Do Meu Folhetim https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br Meias verdades sempre à meia luz Thu, 30 Sep 2021 12:29:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Já tentou fazer sentido hoje? https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/11/12/ja-tentou-fazer-sentido-hoje/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/11/12/ja-tentou-fazer-sentido-hoje/#respond Tue, 12 Nov 2019 18:46:54 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/bacurau-320x154.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=560 Tá tudo muito esquisito. A velocidade das coisas que não dou conta de acompanhar, um presidente voa embora de seu país e eu ainda nem tive tempo de saber o que acho da viagem, do trajeto, do passageiro. Alienada, talvez, atrasada, mais provável. Ruas em outro canto pegaram fogo, um preso é solto, hienas, leões, óleo nas praias, reformas.

Andando pela rua escutei um miado no cano ligado à calha da loja de roupas. Domingo, tudo fechado. Um caminhão de bombeiros muito grande para transportar animais liga a sirene quando passa em frente ao bar, comigo dentro. Eu não sei o que vou fazer com esse filhote, agora. Ser responsável pelo outro quando mal se é responsável por si.

Já tentou dar comprimido para gato? Já tentou fazer sentido quando o mundo lá fora derrete feito vela de sete dias?

Pensei em usar a tampa da caneta como micropá e cavar a pele do rosto para ver até onde se chega. Se eu usasse essa espinha como atalho, porta de entrada. Talvez eu encontre meu cérebro. Pode ser que lá dentro alguma explicação esteja dando sopa.

Sinto vontade de comer bifes de bichos que nem existem. Invisto um bom dinheiro no suco de açaí do mercado chique da esquina, para depois esquecer a garrafa fora da geladeira e o açaí explodir manchando a parede do apartamento que nem é meu.

Que custa uma fortuna todo mês. Igual à conta de luz, e olha que eu nem tenho ar condicionado.

Vai ver é porque meus banhos demoram, enquanto fantasio sobre enfiar o sabonete inteiro na boca. Ou sobre como seria se eu trocasse o chuveiro pelo tanque da área de serviço, se eu ia caber, se era melhor cruzar as pernas ou deixá-las para fora.

Eu não sei mais se te amo. Não me lembro se terminei de ler aquele livro que você me deu. De quantos dias eu preciso para caminhar daqui até a Austrália? E se eu parar na sua casa antes?

Acho que as redes sociais estão me fazendo mal. As coisas lá são exatamente como eu queria que elas fossem, mas não são. Eu não tenho aqueles peitos, olha que móveis mais lindos, mentira que existe uma praia assim tão azul. Minhas paredes têm suco de açaí explodido.

O prazo da biometria está acabando. Posso mentir minha identidade? Se eu roer a pelinha em volta das unhas meu nome aparece diferente?

Um jornalista bateu no outro e apareceu ao vivo no rádio e na televisão. Conheço os dois. Torço só para um. As pessoas queriam um desfecho diferente, mais surreal e sangrento, foi o que li numa matéria de internet. Eu, que nunca quis matar ninguém, queria saber quantas vezes por dia um assassino pensa em como teria sido a vida se tivesse mudado de ideia minutos antes. Vou comprar uma violeta e deixar morrer só para testar em quais dias da semana me arrependo.

Eu não devia ter gastado aquele dinheiro. Nem dado aquele beijo. Onde eu estaria se nunca tivesse enviado aquela mensagem? Como faz para tirar a cabeça entalada no portão de ferro?

Quero sair sem roupa na rua. Mas meus peitos não são de Instagram. Ligo para a amiga astróloga. Ela explica que tá tudo esquisito mesmo, e que vai continuar piorando até janeiro do ano que vem. Mas isso é muito tempo. Mas é pro seu bem. Mercúrio não está retrógrado? Até está, mas ele é o menor dos seus problemas.

Já tentou escrever texto com retrogradação astral rolando?

Junte uma colherinha de chá de manteiga ou requeijão, faça uma bolinha, ponha o comprimido lá dentro e enfie no fundo da goela. É importante que ao menos os gatos sejam medicados em meio ao caos.

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Você não é obrigada a nada https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/10/18/voce-nao-e-obrigada-a-nada/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/10/18/voce-nao-e-obrigada-a-nada/#respond Fri, 18 Oct 2019 18:48:51 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/astronauta-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=537 Quando eu estava grávida, torcia pra que não fosse uma menina. Eu tinha medo de ter uma filha e ela crescer me detestando, de passarmos a vida inteira brigadas, de ela me achar ridícula e querer ir embora para longe. Eu torcia pra não ser uma menina porque não sabia lidar com menina nenhuma, nem mesmo a menina que eu era.

Tem mais de uma década que eu dei à luz um garoto, e fiquei desde então esperando a oportunidade para me redimir do medo cego. Porque, em dez anos de amadurecimento, aprendi sobre a força e a união femininas, e sobre como, curada das minhas feridas, eu teria muito a colaborar na criação de outra mulher.

É provável que esta menina nunca aconteça – já tenho 39 anos, um único ovário, e poucas vantagens diante daquilo que os médicos gostam de chamar de relógio biológico.

Mas esta menina dá seus jeitos, e ainda que não venha de mim, ela vem para mim o tempo todo: na forma de mulheres mais jovens que cruzam meu caminho, ela se manifesta secretamente, a mandar acenos de alma discretos. E, inserida nesses encontros, a minha menina me escuta atentamente desaguar conselhos importantes.

Eu venho repetindo para ela, ultimamente, uma das mensagens fundamentais da jornada de ser mulher. Você precisa saber que não é obrigada a nada na vida. A gente demora a aprender isso, e eu gosto de dar atalhos para as minhas meninas.

Há poucos dias, em uma tarde ensolarada de domingo, revi uma adolescente que, quando conheci, tinha o rosto lavado e fresco de quem acaba de se levantar da cama. Agora, ela usava bastante maquiagem, e batia uns longos cílios postiços por trás dos quais demorei a reconhecer os traços bonitos que havia visto uma única vez, naquele rápido encontro.

Dissemos “oi”. Ela fazia força para esconder um roxo no pescoço com o cabelo curto, e garanti que não funcionaria porque fora a segunda coisa que notei quando a vi de longe (a primeira, as pestanas).

Perguntei se tinha valido a pena ganhar aquele hematoma intenso. Garantiu que não. Contou que, em meio aos beijos que trocava na balada, o homem tombou seu pescoço para o lado e aplicou o golpe com a boca. Demorei para ver que não tinha que aceitar aquilo, explicou. Ela teve dúvidas se era obrigada a gostar.

Na construção da identidade de mulher que vem fazendo, ela cogitou que talvez fosse necessário dizer sim à violência travestida de amor e sexo que às vezes nos ofertam. E, pode ser que nem percebesse, também emulava o que considero um dos maiores símbolos atuais da opressão e da ditadura da beleza: uma maquiagem carregada e padronizada.

As redes sociais estão lotadas de vídeos de meninas jovens ensinando produções com muita base pesada, sombras, correções do que nunca esteve errado, e sempre, sem depender da ocasião, os pares de longos cílios postiços colados às pálpebras.

É assim que uma mulher deve sair de casa se quiser ser considerada bonita, parecem dizer. Se quiser se encaixar no padrão. Se quiser cumprir com aquilo que dela é esperado.

Nisso, aquelas que não sabem, não podem ou não conseguem cumprir com o ritual da base, sombra, correção, cílios, sofrem caladas por entender que, assim, estarão automaticamente excluídas do lugar que gostariam de ocupar.

E, vejam, ninguém está dizendo que não é certo usar a maquiagem de que se gosta. Que é errado botar postiços para ir à padaria logo cedo pra buscar pão. Estou só mesmo repetindo à minha menina que não é preciso. Que ela não é obrigada.

Sei que ela vai enfrentar essa dúvida ainda muitas vezes ao longo da vida. Mas eu gostaria muito que ela se lembrasse dessa nossa conversa, e soubesse que não, que nunca, que jamais será obrigada a permanecer com quem não quer, a aceitar o que lhe fere, a abaixar a cabeça para a insensatez, a se calar perante a opressão.

E, se um dia você titubeou e se esqueceu da sua liberdade, não tem problema. Sempre há tempo para fazer diferente. Porque o mundo dá voltas, menina.

Ele é lindo, e azul, e todo seu. Aliás, anunciaram hoje no jornal que duas astronautas fizeram a primeira caminhada espacial 100% feminina, filha, eu não sei se você viu. E eu aproveitei esse dia importante para vir aqui te contar de novo que você não é obrigada a nada, menina, mas você pode absolutamente tudo.

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Gente trouxa https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2018/10/25/gente-trouxa/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2018/10/25/gente-trouxa/#respond Thu, 25 Oct 2018 19:04:22 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2018/10/facepalm-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=288 Meu analista é um cara ponderado. Costuma dizer, sessão sim, sessão também, que poucas coisas no mundo são de todo mal ou de todo bem, e que a máxima valeria inclusive para meu ex-marido, continue vindo aqui até você aprender. Torço o nariz, quase discordo, mas, aplicada, volto.

Gosto de procurar o equilíbrio das coisas. Ao sair de lá, aplico – ou ao menos tento – a sensatez lacaniana, e olho a luz e a sombra das pessoas e situações. É tenso, confesso, mas recomendo. Especialmente em tempos de eleição com tendência à polarização extrema, quando parece mais fácil cuspir na cara dos parentes que, dane-se o terapeuta, são, sim, absolutamente péssimos e sem qualidades.

Mentira. Desculpa, me exaltei. Eles não são integralmente ruins, talvez só um pouquinho. Assim como também talvez não seja completamente horrível a ideia que eles têm de que entendem suficientemente bem do tema, e que estariam gabaritados a palestrar a respeito. A intenção é ótima.

O aumento do interesse pelo debate sobre partidos, posicionamentos e ideologias como um todo tem, sim, um grande valor. Deixamos de apaticamente apertar os botões da urna para refletir um pouco antes de decidir quais números digitar dentro da cabine. E, assim, seria natural que fizéssemos escolhas menos catastróficas (teoricamente, vamos lá, boa vontade).

Estamos profundamente envolvidos com o processo eleitoral, e falando dele pelos cotovelos? Sim. Importante? Também. Só que somos coerentes quando nos exaltamos e vomitamos besteira em cima dos outros? Absolutamente não, e é aqui que mora o problema.

Quando você banca o mestre em ciência política baseado em postagens de Facebook e correntes de WhatsApp, quando espalha fake news, quando justifica seu voto pela aparência de um candidato, quando faz montagem tosca para distribuir para os amigos, quando tenta ridicularizar o outro lado e, sobretudo, quando você entende que apenas uma parcela da população vai se dar mal no final das contas, você corre o risco de passar atestado de analfabeto em história do Brasil. Você vira alguém 100% imbecil.

Se um candidato caótico subir a rampa no dia primeiro de janeiro, e provocar uma crise já no primeiro mês de governo, trago um recado importante a você, amigo: não são só aqueles que votaram no outro partido que vão sofrer. Tamo junto também nessa.

Diante de um cenário econômico falido, você também vai perder seu emprego, panaca. Não vai ser só o dinheiro do pessoal da bandeira rubra que vai desvalorizar – o seu também, tonto, vai perder prestígio. Se rolar repressão, fica ligado que torturador não pergunta em quem você votou, não, pastelão. Nem esquadrão de extermínio, para quem preto é preto e mulher é tudo igual, dane-se o comprovante eleitoral.

Ou acha que o agora cidadão armado e puto no trânsito vai lembrar das suas postagens de apoio e poeminhas no Instagram quando te apontar a pistola no meio da briga? Sabe de nada, inocente.

Isso aqui não é futebol. É bom começar a torcer pelo país como um todo, que política não é futebol e aqui não é Corinthians. Não pense nem por um minuto que seu voto contra-tudo-isso-que-está-aí vai salvar sua alma quando o bicho começar a pegar. Estaremos todos no mesmo barco, um barco ruim à beça e impiedoso com geral. Portanto, pare de falar besteira e disseminar ignorância. Apenas pense. Estude. Gente trouxa.

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Redes sociais são um golpe na autoestima dos adolescentes https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2018/04/26/redes-sociais-sao-um-golpe-na-autoestima-dos-adolescentes/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2018/04/26/redes-sociais-sao-um-golpe-na-autoestima-dos-adolescentes/#respond Thu, 26 Apr 2018 23:45:03 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2018/04/instagram-320x213.jpeg http://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=158 Debaixo d’água rolam festas, eu estrelo videoclipes de bandas famosas, danço em câmera lenta com pares invisíveis, sou cobiçada por 20 pretendentes. Tem dias em que finalizo treinando os discursos que farei quando ganhar o Jabuti com um livro que nunca escrevi. No box do chuveiro, enfim, eu sou a versão mais bem-sucedida de mim.

Meu primeiro beijo foi no azulejo frio debaixo da prateleira de shampoo. Transei com todos os crushs em orgias quiméricas antes mesmo de perder a virgindade. Na infância, era filha de pais famosos, grandes atores da TV, e não me faltava nada, não tinha carência de ninguém.

A vida fantasiosa que eu reproduzia naquela época era o fruto de um mundo que ainda nem sonhava com internet, e que passava fax ou telegrama quando tinha uma necessidade urgente. Eu cobiçava o pouco que me chegava às mãos por meio de revistas de adolescente e filmes românticos na televisão.

Isso significa, sobretudo, que o abismo entre quem eu era e quem eu gostaria de ser não era assim tão monstruoso. No entanto, basta que pulemos duas décadas pra frente, e a catástrofe se estabelece: da vida real das garotas e garotos para o delírio das vidas no Instagram e Facebook, a desproporção é enorme.

Se eu sonhava com utopias baratas tipo namorar o astro da banda de rock do momento, e ter, no máximo, peitos menores ou sobrancelhas curvadinhas, hoje em dia não dá para sonhar com menos do que um corpo perfeito e firme, saldos astronômicos no banco, guarda-roupas de atualização diária, celulares, maquiagens, tênis, bonés, viagens a continentes distantes com praias paradisíacas em que se possa exibir em fotos todos os nossos corpos perfeitos e firmes, nossos saldos astronômicos no banco, nossos guarda-roupas de atualização diária, nossos celulares, nossas maquiagens, nossos tênis, nossos bonés, nossas viagens, nossos continentes.

Imagino o golpe na autoestima das crianças e jovens de hoje em dia, constantemente se comparando a figuras e vidas postiças inalcançáveis nem como todo o dinheiro do mundo, nem com toda a sorte do mundo. Vocês percebem, meninos, que nada daquilo existe? Que todo mundo que ostenta na tela do seu celular também faz cocô, fica doente, tem bafo, pereba, lombriga, ameba (inclusive a bailarina)?

Fui uma menina com sérios problemas de autoestima, e sou uma adulta que luta em frente ao espelho todos os dias. Porque este é um dado importante de se debater: o amor próprio não é um negócio fixo, inabalável. Ele flutua de acordo com as condições de tempo, temperatura e pressão, e pode sumir completamente, inclusive, se sofrer um baque muito grande.

Qual garota nunca se achou a mais feia da turma por não ter silicone na alma? Qual menino não ponderou a possibilidade de jamais conseguir conquistar alguém que ama só porque não tem os músculos e o carro da moda? E quais desses jovens não foi do inferno ao céu quando se viu remotamente parecido com os grandes ícones dessa espelunca chamada universo virtual?

Se o avanço das redes é inevitável, está na hora de pensarmos um modo de elucidar aos mais jovens que a vida real vai muito além dos stories e recebidos, e que, sim, também é ok experimentar vez ou outra uma dor de cotovelo. Só não dá para deixar nossos moleques crescerem sob a sombra de uma biografia inatingível, cegos para o que a tão valiosa diversidade que eles invariavelmente já trazem dentro de si mesmos.

 

 

 

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Orixá não tem Facebook https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2017/12/05/orixa-nao-tem-facebook/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2017/12/05/orixa-nao-tem-facebook/#respond Tue, 05 Dec 2017 22:07:41 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2017/12/acarajé-180x121.jpeg http://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=120 Como acontece todos os anos em 4 de dezembro, o interfone do apartamento de Iansã ontem não parou de tocar. De hora em hora, pelo menos, o porteiro avisava sobre a chegada de uma nova encomenda, sendo na grande maioria flores, garrafas de champanhe e umas poucas e louváveis quentinhas com acarajé fresco, ainda pelando da fritura.

Satisfeita e um tanto exausta das muitas viagens de elevador para buscar os pacotes entregues por Severino, Iansã resolve, lá pelas quatro da tarde, dar uma pausa para tomar um café e checar seus e-mails. Avessa à modernidade e excessivas tecnologias, Iansã é a feliz proprietária de um PC em cuja CPU estão instalados apenas uma versão original do Windows XP e um ICQ nunca rodado, sobrando, assim, à máquina, as únicas utilidades de se conferir mensagens de trabalho e redigir cartas aos amigos.

Em sua conta pessoal do Yahoo, ela encontra spams de requenta da Black Friday, dois ou três boletos, uma oferta de 50% de desconto em guias só nesta semana, pedidos de auxílio variados e um sem número de cartões virtuais felicitando-a pela data em questão. Iansã, em resumo, neste momento é uma orixá plenamente feliz.

Vale lembrar que, assim como não porta um celular no bolso da saia vermelha, restando-lhe como único canal de localização imediata os jogos de búzios e as ligações para o seu número fixo, Iansã também não faz uso de redes sociais. Ela não tem Facebook. Ela não tem Instagram, muito menos Twitter.

De modo que, justamente por esta existência quase à paisana na internet, é primeiro com ignorância – e depois profunda decepção – que a orixá escuta de Severino a notícia de que seu nome está nos trendind topics do dia, com homenagens virtuais espalhadas pelos quatro cantos do Brasil.

Esta geração, pensa, enquanto procura na gaveta da cômoda a agenda de telefones, está realmente perdida. Acham que eu lá vou ver fotografia que colam num site evocando meu nome, e, ainda que eu visse, que basta simplesmente fazer uma postagem comezinha em um universo imaginário e que estão findas as felicitações. Parabéns a gente dá no mundo real, complementa, seja neste aqui ou no de onde eu venho, que escolham.

Procura na letra J o número do saudoso colega, disca e aguarda que alguém atenda. Do outro lado da linha, a conhecida voz reconhece de pronto Iansã, e pergunta a que deve a honra do telefonema. Já não mais aborrecida, e agora, apenas incrédula dos atuais rumos da humanidade, ela escuta o amigo dizer que, xi, você nem imagina o quanto isso me acontece direto, é quase todo dia, praticamente.

Iansã pede, então, que ele lhe dê, por ali mesmo, um breve tutorial para solucionar o seu problema.

– Pois bem, Jesus, desembucha. Me ensine a criar um perfil em cada uma dessas redes, só para eu poder dar block em geral no próximo 4 de dezembro. Eles que me aguardem.

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No aniversário do amigo, postar selfie com textão é pretexto para aparecer https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2017/10/16/no-aniversario-do-amigo-postar-selfie-com-textao-e-pretexto-para-aparecer/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2017/10/16/no-aniversario-do-amigo-postar-selfie-com-textao-e-pretexto-para-aparecer/#respond Mon, 16 Oct 2017 19:35:32 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2017/10/selfie-180x120.jpeg http://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=82 Desejar feliz aniversário a alguém nunca foi tão simples. Hoje em dia, é praxe aceitar sem qualquer traço de frustração até o mais preguiçoso dos parabéns, escrito às pressas, mecânico, em uma caixa de texto de rede social, em duas linhas nada inventivas em um aplicativo de conversa no celular. Instituiu-se a displicência, e ninguém se deu ao trabalho de se queixar – pô, cadê minha festa surpresa, meus balões, minha serenata urbana?

E, estava tudo assim, macunaimamente acertado, até que alguém decidiu questionar a ordem vigente e chacoalhar o mundo das felicitações impessoais. Agora ia, parece. Novos moldes para celebrar virtualmente um aniversário nasciam, e a humanidade finalmente tinha uma chance de salvação. Isso, se não fosse nosso herói um representante da geração mais aparecida e autocentrada já registrada. Um sujeito que, ao reformular os parabéns muxoxos, lançou uma modalidade infernal e sem volta: o textão-dissimulado-com-selfie-dupla.

Óbvio que você já se deparou com um exemplar em sua timeline – bobear, tem um dando sopa agora mesmo no seu feed do Facebook ou Instagram. Facilmente identificável e abominável, o textão-dissimulado-com-selfie-dupla traz, inevitavelmente, uma imagem das duas pessoas envolvidas no processo antes tão singelo de felicitar um amigo pela ocasião de seu aniversário.

É importante dizer, aliás, que a escolha deste retrato que ilustrará a legenda narcisista passa por uma curadoria detalhada, a fim não só de parecer fruto despojado de uma triagem descontraída, mas também de, em particular, fazer com que o autor do textão esteja bem na fotografia – é ele, afinal, o foco das atenções da parada toda, por mais que a ideia seja fazer parecer o contrário.

O aprendiz de poeta, agora que já está bem posicionado, com dentes brilhantes e pele boa, não importando que seu objeto de homenagem, por sua vez, pareça cansado e em um mau ângulo, fará jorrar dos dedos algo que, aposto aqui três membros, começará pela linha de como se conheceram, ambos, ele e o amigo da foto.

Foi no verão de dois mil e algo, arriscará, ciente de que ninguém vai mesmo conferir as datas. Ou, caso este modelo já tenha sido esgotado recentemente em outros textos-legenda, como pretexto para o literato aparecer usando de escada outros conhecidos, poderá, casualmente, abrir o parágrafo dizendo que essa aqui não é nossa melhor foto (fato; para o aniversariante não é realmente), mas ela mostra direitinho o que a gente mais… argh, basta.

Para a geração na qual nada existe se não envolve a si mesma, é difícil mesmo conceber um aniversário alheio que não precise do “eu” para acontecer. Como assim “hoje é seu dia, amiga”, se eu não sou parte fundamental para fazer com que ele seja real? E, mais que isso, que relevância tem a sua comemoração se não está exposta aos nossos seguidores, comigo intencional e desesperadamente buscando a admiração de quem nos lê e assiste, e a quem espero impressionar com meus dotes de escriba emotivo e de boa memória?

O textão-dissimulado-com-selfie-dupla é tão constrangedor quanto a selfie diante dum caixão no velório da celebridade. É tentar beliscar um naco da fama e do momento glorioso do outro em prol de si mesmo. Fica feio, é cafona.

Mais dignos são os usuários de pau de selfie para quem todos os autores de textões-dissimulados-com-selfie-dupla torcem o nariz. Têm mais honra, sim, porque não disfarçam a si mesmos nem ao ponto turístico no retrato. Está tudo ali, pornograficamente oportunista. Mirem-se no exemplo deles, cronistas do Facebook, e, no próximo aniversário de alguém, inovem: passem a mão no telefone, liguem, e pelo amor de deus parem de fazer dos seus amigos a sua versão particular da Torre Eiffel.

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