Do Meu Folhetim https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br Meias verdades sempre à meia luz Thu, 30 Sep 2021 12:29:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Houston, I have a problem https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/15/houston-i-have-a-problem/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/01/15/houston-i-have-a-problem/#respond Fri, 15 Jan 2021 10:00:24 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/sono-2-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=941 Filhos adolescentes são uma dádiva, porque fazem você celebrar materialmente a passagem do tempo, ficar feliz em acompanhar de perto o desenvolvimento da personalidade de alguém, agradecer ao universo pela bênção de ser digno de presenciar milagres. Mas filhos adolescentes também são insuportáveis. Enlouquecedores. Invejáveis.

Eu morro de inveja do cara de 12 anos que mora comigo. Primeiro porque ele tem mais colágeno do que eu conseguiria comprar na minha dermatologista. Segundo, porque ele não dorme, ele desmaia. Pense em alguém que não tem problema pra pegar no sono, nunca. E que, pra acordar, só com balde de água fria e três Pai Nosso.

Na quarentena, enquanto ele sonha profundo, eu desenvolvi uma relação doentia com o sono. Primeiro, não conseguia que ele chegasse. Acabei com o estoque de antialérgico da casa. Depois, fui para drogas mais pesadas, e comecei a comprar escondida do marido cartelinhas de Dramin a cada visita à farmácia. Quando vi, estava aceitando frascos de melatonina de uma amiga.

Quando acabaram todos os tipos de comprimido disponíveis, entrei em pânico. Será que eu seria capaz de dormir novamente, sem a ajuda de um negocinho? Claro que não. Eu tinha perdido o dom. Procurei oficinas. Lives. Entrei em um curso online sobre como pegar no sono e fazer amigos enquanto durmo. Fracasso. Segui acordada e sozinha.

Um dia, o jogo virou. Passei a sentir um cansaço tremendo sempre depois das oito da noite, e uma vontade desesperadora de me cobrir com um lençolzinho cheiroso, de luz apagada. Meu problema agora era que eu não conseguia mais me manter desperta no horário que o resto da casa funcionava.

Os tambores do índice do Netflix viraram minha canção de ninar. Antes mesmo que a família pudesse dar play no episódio do dia, eu já estava aconchegada em algum cantinho do sofá, com a cara apoiada no braço. Quando alguém se dignava a me chamar, dando um chacoalhão no ombro, o apartamento já estava todo escuro, e estou certa de que todo mundo ficava puto comigo.

Fui atrás de ser uma pessoa melhor. De equilibrar os hábitos e nem tanto morrer exausta, nem tanto viver zumbi na madrugada. Passei a me programar para ir para a cama em um bom horário, largar as telas, ler um bom livro. Embarcar numa noite tranquila de sono reparador até que o despertador tocasse.

Mas dei pra acordar com dor no ombro. Você já se relacionou com alguém bonito? Dá vontade de adormecer olhando pra cara da pessoa, quase um estímulo para os sonhos bons. Só que o problema é levantar na manhã seguinte com os trapézios estraçalhados depois de oito horas de pressão.

Entendi que a raiz dos meus problemas estava no travesseiro. Essa merda aqui, que não troco faz anos, estou ficando mais torta e mais velha por causa dela, aposto. Era urgente comprar um novo, e não podia ser pela internet. Me ensinaram que travesseiro e colchão a gente vai na loja para experimentar.

Deitei de calça jeans, máscara e óculos numa cama que ficava bem no meio do showroom. Provei três modelos, todos com a etiqueta na embalagem indicado que eram as melhores opções para quem, como eu, dorme de lado paquerando o parceiro. Escolhi o mais duro, mais alto, e mais barato dos três. Dinheiro não nasce em árvore.

Para a primeira noite, me arrumei como se fosse transar com o travesseiro. Passei creme e botei perfume. Peguei um shortinho bem minúsculo na gaveta dos pijamas. Joguei fora o plástico que dizia que, dentro daquela espuma, havia tecnologia da Nasa. Eu sei de que Nasa eles estão falando. Ela é mais Marcos Pontes do que agência americana. Mas, mesmo assim, eu estava pronta.

Foi quando Houston, we have a problem. Acordei com torcicolo. E o torcicolo me deixou mal-humorada, e quando eu fico mal-humorada eu perco ainda mais colágeno. Gastei 130 realidades para começar um dia velha e me sentindo pior do que me senti durante toda a quarentena, desde a fase do Dramin até o cochilo no começo do Netflix.

Agora, escrevo este texto sentada sobre o travesseiro novo. Porque, se o Código do Consumidor diz que eu não posso devolver um item no qual já tenha esfregado o escalpo, a solução talvez esteja em tentar amaciá-lo com a bunda.

Ou isso, ou trocá-lo na surdina pelo travesseiro do meu filho. Para um adolescente saudável, não faz a menor diferença se debaixo da sua cabeça o recheio é da Nasa, de plumas, de espuma, ou de um pacote inteirinho de Cheetos.

 

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Apegada https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/10/15/apegada/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/10/15/apegada/#respond Thu, 15 Oct 2020 14:27:23 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/polvo-320x213.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=835 Um escritor querido, com quem dei aula na semana passada, entrou no Zoom com uma cara melhor do que a de sempre. “O Átila liberou nosso café”, me avisa, feliz com a notícia de que, em São Paulo, a quarentena dava sinais de que ia abrandar. A gente continua sem se ver pessoalmente, o escritor e eu, mesmo com o Átila dizendo que pode, mas há realmente alguns dias que as coisas parecem um pouco mais relaxadas por aqui.

Em casa, por exemplo, houve consenso de que tudo bem aceitarmos o irrecusável convite de um amigo para passar o último feriado na fazenda. Espaço para o menino jogar bola, correr e tomar sol, piscina para os dias mais quentes, e companhia excelente de gente amada e tão quarentenada quanto nós.

A única contrapartida eram cuecas. Não de todos os convidados, só do meu namorado mesmo. O dono da casa tinha ido antes para o refúgio, e a sacolinha com roupas de baixo ficou esquecida em cima da cama em São Paulo. Será que é esquisito emprestar cuecas, me perguntaram, e eu tive que responder o que pensava de verdade.

Meninas não emprestam calcinhas. A gente separa algumas na gaveta, bota num saquinho de pano, e dá pra amiga esquecida. Toma, que elas agora são suas. Já dei calcinhas para amigas ao longo da vida. Mas fiquei pensando que foram raras as vezes em que me desprendi de coisas com facilidade, mesmo que fosse para salvar uma conhecida nua.

Sofro de apego crônico. Egoísmo selvagem. Talvez pudesse culpar a infância sem grandes luxos, mas sei que é uma justificativa que não passa no controle de qualidade da sessão de análise. Deve ser porque fui filha única. Porque tenho uma personalidade tóxica. Porque nasci sob o signo de touro. Porque não completei a evolução da alma.

E, se sofro com a perspectiva de dividir coisas, compartilhar pessoas também não parece nada relaxante. Espero que ao menos nisso Lacan me ajude com teorias, explicando essa conexão direta e incorrigível entre o apego material e o emocional. Porque existe no mundo um total de zero pessoas que sofrem de apenas uma dessas modalidades.

No filme “Me Chame pelo Seu Nome”, de 2017, há a cena clássica entre o jovem e o visitante que se apaixonam e vivem um breve romance durante as férias de verão, aquela em que eles decidem juntos que se chamarão, na intimidade, pelos nomes trocados um do outro. Não à toa é o momento que dá o título ao filme.

Ao chamar você pelo meu nome, e responder quando você disser o seu para mim, fica estipulada uma fusão de identidades possível apenas em relações de paixão profunda e entrega total. É lindo. Mas não deve ser muito saudável, se durar além de uma estação.

Este final de semana, todos providos de cueca e felizes depois do futebol, corrida, sol e piscina, a busca da Netflix sugeriu “Professor Polvo”, uma produção sul-africana de nome terrível, mas com uma boa sinopse: um mergulhador registra a relação de afeto que desenvolve com um polvo fêmea em uma floresta subaquática.

Não sou de contar finais, mas também gosto de imaginar que os leitores não são tontos e entendem que documentários desta natureza podem prever finais emocionantes, porém não muito felizes. Choramos todos, acho, a sala de TV da fazenda estava quase escura.

Perguntei ao moleque, então, o que ele achava de o mergulhador, que visitou o polvo diariamente ao longo de um ano inteiro, não ter dado um nome ao animal – ele só usa o pronome “ela” para contar sua história toda, em uma hora e meia de filme.

“Ele sabia que ela não pertencia a ele, e que em algum momento eles iam seguir caminhos diferentes”, respondeu. Que incrível que é ser apegada emocionalmente a alguém assim ainda tão jovem e com uma sensibilidade já tão brilhante.

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Pena que eu não sou assinante https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/08/19/pena-que-eu-nao-sou-assinante/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/08/19/pena-que-eu-nao-sou-assinante/#respond Mon, 19 Aug 2019 15:35:24 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/luiza-pannunzio-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=468 A caixa do supermercado foi passando as compras, pouco volume, só três litros de leite, duas frutas, pão, tomates e Listerine. Deu R$ 29,90, senhora, e tive que lamentar. Poxa, moça, eu queria muito, muito mesmo, comer essas coisas e enxaguar minha boca depois, mas eu não sou cliente da sua loja, então vou ter que ficar sem. Né? Né? Nééééé? Ou agora você tem pena de mim e vai me dar esses itens de graça?

Mais tarde, nos Correios, com a embalagem toda pronta, etiquetada e linda, a nota fiscal anunciava que o Sedex para Brasília, onde mora meu melhor amigo, ia custar R$ 29,90. Amanhã no máximo às 10h ele recebe, sorriu a Elizângela do guichê 6, e eu sorri ainda mais rasgada, certa de que minha simpatia a convenceria a enviar o presente sem custos. É que eu não sou sua cliente, Gegé. Quebra essa?

Vejo que, amanhã, o pacote de serviços do Bradesco vai descontar R$ 29,90 do saldo da minha conta-salário. Passo pelada pela porta giratória, pego a senha, espero quatro horas, e tento explicar para o gerente que, como não me considero correntista oficial, gostaria de desfrutar dos produtos do banco sem precisar pagar por eles. E, veja, Rubens, você sabe que eu sou fã do seu trabalho.

Ai, Marcella, quanto exemplo absurdo. Precisa falar assim comigo? Mas é que só assim pra vocês entenderem o que acontece toda vez que publico um novo texto na Folha. É chuva de joinha, é o pessoal achando o título bom, mas sempre tem alguém comentando embaixo que quer muito, muito me ler, mas infelizmente não pode porque não é assinante.

Cê jura? Se você me amasse mesmo, seguidor, não ia pedir para eu quebrar meu contrato com a firma e, na miúda, te enviar prints da matéria ou coluna via WhatsApp. Você não paga todo mês seu Netflix, seu Spotify, sua manicure, academia, psicólogo? Por que não deveria, então, pagar para acessar o trabalho da sua amiga?

Poderia enumerar aqui dezenas de despesas que todo mundo abraça sem pensar e, digo mais, sem praguejar contra o canhotinho da máquina de débito – você é do time “não precisa da minha via”, que eu sei. O banho no cachorro. A cerveja com os amigos. O McDonald’s da madrugada, o Starbucks com o pessoal do trampo, o Uber que fica só um pouquinho acima do preço do metrô.

Mas de que adianta, se você não entende o produto do jornalismo como algo que merece seu dinheiro? E R$ 29,90 é a partir do sexto mês, hein, se fosse uma gravidez você já estaria com uma pança enorme e quase parindo.

São de início 30 dias pagando R$ 1,90, coisa que não dá nem pra comprar um Trident no farol. Depois de não só não ficar cheio de cárie, mas, sim, lotado de conhecimento, o assinante passa para R$ 19,90, equivalentes aos primeiros 45 minutos de um filme no cinema – na outra metade ou você levanta e vai embora, ou você paga de novo a mesma quantia, porque o diretor do filme não vai te mandar prints do desfecho, mesmo que você peça.

Eu adoro você, leitor, de verdade. Sem você, meu trabalho não tem função. Mas também amo que meu emprego como jornalista ainda exista, que a gente ainda tenha liberdade de imprensa, que ainda se possa apurar e escrever boas matérias, e que meu cérebro ainda seja precioso o suficiente para valer um blog aqui no jornal.

Não sei como você chegou ao final desse texto. Se já é assinante, obrigada por isso e perdão pela perda de tempo tomando bronca. Mas, se não é, e agora lê o último print que alguém compartilhou, fique com meu último pedido: não me dê likes, me dê valor.

 

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No caso Danilo Gentili, eu fico com Reinaldo Azevedo https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/04/12/no-caso-danilo-gentili-eu-fico-com-reinaldo-azevedo/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2019/04/12/no-caso-danilo-gentili-eu-fico-com-reinaldo-azevedo/#respond Fri, 12 Apr 2019 17:40:16 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2019/04/danilo-gentili-320x213.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=385 Entre lacrações no Facebook e opiniões na imprensa, devo ter lido, de ontem para hoje, três dúzias de textos sobre a condenação de Danilo Gentili. E, ainda assim, saio da maratona exatamente como entrei: sem saber o que achar dessa história toda. Queria ser como os colegas Tony Goes e Nina Lemos, por exemplo, que, cada um à sua maneira e em lados contrários, souberam se posicionar com clareza. Ou como a galera da caixa de comentários dos portais, essa nação sempre tão incompreendida, mas que, pela primeira vez, me causou inveja profunda – eles ao menos têm uma opinião. Eu não tenho nenhuma.

Conheci Danilo dez anos atrás. Eu fazia uma reportagem sobre o início do stand-up comedy no Brasil e (olha que visionária) sobre os variáveis limites do politicamente correto dentro do humor. Além de Danilo, entrevistei naquela mesma semana Fábio Porchat, Rafinha Bastos e Marcelo Tas. Danilo foi o único dos quatro que considerou apropriado fazer um comentário seboso a respeito da minha aparência.

Corta para 2019. Salvo raras exceções em seu início de carreira, com alguns shows e a performance no CQC, sempre entendi que Danilo Gentili é um cara talentoso, mas que, em algum ponto da estrada, perdeu a mão no jeito de debochar da vida que tanto já o provocou. E, assim como aconteceu lá naquela época, por não me identificar com o tipo de graça que ele faz, preferi me manter longe. Sem opinião. Sem curtir pra caralho, mas sem desejar que ele morra.

Penso que uma das principais raízes do mal-estar geral que vivemos hoje é que não se pode mais não achar nada. É exigido que tenhamos, para tudo, um ponto de vista muito firme e declarado, sem titubear ou precisar de tempo pra pensar. Uma questão polêmica surge e, automaticamente, já é necessário que se tenha assim, à queima-roupa, 1) um juízo de valor sobre o assunto, 2) fundamentos para tal juízo, 3) e um textão bonito para postar nas redes.

Nem mesmo em conjunturas complexas como a da condenação de Danilo Gentili é permitido hesitar. Como assim você não tem uma leviana opinião formada sobre algo que envolve um assunto tão solene quanto a legislação criminal? Como você não acha que foi censura? Como você não quer que ele vá preso? Quem ousa vacilar o pensamento assim? De que lado você está, afinal? E, se a gente não consegue ter nem mesmo serenidade para aguardar um posicionamento, fica difícil achar que vamos ter tolerância quando todo mundo resolver falar.

Na mesma semana em que somos todos obrigados a ou defender ou a crucificar um humorista, também precisamos estar a postos para declamar resenhas críticas da final do BBB, da expulsão um dia antes da final do BBB, das chuvas no Rio de Janeiro, do prefeito do Rio de Janeiro, do clipe k-pop do BTS, da bissexualidade da Anitta, da prisão do Assange, da Reforma da Previdência.

E gente como eu, que se sente pressionado diante de escolhas boçais como responder se a senhora quer batata frita média ou grande no drive-thru, morre um pouquinho por dentro diante de tanta pressão e urgência para assumir partido nas tretas diárias do noticiário. Assim como a Sandy, eu também tinha resolvido esperar – mas hoje em dia não pode mais.

Vivemos tempos tão confusos que diariamente me surpreendo comigo mesma. Dá o fim de tarde e fico ansiosa para ouvir o que Reinaldo Azevedo tem a dizer em seu magnífico programa “O É da Coisa”, na Band News FM de São Paulo. Quem diria: eu, a esquerdista imunda (para qualificar jornalistas na internet o povo também tem pressa), ávida pelos comentários do Reinaldo, que muitas vezes me ajudam a formar uma opinião mais redonda.

Só que na vida real não tem “O É da Coisa” a cada 20 minutos, ajudando a gente a analisar o mundo com maior clareza. De modo que quero viver em um cenário em que seja autorizado demorar para responder. Quero ter liberação para pensar antes de falar e, sobretudo, de escrever. Quero, se assim precisar, poder ouvir o que o Reinaldo pensa, o que minha prima pensa, ler o que meus colegas escreveram sobre, e só depois abrir a boca e o computador para dar meu parecer. Quero de volta a época em que a lacração não era obrigatória, e ficar às vezes em cima do muro não era crime capital. I have a dream – e, nele, todo mundo deixa todo mundo em paz para pensar.

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Segredo do casamento é valorizar o outro em meio ao caos https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2017/10/04/segredo-do-casamento-e-valorizar-o-outro-em-meio-ao-caos/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2017/10/04/segredo-do-casamento-e-valorizar-o-outro-em-meio-ao-caos/#respond Wed, 04 Oct 2017 18:19:26 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2017/10/Fotolia_172714804_Subscription_Monthly_M-180x120.jpg http://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=62 Namoro é um negócio tão legal, mas tão legal, que a gente não tolera que algo tão legal esteja acontecendo com a nossa vida, e, então, a gente vai lá e destrói o namoro. E como é que a gente destrói o namoro? Transformando-o em casamento. E, na verdade nem precisa casar de verdade para destruir o namoro, envolver as famílias, a Justiça, Deus – não, só precisa mesmo é ir morar junto e dividir o mesmo espaço. A tal união das escovas de dentes tem poder explosivo igual ou maior que o da certidão lavrada em cartório.

A ver: agora a gente vai brigar não só por aquelas coisas todas que a gente já brigava. Agora, a gente vai brigar também por mais um montão de coisas novas, sendo algumas delas coisas que a gente nem sabia que existiam, que dirá que dava para brigar sobre. Mal posso esperar. Vai ter discussão por causa da louça suja. Da lista de mercado. Do rolo de papel higiênico para frente ou para trás.

A gente vai se controlar bem mais, também. Não só o controle daquelas coisas que todo casal tem ciúme, tipo saídas com os amigos com voltas no dia seguinte, ou o celular que não para de apitar com mensagens chegando em todos os aplicativos possíveis. Essas já são de praxe. Agora, a nova modalidade de ciúme vai ser sobre o tempo passado em frente à TV sem inclusão do parceiro. Ou mesmo o inédito controle sobre o tempo do banho ou do cocô alheios. Como se a TV, a privada ou o chuveiro fossem assustadoras ameaças à ordem e à felicidade de um relacionamento.

O problema maior do morar em uma mesma casa é que, com toda uma carta de assuntos para se bater boca novinha em folha à disposição, é uma tentação ao casal deixar de prestar atenção nas coisas divertidas. Se ficarem de muita picuinha, deixarão de ver que aqueles momentos pelos quais costumavam ter que esperar a semana inteirinha para acontecer agora estão ali, à disposição, para serem vividos todos os dias. Dividindo o mesmo teto, toda noite é noite de maratona Netflix. Qualquer hora é hora de campeonato de quem faz o outro ter mais orgasmos.

Ninguém está dizendo que vai ser fácil o tempo todo. Fora os desentendimentos, tem-se os outros pequenos ônus da convivência diária com um ser diferente (e talvez não tão evoluído quanto) de você. As escatologias, por exemplo. Quem já dormiu comigo, vestido ou pelado, sabe que sou uma pessoa que tem gases – e este é um assunto tabu em qualquer casamento, sejamos honestos. É praticamente o Voldemort da vida conjugal, aquele-de-quem-não-falamos-o-nome.

Tenho a sorte de que, desde que fui habitar o mesmo espaço que minha alma gêmea, vim parar em um bairro onde aviões passam voando muito baixo. O que, por um lado, atrapalha o sono de maneira impensável, por outro facilita o alívio e o desconforto intestinais de maneira praticamente incógnita. Aqui em Moema, a gente aproveita os pousos e as decolagens a cada três minutos para, sempre que se faz necessário, mixar o som de um pum com o do Airbus na janela. Só vi vantagens.

A perda de privacidade também pode ser outro ponto de tensão entre noivo e noiva, afinal, quem é que um dia sonhou com este momento, em que é preciso depender da agenda do outro para realizar tarefas tão mundanas quanto cortar as unhas do pé, escutar sertanejo ou mesmo se masturbar em frente ao computador? “Olha, amor, como eu sou legal, marquei para você esse curso de uma semana no interior, enquanto eu prometo ficar aqui morrendo de saudade”. Sorriso escroto, risada maligna.

Morar junto é tão desafiador que, ao invés de balde de gelo e abridor de vinho, as pessoas deveriam dar de presente ao novo casal alguns itens muito mais úteis no dia a dia, tipo: incentivo, serenidade, maturidade. Porque não há nada tão gostoso e trabalhoso ao mesmo tempo em todo o mundo. Por trás de uma fechadura em comum, é necessário expandir e estreitar o foco, simultaneamente – primeiro, para que a relação não se perca em discordâncias miúdas, e, segundo, para que não se mate o amor maior, perdido diante de um cotidiano tão vasto.

O segredo do casamento talvez esteja em valorizar tudo aquilo que no outro nos satisfaz, e que também nos enlouquece. Na alegria, na tristeza, no caos, no dia de faxina. É ir deitar, constantemente e lado a lado, e analisar as horas vividas como um bônus perto de quem deliberadamente escolhemos, sendo que havia tantas outras opções à disposição. É sentir-se, vez ou outra, apavorado, com profundo medo de perder aquela pessoa, porque não existiria, em todo mundo, ninguém com quem morar junto funcionaria tão bem.

 

 

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