Do Meu Folhetim https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br Meias verdades sempre à meia luz Thu, 30 Sep 2021 12:29:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O uniforme que eu posso te dar https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/08/09/o-uniforme-que-eu-posso-te-dar/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2021/08/09/o-uniforme-que-eu-posso-te-dar/#respond Mon, 09 Aug 2021 17:51:06 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/1_serie_manhas_de_setembro_liniker-6624753-320x213.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=968 Só uma semana de aulas presenciais até agora, e já visitei a loja de uniformes do colégio três vezes. Nada custa menos de R$ 50 lá dentro, o que significa que, além do gasto de tempo para ir até o Pacaembu e voltar, há também o tanto que se tira da carteira a cada passadinha.

Meu filho tem quase 13 anos e cresce cerca de meio metro por hora que fica no sol –à sombra, o ritmo parece mais lento, o que dá algo entre 15 e 20 centímetros no mesmo período de tempo.

É burrice comprar muitas peças de roupa em tempos assim, porque, semana que vem, uma calça servirá apenas como short, camisetas largas virarão babylook, e casacos se tornam boleros roçando o sovaco (agora peludo) em questão de minutos.

Mas, sim, eu visitei a loja três vezes, e nas três vezes consumi itens, toda cega e milionária. É que me dá gosto comprar uniformes para ele.

A vida de mãe solo nunca foi fácil, mas houve momentos ainda mais complicados. Eles coincidiram justamente com a fase em que uma criança pequena suja roupas o dia todo, todos os dias. É porque o suquinho derrama na blusa, é porque foi dia de dar carrinho na quadra na hora do recreio –sempre tem uma explicação boa pra que tudo volte imundo do colégio.

E nem mesmo o luxo que é ter uma máquina de lavar concede privilégios suficientes a quem, às dez da noite, pendura no varal uma roupa que precisa estar enxuta às sete da manhã. Por uma década, sequei muita camiseta na porta do forno, atrás da geladeira, no ferro e com secador de cabelos.

Funciona assim quando não se tem dinheiro para comprar mais de duas camisetinhas e uma calça –nada custa menos de R$ 50, afinal.

Quando nem assim dava pra secar o uniforme, quando não funcionavam nem o forno, a geladeira, o ferro, o secador, Teodoro ia para a escola vestindo um uniforme usado, sem lavar, disfarçado com um spray cheiroso daqueles que ajudam a passar as roupas na tábua.

Era nesses dias que eu tinha certeza de não haver mãe pior que eu no mundo.

Assisti ontem a “Manhãs de Setembro”, série da Amazon Prime que tem Liniker como protagonista. Estreou em junho passado. Chorei de novo, igual chorava escondido naqueles dias passados.

Uma personagem manda o filho escolher: ou vai de uniforme molhado, ou vai de vestido emprestado pra escola, porque não deu tempo de a única camisetinha secar.

Se eu já visitei a loja de uniformes três vezes só na última semana, foi porque, agora que a vida melhorou um pouco à custa de muito trabalho, eu finalmente posso comprar as coisas que sempre quis para o meu filho.

Sinto prazer em trazer a sacola pra casa, dar as peças na mão dele e ver que tudo serve, que está tudo limpo, que há itens suficientes para revezar e higienizar e depois guardar na gaveta.

Já houve um tempo em que torci pra que ele crescesse sem nunca saber que, às vezes, foi pra escola de calça remendada às pressas, de camiseta molhada ou sem lavar. Mas, agora, meu maior desejo é que ele se lembre de todos os detalhes.

Porque, lembrando tudo, ele poderá trocar a memória velha por uma melhor e mais honrosa, e, quem sabe, até ter um pouco de orgulho de mim.

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Pesadelo de mulher https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/25/pesadelo-de-mulher/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/25/pesadelo-de-mulher/#respond Tue, 25 Aug 2020 15:30:34 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/sonho-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=780 Cientistas de três grandes universidades brasileiras estão pesquisando os sonhos na quarentena. Parece que a gente tem sonhado mais, de forma mais vívida, e também tido mais pesadelos. Ninguém me perguntou nada, ainda, mas asseguro que eu poderia colaborar bastante com os estudos. Minhas noites têm sido confusas.

De ontem para hoje até que não foi tão mal. Uma espécie de fazenda, mais de 400 pessoas reunidas para um almoço beneficente. A aniversariante faz discurso de agradecimento, e avisa que o ravióli com queijo de cabra que era de graça sairá por um preço amigável. Minha cachorra sumia na multidão, minha gata caía morta de cima do muro. Um sonho tranquilo, na média.

Há algumas semanas, no entanto, o pior de todos. Vinha o aviso de que minha relação tinha chegado ao fim, o que já parecia lamentável o suficiente, poxa, justo agora, mas, enfim, sobrevive-se. Mas porque não era um pesadelo qualquer, e sim um pesadelo pandêmico, a parte que optava pelo término agia com crueldade.

Em resumo, eu era apresentada, a título de tortura, à minha substituta, alguém muito melhor que eu porque mais esperta, jovem e bonita. Ela tinha sorriso de comercial de pasta de dentes. Acho que cheirava a banho tomado, mas talvez essa parte eu tenha inventado já acordada – neurose é neurose em vigília ou no sono.

Ele e ela riam, abraçados. Contavam que tinham se conhecido naquela noite em que eu fui viajar a trabalho, em janeiro, e ele, que havia dito que dormiria mais cedo que o usual, foi ao bar com os amigos. Foi tesão à primeira vista, garantiam os incisivos e molares muito brancos dela. Dois beijos de boca bem molhada. Acordei chorando.

A última vez que isso tinha acontecido, de amanhecer em prantos, foi porque meu filho tinha morrido despencando sem querer da janela do sexto andar – sou mesmo um prato cheio para pesquisadores de sonhos. Preocupado com uma nova morte imaginária na família, meu namorado de pronto se dispôs a novamente me acudir, abrindo os braços para o consolo.

Agora me explica como é que eu vou me jogar no abraço de um adúltero. A ação mais prudente que ele poderia ter neste momento era a de arrancar o próprio pau com faca cega, arremessar descarga abaixo, e se ajoelhar aos meus pés implorando perdão eterno. Só que ele continuava deitado, de pijama, com o pau preso ao lugar de sempre, me olhando confuso e ainda meio sonolento. Não tem como argumentar com um homem desses.

Foram infinitas horas do dia até eu resolver que já dava para ao menos responder às perguntas de ordem prática que ele fazia. Não, eu não quero sobremesa. Não, sua guitarra não está me atrapalhando. Sim, eu desejo que você morra só porque me traiu com uma garota. Oi?

Eu agora vou explicar aqui ao leitor, ao Christian Dunker, e aos amigos dele de pesquisa nas faculdades aquilo que já expliquei ao meu atônito namorado naquele fim de tarde de quarentena. Óbvio que a culpa daquilo que meu inconsciente produz enquanto eu durmo não é de ninguém exceto minha, e que um parceiro tão bacana não merecia que eu passasse um dia inteiro de mal e fazendo cara de vômito toda vez que ele me dirigia a palavra. Aconteceu, ops, me desculpa.

Mas, mais importante que explicar algo que todo mundo já sabe é esclarecer o que talvez ainda passe despercebido: mulher nenhuma sai ilesa de um relacionamento merda. E as consequências da passagem de um pulha pela nossa vida muitas vezes seguem ecoando por anos e anos – e relações e relações – a fio.

É trauma que chama, USP, UFRGS e UFMG?

Eu, por exemplo, além de um marido que me traía e humilhava sistematicamente por uma década, também já tive um namorado que, por dois anos, aproveitava qualquer segundo em que não estivéssemos no mesmo cômodo da casa para assistir pornografia e se masturbar. Não é tarefa das mais fáceis entender depois que nem todos os homens agirão desta maneira.

Claro que não somos isentas da responsabilidade de ativamente buscar ajuda para superar o passado. O vitimismo é tão quentinho que a gente pode esquecer que dá para ir embora dele. Mas às vezes o abalo é grande, e as coisas não se resolvem de uma hora para a outra.

Enquanto homens se reerguem de relações tóxicas com mais facilidade porque são educados a não condicionar a autoestima à opinião alheia, e porque desfrutam de um sistema que ensina que mulheres são apenas números, facilmente descartáveis, nós penamos em uma batalha dupla.

Que começa pela luta para garantir a sobrevivência física, desde o dia um ameaçada, e entender qual o lugar que ocupamos no mundo por direito, e segue pela guerra da construção de uma identidade, de poder se orgulhar dela, e aprender a defendê-la a qualquer custo.

Parece fácil? É por isso que a gente sonha.

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Morrer amanhã https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/10/morrer-amanha/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/10/morrer-amanha/#respond Mon, 10 Aug 2020 10:00:54 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/cova-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=763 Uma grávida de 34 anos deu à luz já inconsciente, e morreu sem ver a filha recém-nascida. Um homem de 37 tinha se mudado havia duas semanas para morar com a namorada, e morreu antes mesmo de desembalar todas as caixas. Outro, de 52, andava ansioso com a formatura do filho na faculdade em dezembro – não deu tempo de esperar.

Se eu morresse amanhã, morria triste de deixar tanta coisa pra trás. Nenhuma hora é boa de se morrer, claro, mas essa agora, justo amanhã, ia não só levar embora comigo as memórias e a expectativa de viver por muito tempo, mas principalmente largaria pelo meio muitos planos importantes.

Quer dizer, eu acho que parece importante ansiar pela florada anual da rosa do deserto que botei perto da janela, para pegar bastante sol. Enfrentei até infestação de pulgões. Eliminei os ovos com cotonetes todo dia de manhã, limpei as folhas com pano. Reguei e adubei a terra. Morrer antes de ver o primeiro botão não parece simpático.

Tem o romance que finalmente comecei a escrever, e que eu não gostaria de partir antes de terminar. Coisa mais sem graça, almejar a vida toda publicar um livro, e deixá-lo escrito pela metade, com os personagens sem saber pra onde ir. Infeliz do escritor que morre antes de bater a página 100.

Morrendo amanhã, não dava tempo de juntar dinheiro para deixar para o meu filho. Ia ficar faltando ajudá-lo na escola nova, no vestibular, vê-lo escolher uma profissão. Não ia dar para saber se ele foi feliz ou não. Nem se comeu direitinho o café da manhã de terça-feira.

Meus pais chorariam o adeus imprevisto. Um filho morrer antes da gente nunca faz parte dos planos. Mas ir embora assim de repente pioraria tudo, eu acho, porque já há meses que não nos vemos. E não ia sobrar ninguém para cuidar deles na velhice. E aquela viagem juntos até algum país distante e bonito não ia mais poder contar comigo.

Se eu morresse amanhã, eu não conheceria em janeiro o bebê da minha amiga. Não saberia se vai mesmo haver ou não um Carnaval. Se vai ter vacina, em que data reabrem as praias, quem vai descobrir a cura. Ficaria eternamente em dúvida sobre quantas cientistas salvarão o mundo dessa vez e sempre.

Era tão melhor não morrer amanhã para esperar e ver quando e de que jeito o presidente cai, se ele pede perdão, se lamenta as mortes, as injúrias, os pés pelas mãos. Ver se quem votou nele admite a culpa, compartilha do crime, sente remorso. Desvendar o modo como sumirão para sempre os desembargadores, os engenheiros formados, os racistas de condomínio.

Ainda faltam três anos para acabar minha segunda faculdade. Duas vidas para ler tudo que eu quero. Uma boa década para dormir no peito do homem que eu amo, outra para conhecer de verdade as mulheres que me cercam. Morrer amanhã não vai me ajudar em nada.

Os planos de mais de 100 mil pessoas só parecem desimportantes porque elas são anônimas. Dê uma cara a elas, e uma lista de sonhos publicada no jornal, e morrer amanhã deixa de ser normal para se tornar, enfim, inaceitável.

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Você vai amar seu filho quando ele crescer? https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/07/22/voce-vai-amar-seu-filho-quando-ele-crescer/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/07/22/voce-vai-amar-seu-filho-quando-ele-crescer/#respond Wed, 22 Jul 2020 18:47:33 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/fita-métrica-2-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=749 Virei motivo de chacota em casa porque respondi ao meu filho que um cubo tem quatro lados. Era uma segunda-feira, a tarde bombando de trabalho, telefone a mil, matéria para entregar, e ele enfia o caderno de matemática na frente do computador, com a dúvida à queima-roupa. Não prestei atenção, errei feio, passei vergonha.

Ter virado professora do Fundamental 2, junto com minha atuação como jornalista, foi uma guinada inesperada na carreira. Não estava nos meus planos ter que lidar com frações enquanto faço uma entrevista, por exemplo, ou relembrar os tipos de relevos do solo na mesma hora em que esfrego Bombril no fundo da panela de pressão.

Chama-se circunstância, e que sorte o acesso às aulas online enquanto tem gente com a vida escolar suspensa, sem dúvida. Mas põe para pensar em questões que vão muito além da funcionalidade do homeschooling, da sobrecarga feminina e dos malefícios da pandemia. Roubar dois lados do cubo me expôs à por vezes esquecida consciência de que filho é filho para sempre.

Todo mundo sabe que eles vivem por anos, glória a Deus, a ideia sempre foi essa, de que só morram quando ficarem insuspeitadamente muito velhinhos, mas é raro que se pare para pensar sobre o quanto o grau de dificuldade para criá-los só aumenta com o passar do tempo.

O dia do cubo capenga se transformou em piada porque as consequências foram só mesmo a desonra temporária de minhas habilidades matemáticas, mas outras manhãs e tardes bem mais complicadas têm sido frequentes na rotina da família presa em casa, de quarentena.

Por saco cheio do isolamento, ou por total ausência de gosto pelo assunto, ou até mesmo – admite-se, sim, essa possibilidade – uma latente falta de talento para os estudos, o pré-adolescente que botei no mundo vem progressivamente se enrolando nas obrigações da escola a distância. E, enrolado, deu para trapacear.

Em meio às lições esquecidas, as aulas puladas, as provas não dadas, e tudo entre muitas e muitas aspas aqui, nem os hipotéticos filhos do Dalai Lama passariam sem levar bronca dos pais. À beira dos 12 anos, o delinquente estudantil em formação é confrontado com veemência, e em nada lembra o bebê amável cuja maior proposta de desafio era não saber dividir os brinquedos com os outros.

O Facebook outro dia mostrou uma postagem em que uma mulher questionava às amigas se a maternidade trazia, por si só, um acalmar dos desejos e dos ânimos. Não traz. Ser mãe e pai complica conforme crescem os filhos, as diferenças, as identidades.

A vontade de sair sem volta para comprar cigarros, à qual obviamente a sanidade não permite sucumbir, é proporcional às implicações do mau comportamento dos filhos. Combinadas ao elemento frequente da ausência paterna, transforma as mães em criaturas não só exaustas, mas assustadas com a progressão de tudo. Onde é que isso vai parar?

A escola – online, presencial, universal, interplanetária, o que seja – deveria contemplar, em conjunto com as famílias, uma educação para a paternidade e a maternidade. Levar aos jovens a informação de que ter ou não filhos é talvez a decisão mais importante que vão tomar em toda a vida, ainda mais séria que a escolha da profissão no vestibular.

Lembrá-los, e a todos os casais que sonham com uma criancinha adorável correndo pela casa, que a infância passa, e é seguida pela complexa adolescência, pela juventude, a fase adulta, e que a necessidade que os filhos têm dos pais não desaparece com o tempo. Pelo contrário, só aumenta.

Não vai mais ser só segurar a mão para evitar a queda, acordar de noite para dar leite, enxugar as lágrimas do susto, dar abraços fortes na doença. Agora que seu bebê cresceu serão exigidos de você retidão nos exemplos, firmeza nas cobranças, coerência nas ações e sentimentos – e essa é a combinação mais difícil do mundo.

Costumo responder às amigas que perguntam se devem ou não ter filhos que nesta dúvida já está contida a resposta: não. Você vai amar a criança quando ela crescer? Criar filhos é para quem tem certeza de que quer o compromisso de ser desafiado constante e gradualmente até o fim da vida, sem hesitação.

Porque ser pai e mãe de crianças fofas é fácil, mas estar disponível para adolescentes rebeldes e adultos com problemas de gente grande é uma jornada bem mais complexa. E o amor a um filho na plenitude do projeto só é possível quando a gente lembra que, junto com seus corpos, crescem também suas exigências.

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Uma praga pessoal e intransferível https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/06/29/uma-praga-pessoal-e-intransferivel/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/06/29/uma-praga-pessoal-e-intransferivel/#respond Mon, 29 Jun 2020 10:00:51 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/nuvemgafanhoto.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=732 Depois de o celular quase cair na tigela cheia de cenoura batida com óleo e açúcar, dona Lourdes agora procurava o botão que põe a ligação no viva-voz. Não era a primeira vez que o filho sugeria que ela não equilibrasse o telefone entre a cara e o ombro, mas com dona Lourdes, teimosa, católica entusiasmada, um pouco surda e muito apegada às tradições, as coisas levavam tempo para mudar.

Veja este bolo, por exemplo, que vai assar por 25 minutos em forno médio. Foram meses, quase um ano, até que ela se convencesse a receber em casa para um café da tarde o namorado do filho, menino bom, estudante de engenharia, e que esperou pela primeira relação firme para contar à mãe o que ele já sabia havia uma década.

Tomás gosta de garotos, dona Lourdes gosta do que é certo. Mas não adiantou chorar, fazer novena, mandar rezar missa, garantir promessa, borrifar água benta em segredo na toalha de banho do filho – mais cedo ou mais tarde, seria inevitável abrir as portas de casa e se resignar.

– Tá me ouvindo, mãe? A gente não vai mais. Esse negócio do vírus é sério, e parece que só velhinho pega.

– Mas eu não sou velhinha.

– É, mãe. E eu não posso arriscar. Vou da faculdade direto pra casa, o Caio fica lá na casa dele, e a senhora não pode mais sair na rua nem receber visita.

– O que é isso, Tomás Eduardo?! Hoje tem missa.

– Tem. Mas a senhora não vai.

– E o Caio não vem mais mesmo?

– Não. Cancela o café. Não sei quando vou poder vê-lo novamente.

Ajoelhada, de olhos fechados e espremendo uma imagem minúscula de Santa Rita na mão esquerda, Lourdes conjecturou, em silêncio, na oração da semana passada, como seria se, um dia, voltassem as pragas do Egito. Gafanhotos gigantes podiam impedir esse namoro, de uma pouca vergonha absurda, já imaginou que bênção?

Dona Lourdes agora tem certeza de que a pandemia foi mandada para salvar a ela e ao menino Tomás do calor do inferno. Resolve que é coisa pra se comemorar, e cobre de chocolate, excepcionalmente, a assadeira ainda quentinha. Acende uma vela. Pensa em espetá-la no meio do bolo feito aniversário.

No décimo dia da quarentena forçada, Tomás tenta acompanhar as aulas da faculdade transmitidas via computador, enquanto a mãe, na sala, ouve a televisão no volume máximo. Ele distingue uma outra voz conhecida, que entra no ar no lugar daquele apresentador famoso do telejornal.

– No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico daquela conhecida televisão.

Tomás vasculha a gaveta de remédios atrás de algo para enjoo, enquanto o nome de Caio pisca na tela do celular. Antes de atender e equilibrar o aparelho entre a cara e o ombro, pergunta se a mãe não acha um absurdo um pronunciamento daquele nível ser feito por um presidente. Dona Lourdes diz que gostou de quando ele citou Deus no final.

Já com a TV da sala desligada, e em busca da letra “o” no índice da agenda do telefone, Jair caminha para a cozinha do Palácio da Alvorada. Nem bem ouve o bipe da ligação chamando, dona Olinda atende de bate-pronto.

– E então, mamãe, a senhora gostou do que eu falei?

– Achei lindo, meu filho. Parabéns.

– Gostou que eu citei Deus no final?

– Adorei.

– Essas pessoas todas que estão aí têm que entender que não adianta tentar me derrubar porque eu não caio, mãe, taoquei?

– Essas pessoas quem, meu filho?

– Essas todas que estão aí, daí, mamãe. Que inventaram essa palhaçada de vírus pra me tirar do poder.

– Mas eu vi na televisão que a doença é de verdade, Jair. Morreu um montão de gente na Itália. Na China também, falaram.

– A China nem existe, ô, mamãe, taoquei? Vê se nos Estados Unidos apareceu alguém morto.

Jair vasculha a gaveta de remédios atrás de algo para azia, depois de desligar sem dizer tchau, quase derrubando o celular ao descolá-lo da cara e do ombro. Tem certeza de que a pandemia foi mandada para enviar a ele e aos seus filhos todos para o calor do inferno. Uma praga pessoal e intransferível.

Não porque ele tenha feito algo errado, que isso nunca. Mas é que uma desgraça assim forjada e quase bíblica tem toda a cara de coisa inventada pela esquerda, que quer a todo custo vê-lo perder a faixa presidencial.

Mas Jair tem histórico de atleta, como agora todos os brasileiros sabem depois do seu brilhante pronunciamento, ele reflete, e sua principal missão como bravo militar e desportista será, daqui pra frente, lutar para desmontar esta farsa comunista gayzista, e mostrar para todo mundo que só usa máscara quem é otário.

Encontra em cima da mesa algo coberto por um pano de prato ainda úmido. Aí sim, pensa em voz alta, a Michele preparou bolo de cenoura. Resolve que, mesmo atolado em problemas, é coisa pra se comemorar, e lambe o chocolate, como de costume, da assadeira ainda quentinha.

Vai deitar otimista. Esta qüestão parece definitivamente resolvida.

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A quarentena é mais difícil para o homem https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/06/19/a-quarentena-e-mais-dificil-para-o-homem/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/06/19/a-quarentena-e-mais-dificil-para-o-homem/#respond Fri, 19 Jun 2020 18:52:13 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/homem.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=725 Tem gente perdendo parente, tem desempregado, tem morador da favela, e dono de negócio falindo, mas ouvi dizer que a quarentena está difícil mesmo é para o homem. Fatores intrinsecamente ligados à masculinidade encontram-se, dizem, acima de todas as dificuldades e agravantes neste severo período que o mundo enfrenta. Estou consternada.

Até os políticos já se deram conta disso e vêm tentando nos avisar. Enquanto o presidente da República entende que salões de beleza são essenciais e autoriza seu funcionamento em meio a uma pandemia que já matou quase 50 mil, um vereador no Mato Grosso do Sul alerta para o óbvio: “Imagina a mulher sem fazer sobrancelha, cabelo, unha, não tem marido nesse mundo que vai aguentar”.

Deve estar complicado mesmo. Acordar todo dia ao lado de uma mina que arruma a casa, arruma o almoço, arruma os filhos, arruma trampo, arruma dinheiro, arruma tempo, mas não se arruma, ah, tenha dó. Realmente não há meios pra que um casamento sobreviva.

Nestas condições, falaram, fica tão difícil ser um cara na quarentena que restam poucas alternativas além de agredir a esposa. Claro, são todos os homens aqui pessoas de bem e respeitosas, não erguem a mão nem pra uma flor, mas agressão verbal todo mundo sabe que existe desde que o mundo é mundo, e se não deixa marca é porque não feriu.

Gorda. Feia. Descuidada.

Isso fora o problema que as mulheres criaram ao ficar em casa o tempo inteiro, acabando com o espaço para as necessidades vitais masculinas. Não há quem sobreviva sem poder bater punheta, por exemplo. E auxílio emergencial pra isso o governo não inventa. Sumir com a namorada de casa um pouco. Porque transar é legal, mas gozar sozinho olhando pra tela do computador não tem preço.

E quem tem filho, então? Coitado. Vocês não imaginam o tamanho da dificuldade. Agora, com a quarentena, é preciso fazer tudo que antes alguém – não sei quem exatamente – fazia. É exaustivo ter que ajudar a mulher em tudo. Ajudar. Fazer metade, ou quase isso. Onde já se viu ter que trabalhar e ainda decidir o que as crianças vão comer no jantar.

Ser homem e pai na quarentena anda muito custoso até mesmo para quem não mora junto com a chata de uma mulher, porque conseguiu se livrar deste problema antes do coronavírus. Ela aparece toda semana, entrega a criança e sai andando, e nem pra ficar e trocar uma fralda, dar uma força, botar pra dormir. Fica tudo na mão do homem, obrigado a cuidar sozinho do próprio filho.

Certos estão aqueles que, pela bênção de Deus, moram em outra cidade, estado ou país. Assim basta dar um telefonema semanal, e se não quiser ligar também tudo bem, porque criança esquece rápido, se ocupa com videogame, não vai nem registrar que o pai faz tempo que não aparece. E é claro que se pegar Covid tem a mãe para resolver. Mulher é para isso.

Mas e pros solteiros sem filhos nem cachorro nem parente, sem vó morando junto, sem compromissos, será que também tá complicado? Super. Primeiro que da única vez que eles tentaram chamar a empregada pra dar um jeito na casa as mulheres da família já falaram um monte e encheram o saco.

Segundo que, sem quem limpe, cozinhe e lave, sobra menos tempo para a punheta, para o Netflix e para o Zoom com os brothers. Fora que alguém tem que trabalhar nessa casa. Porque a vida não é só diversão. Não dá para eu passar duas horas no Tinder, por mais que eu queira, quando há boletos vencendo e uma chefe (tinha que ser mulher) pesando na minha.

A quarentena, disseram, está difícil mesmo é para o homem. Bom seria ter nascido mulher, que consegue tudo mais fácil na vida.

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Está liberado sentir medo https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/04/05/esta-liberado-sentir-medo/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/04/05/esta-liberado-sentir-medo/#respond Mon, 06 Apr 2020 01:02:02 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/isolamento.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=652 Não há mais certezas, tampouco a ordem como a conhecíamos antes, mas há, pela primeira vez em tempos, a liberdade para sermos vulneráveis o quanto for preciso. A observação é de Alain de Botton, escritor suíço que acredita que a crise que o mundo atravessa ao menos poupou a humanidade da pressão de estar feliz.

Os brasileiros manjam pouco de filosofia. Porque, se na teoria compreendem colocações assim tão certeiras quanto profundas, na prática o que se vê não poderia mover-se em sentido mais oposto. As redes sociais que o digam. É nelas que mora a versão mais faceira do isolamento. Lá, parece, a obrigação de ser contente não desaparece nunca.

Com uma conta bancária e duas mansões de vantagem, os endinheirados romantizam o isolamento mostrando as bolhas nos dedos da surpreendentemente divertida (e inédita) faxina (que consideram) completa. Legendam com hashtags imperativas suas fotos estendidos no extenso jardim gramado, completando o treino funcional antes de um mergulho na piscina. Assim até eu ficava em casa.

Por falar em bolha, a minha é composta de classe-médiers que enxergam na quarentena a possibilidade de mudar não só a si mesmos, mas ao mundo como um todo. Pretendem alcançar e compartilhar a iluminação espiritual por meio de lives com conteúdo tão eclético quanto tutoriais de panquecas americanas, performances dos amigos artistas, e teorias gênero-sócio-raciais sobre a estrutura dos reality shows.

Neste nosso universo peculiar, debatemos memes no Zoom, nos compadecemos da Europa, e fustigamos panela enquanto não chega o Rappi com o mercado da semana. Mas tudo, sempre, com muito bom-humor, porque não somos nem loucos de aparentar desespero.

Nos esquecemos, no entanto, que uma coisa é manter o otimismo em prol da saúde mental. Outra, bem diferente, é obrigar-se a ele, impedindo que ocasionalmente brotem os medos e questionamentos naturais de um período comparável apenas às agruras de uma guerra mundial ou à época da peste.

Algo como ser tudo bem bolar atividades lúdicas para os filhos, e ser tudo bem também sentir vontade de chorar em cima do trenzinho feito de rolos velhos de papel higiênico.

A dependência da felicidade eterna é tão grande que, quando um sujeito, todo excêntrico, expõe sua fragilidade pelas redes – e isso sem se valer do subterfúgio do relato autodepreciativo -, não nos conectamos com ele. Pulamos o post, rolamos para outro perfil. Passamos para alguém que nos lembre menos da nossa própria impermanência e vulnerabilidade.

Quantos de nós realmente estamos oferecendo algum tipo de ajuda? Do apoio emocional aos que perderam parentes, ao prato de comida para quem não tem nada na geladeira? Não cuidamos direito nem dos nossos velhos, que dirá dos velhos dos outros. E, se estamos inertes, não é falta de força, mas de compreensão da realidade.

É dela que vem a romantização do isolamento. As selfies em família com máscaras fofas combinando. A era da felicidade obrigatória, no entanto, já passou, e para sobreviver a este momento é preciso desvendar os olhos para a urgência do mundo. Dos que estão em casa sem perspectiva de trabalho ou dinheiro, dos que vão perder coisas importantes. O tempo de um bom negócio. De uma relação. A última chance de uma sonhada maternidade. Os últimos anos da vida.

Claro que é saudável usar o confinamento como uma oportunidade de reconexão com a família, para mergulhar num projeto pessoal, buscar autoconhecimento. Ninguém sugere aqui que se antecipe o luto e se espere pelo fim. O pedido é apenas pelo emprego da sobriedade que o momento pede. Se já conseguimos reconhecer a importância de ficar em casa, também seremos capazes de compreender o valor que o sentir medo tem.

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Envelheça longe daqui https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/03/27/envelheca-longe-daqui/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/03/27/envelheca-longe-daqui/#respond Fri, 27 Mar 2020 21:20:59 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/Idosa-.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=649 Em “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, o Arganaz e a protagonista estão sentados lado a lado na plateia de um tribunal. “Gostaria que você não me apertasse tanto, mal posso respirar”, reclama o mamífero, ao que Alice docilmente responde que não pode evitar. “Estou crescendo”, explica.

Arganaz avisa a amiga: “Você não tem o direito de crescer aqui”. “Não diga tolice”, repreende a menina. “Não sabe que também está crescendo?”. Indignado, ele responde: “É, mas cresço num ritmo razoável, não dessa maneira absurda”.

A atual epidemia de coronavírus no mundo é nossa Alice. Por causa de sua presença e imponência, somos obrigados a lembrar que, queiramos ou não, temos todos o mesmo destino: crescer e envelhecer. E, a depender da etapa em que estamos neste caminho, é possível que a gente se identifique mais ou menos com as dores previstas nele.

Há quem até entenda que a velhice lhe aguarda, mas imagina que seja algo distante. Outros, mais conscientes, percebem desde muito cedo que, quando menos se espera, a terceira idade bate à porta, impiedosa e democrática. Mas, à parte a equipe em que se joga, de maior ou menor negação da realidade, somos unânimes no pânico e no desgosto com o desfecho da trama.

De todo modo, estarmos sob a ameaça de uma doença que mata muito mais idosos do que crianças e adultos expôs o que de pior temos como pessoas. Somos, cada vez mais, uma sociedade obcecada com a juventude, que idolatra conceitos como a beleza, a perfeição e o vigor. Rejeitamos tudo que se opõe a eles.

E, diante de um vírus tão seletivo ao ceifar vidas, também perderam, alguns de nós, o pudor de admitir que, se pudessem, também fariam como ele: ofereceriam os velhos ao sacrifício. Respiram, aliviados, com as baixas taxas de mortalidade daqueles abaixo dos 50, e propõem sugestões esdrúxulas de funcionamento do mundo, travestindo riscos de cuidados.

Em entrevista ao caderno de saúde deste jornal, a antropóloga e também colunista da Folha Mirian Goldenberg explica que, em suas pesquisas com nonagenários, escuta frequentemente a queixa de que, se antes da pandemia eles já se sentiam descartáveis, agora a percepção é de uma morte simbólica. Até porque, muitos deles têm plena consciência do desprezo evidenciado pela doença.

Ele está lá, sublinhado na fala de empresários gananciosos, eles próprios à imagem e semelhança dos “velhinhos” a quem ofendem ao sugerir que, ah vá, tudo bem que morram se o país e os jovens não pararem. Passassem, como Alice, através do espelho, veriam do outro lado a aparência com a qual tanto se enojam, e, mais que as rugas evidentes, o ridículo de quem tenta a qualquer custo camuflar o que todo mundo vê.

Está, sobretudo, emoldurado pela boca infecta daquele que, em vez de pouco ou nada fazer, deveria desempenhar o papel de líder maior de uma nação que, até 2060, estima ter 32% de sua população na faixa acima dos 60 anos – a mesma que ele, sem qualquer honra ou histórico notável, já ocupa.

É um “Cortem-lhe a cabeça” que se ouve quando a decisão superior de um governo, impulsionada pela pressão dos empresários que se acham muito jovens, ordena que se encerre a quarentena. Isolamento, este, que tem por objetivo principal resguardar e tratar de maneira digna os futuros doentes (doentes velhos, é claro, são sempre eles que atrapalham).

Na trama de Lewis Carroll, é justamente mirando o Arganaz que a Rainha de Copas aplica seu bordão pela última vez, antes que o livro termine. Aquele que reclamava do curso natural da vida, que negava à protagonista o direito de cumprir com seu ciclo humano, acaba na fila real para ter a cabeça cortada.

Importante lembrar que o Arganaz é o menor personagem de “Alice” – em tamanho, e em relevância. Porque é assim que roedores preguiçosos tendem a entrar para a história.

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Manhês em quarentena https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/03/17/manhes-em-quarentena/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/03/17/manhes-em-quarentena/#respond Tue, 17 Mar 2020 16:53:00 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/isolamento-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=634 Os números do coronavírus são impressionantes, mas mais impressionante mesmo é o número de vezes que meu filho já falou a palavra “mãe” na manhã de hoje. Estamos no primeiro dia de isolamento – ontem, ele foi à escola apenas para buscar materiais e orientações sobre o ensino à distância. Surpreendente, mas não encontrei até agora entre os papeis na mochila algum que me dissesse a verdade: que este vai ser um período infernal.

O portal virtual do colégio tenta de algum modo reproduzir o que aconteceria em sala de aula, não estivesse o mundo seguindo um roteiro clássico de filme com o Morgan Freeman. Mas faltam os amigos, o clima da classe, e falta, especialmente, a professora. O que dizer dessa mulher que eu mal conheço e já amo?

A única vez em que meu filho não usou o pronome “mãe” para evocar minha atenção foi quando trocou meu nome pelo dela. “Prô, me ajuda?”, pediu, confuso com a plataforma bugada e cheia de pastas de lição em branco, e confuso com a figura que, em vez de giz e canetões, empunha uma colher de pau coberta de lentilha.

Mas foi um breve deslize, lapso mental de rompimento recente. Afinal, até sexta passada era dela que ele recebia todo o auxílio, todo o carinho e suporte e cobranças necessárias a um menino de 11 anos que agora me aponta na tela do computador um exercício sobre potência em matemática, e outro do período paleolítico em história.

E eu, o que eu entendo disso tudo? Faz pelo menos 25 anos que tive essas aulas no colégio, e não faço ideia de por onde começar a orientá-lo. E, ainda que soubesse o caminho, ainda desconheceria a fórmula mágica que ensina mães em home office a coordenar demandas do trabalho com as da prole.

Uma amiga produtora de TV pergunta no grupo das meninas se alguma de nós topa gravar programa que vai mostrar atividades lúdicas boladas pelas famílias para o período de quarentena. Outra amiga responde que ela topa, sim, e que as atividades lúdicas às quais ela vai submeter os filhos envolvem faxina e arrumação de armários.

Porque é isso, a rotina não para. O chefe não vai perdoar minhas entregas (e é bom que não perdoe mesmo, pelamor, precisamos todos mais que nunca nos manter empregados), a casa não vai perdoar mais que dois dias sem vassoura e pano, há que se lavar roupa, há que se fazer comida, a cachorra ainda tem que sair para passear, ainda que seja de máscara.

Paro três minutos para conferir o WhatsApp, ouço os áudios de colegas da mesma classe enfrentando problemas semelhantes e pedindo socorro, uma mãe se solidariza, quem quer o DVD do “Croods” emprestado, e sorrateira me perco no meme que alguém mandou noutra janela, a imagem de uma mulher em frente ao computador com três crianças que jazem amarradas no tapete logo atrás. Eu rio.

Só que nem bem começo a achar graça e cogito compartilhar no grupo de mães do bairro, e sou convocada para ajudar a fazer rodar o vídeo sobre constelações da aula de ciências. Está travado. Eu também.

Levei três horas para conseguir terminar de escrever esse texto. Só nesta frase, foram 16 minutos. Contabilizei 212 “mães”, 74 “manhê”, e isso que nem todas as falas da criança foram testadas para o vírus do vício verbal.

A cebola da lentilha queimou há pouco, mais ou menos ao mesmo tempo em que as gatas derrubaram o varal em cima da terra dos vasos. Juro que, se não fosse total grupo de risco, era na casa da minha mãe que eu ia cumprir minha parcela da quarentena. Ô, mãe, me ajuda?

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