando no seu colo, olhando nos seus olhos e encharcando seu coração de um amor conquistado e precioso. Você se apaixona. Por ele, e por eles mais.

Com isso, aprende que ser madrasta é caminhar na linha da sutileza. É estar disponível sem jamais impor esta presença. É, por vezes, ficar invisível, e estar ok com isso. Aceitar o segundo plano como um lugar confortável, e nem por isso menos importante. É um exercício maravilhoso sobre a alternância muito louca entre nossa total insignificância no mundo e a profunda influência que podemos causar na vida de uma pessoa.

Ser madrasta é saber que sua atuação na vida daquela criança, ao contrário do que acontece com um pai ou uma mãe, tem a forte tendência a ser passageira, e que o desafio de fazer este período – seja ele curto ou duradouro – algo construtivo e memorável depende apenas do quanto você está aberta a se enxergar como ser humano, e disposta a se modificar no que for necessário.

Prazer, eu sou uma madrasta, e não há nada neste mundo que me faça evoluir e aprender mais sobre o amor do que ocupar este papel.

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O trem https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2017/10/06/o-trem/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2017/10/06/o-trem/#respond Fri, 06 Oct 2017 23:46:03 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2017/10/trem2-180x140.jpg http://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=70 Quando éramos pequenos, havia mágica três vezes ao dia. Geralmente vinculada às principais refeições, a passagem do trem na frente de casa era um acontecimento, e reunia todas as crianças penduradas no portão baixo de madeira, com os braços para cima acenando de muito longe para um maquinista que, na nossa imaginação, nos olhava com o mesmo entusiasmo com que olhávamos para ele.

Era meu avô quem gritava “Ó o trem!”, quase que como um apêndice imediato do apito da maria-fumaça que anunciava a aproximação das composições ora de passageiros, ora de carga feito carvão, madeira e pedregulhos. Vinha o apito, vinha o grito e vinha o som metálico do atrito nos trilhos, e era uma excitante contagem regressiva até que todos se alinhassem para dar tchau. Parava-se tudo, almoço, lanche, partida de tabuleiro, descanso na rede, o que fosse, porque as férias, afinal, só existiam porque era preciso que passasse o trem e a gente observasse.

Três décadas depois, se fechar com força os olhos, ainda sinto na boca o gosto do café interrompido, e, no estômago, o frenesi deflagrado pela frase de comando. Se esticar um pouco a mão, ainda agarro as roupas dos meus primos, trapaceando a corrida em busca dos melhores lugares na arquibancada. Sei nos dedos o algodão das camisolinhas, o náilon dos shorts dos meninos.

Ombro a ombro, temos os cabelos lavados da noite passada, e cheiramos, todos, a cremes contra o sol e a pão com manteiga. Sei a altura de todos nós. Os chinelos favoritos. E o que, em nossas fantasias particulares, representa o trem para cada uma dessas crianças. Tem quem acene na esperança de seguir junto, e outros, com o desejo de que os ocupantes dos vagões anseiem por este encontro com o mesmo vigor que o fazemos daqui de cima das ripas do portão de madeira, com o vovô assistindo.

Para mim, o trem era o lembrete de que estávamos todos vivos, e de que assim permaneceríamos para sempre, em movimento constante, com a força e a estabilidade de grandes máquinas. A herança transmitida em uma tradição que nos puxaria de volta ao solo firme sempre que a rotina de adulto vacilasse.

Carrego o trem comigo dentro do peito. Ouço o apito e o grito, e escolho sempre correr em direção à vida, ao portão, às nossas mãos dadas. Espero que, de onde estiverem, eles todos, as crianças para sempre que seremos, também façam o mesmo. Ó o trem, menino, vem dar tchau.

 

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Sobre aprender a ser mãe e não interferir https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2017/08/18/sobre-aprender-a-ser-mae-e-nao-interferir/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2017/08/18/sobre-aprender-a-ser-mae-e-nao-interferir/#respond Fri, 18 Aug 2017 19:57:59 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2017/08/Fotolia_167719265_Subscription_Monthly_M-180x120.jpg http://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=26 Vai ter festa do pijama este fim de semana lá em casa. Após algumas assembleias domésticas para decidir o formato da comemoração do aniversário de nove anos, meu filho escolheu o que parecia ser a opção mais simples de planejar, mais divertida, e, óbvio, fator essencial à fatia adulta do núcleo familiar, com o orçamento mais em conta de todos. Iupi.

Como moramos em um singelo apartamento e não em um imenso complexo hoteleiro, foi preciso limitar a lista de convidados a um número de crianças que a sala e o quarto pudessem comportar.

Desejei, eu, por alguns segundos, dando vazão àquele sentimento humano que teme o caos, que morássemos em uma quitinete e fosse possível convidar apenas meio menino? Sim. Chorei internamente prevendo pilhas de louça suja e uma madrugada em claro com vontade de fugir? Também. Mas, obviamente que não se trata de contentar a mim, e, com isso, quatro garotos receberam a convocação.

Quatro, mas que deveriam ser cinco. A lógica infantil por vezes age torto por linhas mais tortas ainda, e, ao fazer a escolha, meu filho deixou de fora um dos melhores amigos da escola – “ele de mal de mim, mãe, nem adianta eu insistir”, justificou, sem nem tentar.

Aqui em casa, depois que as crianças ultrapassaram aquele limite de idade em que conseguem antever minimamente as consequências das suas escolhas, a lei é deixar o baile seguir até que seja preciso intervir para socorrer alguém – e, na maioria das vezes, nem precisa.

Claro que, com isso, ninguém bota a vida de ninguém em risco. Óbvio. Mantendo as circunstâncias de temperatura e clima sempre estáveis, o nosso circo – bate na madeira – nunca pegou fogo. Produziu, no máximo, uma ou duas simples faíscas.

A filosofia do “soltar” faz, para mim, parte do que compreendo como uma das tarefas mais difíceis e essenciais do ser mãe. Assistir a cria de uma distância segura, sem interferir, exige mais que desprendimento: é preciso segurança, maturidade, altruísmo, bem como uma boa dose de fé e, por vezes, um modelo bacana de camisa-de-força.

Que mãe não sofre para não ceder aos ímpetos de segurar o banco da bicicleta para sempre, até que a Terra acabe, enquanto o filho aprende a pedalar sem rodinhas? Qual de nós não chora secretamente quando é preciso deixar um bebê tão novinho na creche, já que alguém aqui tem que trabalhar?

Conheci, uma vez, a mãe de uma coleguinha de classe que não permitia que a menina fosse aos passeios programados pela escola. Morria só de pensar que o ônibus tombasse e matasse todos os alunos. Por dentro, eu sentia o mesmo que ela. Mas preferia acreditar que, se fosse para um acidente acontecer, ele se daria de qualquer maneira conosco em um carro, ou voltando a pé da feira, mesmo que fosse na esquina de casa.

No caso da festa do pijama e do convidado esquecido, era importante que o anfitrião compreendesse que na vida há dois tipos de pessoas – aquelas que fazem cagadas e se imobilizam, lamentando o próprio erro, e aquelas que fazem cagadas e correm logo em seguida para solucioná-las. A vida, filho, repeti, é esta mesmo, cheia de tropeços, e crescer envolve presumir que nossos remendos são os que melhor poderíamos ter escolhido.

Ele vai completar nove anos, e foi posto diante do desafio de resolver a armadilha em que ele mesmo havia se colocado. E não há verbetes suficientes em dicionário nenhum que definam o orgulho que senti ao vê-lo desatar o nó e seguir em frente. Serão cinco crianças, neste fim de semana. A casa, provavelmente, vai ruir com tudo dentro, incluindo os brigadeiros e o bolo Floresta Negra. E nós, responsáveis pelo aniversariante, não poderíamos estar mais felizes com o caos que está por vir.

Ser mãe, pelo que vejo, é resumidamente confiar. Confiar, sobretudo, em si mesma e nas escolhas que fazemos ao longo desta infinita jornada. É confiar nos nossos filhos e na capacidade que eles devem ter de sobreviver até os cem anos, quiçá 150. Ser mãe é, por fim, confiar no poder do universo, e na certeza de que ele nos será leve e afável enquanto nos for permitido.

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