Do Meu Folhetim https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br Meias verdades sempre à meia luz Thu, 30 Sep 2021 12:29:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 No fundo do poço https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/11/no-fundo-do-poco/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/12/11/no-fundo-do-poco/#respond Fri, 11 Dec 2020 10:00:27 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/elevador-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=884 Democrática que é, a psicanálise explica todo mundo. Comigo não ia ser diferente. Está lá nos livros, não sei exatamente se foi Freud, Winnicott ou Jung quem escreveu, não importa, mas a literatura clínica dá conta, de maneira muito clara, de mostrar porque é que a gente é assim desse jeito.

Na viagem para o Uruguai, por exemplo, quando não tinha uma vírgula fora do lugar, o voo saindo no horário, e eu nem pagando pelas passagens estava, não havia motivo algum para entrar em pânico quando as portas do avião finalmente se fecharam e a aeromoça anunciou para breve a decolagem.

Mas eu surtei e achei que fosse morrer sufocada.

Acontece geralmente se eu começo a prestar atenção demais no lugar em que pode ser que o ar acabe. Prevendo que vou entrar em pânico e que, como todo ser humano fora de controle, consumirei mais oxigênio, sei que – não falei? – o que havia de disponível para todo mundo respirar vai ficar sensivelmente mais escasso.

Pode ser na máquina de ressonância magnética. Em um banheiro químico. Salas de espera muito pequenas e sem janela para a rua. No Airbus, no Boeing ou no Fokker 100. E, principalmente, no elevador.

Eu não suporto elevadores. Se meu destino é abaixo do sexto andar, adoto as escadas com felicidade e vigor muscular nas coxas. Se preciso ir mais pra cima, entro na cabine tentando fingir que sou uma pessoa normal, sem neuroses descritas pela psicanálise – falhar invariavelmente acho que faz parte do quadro.

Tem um nome, isso. Chama claustrofobia. De acordo com os mestres da mente, é um mal que acomete quem tem problemas para dimensionar o próprio espaço pessoal. Pelo que entendi em estudos pregressos, e na busca que acabei de fazer aqui no Google, são (somos) pessoas que não entendem direito onde acabam e onde o outro começa.

Agora tira a gente do elevador e bota num apartamento na quarentena. Eu suporto bem a minha casa, não costumo surtar e achar que vou morrer sufocada aqui dentro. Mas, se sou um ser com problemas para perceber onde acaba o meu cotovelo e onde começa o cotovelo do outro, o confinamento em família não parece promissor.

Esse quarto aqui é o meu ou é o da criança? Essa almofadinha no chão é minha ou é da gata? Foi meu marido quem mijou na tampa da privada ou fui eu, com a minha inveja do falo, que esqueci para trás essas gotinhas?

A dentista fica no oitavo andar de um prédio perto da Avenida Paulista. O elevador é daquele tipo moderno, com espelho na parede do fundo, e portas sem qualquer tipo de ventilação – o ar condicionado de última geração instalado no teto dá conta do recado. Uma caixa metálica completamente vedada, puxada por cabos de aço, com um poço de 2,5 metros ao fundo.

Bastante atraente. Pela primeira vez na vida, considero como seria ficar presa no elevador sem entrar em pânico. Talvez meu filho precise de mim. Essa semana é de fechamento do bimestre e estudo pra provas. Meu marido nunca lembra onde a gente guardou a coleira da cachorra depois do último passeio. Será que eles se viram bem sozinhos em casa?

Antigamente, eu imaginava que os adultos gostavam de ficar sozinhos em casa porque aproveitavam para cozinhar pelados, tirar meleca à vontade, beber todo o estoque de vinho, assistir filme pornô em um telão na sala. Cresci, e descobri que é tudo isso mesmo que eles fazem.

Dentro da bolsa, ainda no térreo, vejo que veio comigo o último exemplar da revista piauí. Ela é boa porque costuma ter reportagens de 90 páginas de extensão cada. Também trouxe uma maçã e água. Calculo que dá para passar uma semana com conforto aqui dentro.

Aproveito enquanto ainda há sinal de celular no elevador, e abro de novo a barra de pesquisa. Acho que é uma boa hora para saber se Freud, Winnicott ou Jung escreveram alguma coisa sobre métodos para curar fobias na marra.

]]>
0
Pesadelo de mulher https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/25/pesadelo-de-mulher/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/25/pesadelo-de-mulher/#respond Tue, 25 Aug 2020 15:30:34 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/sonho-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=780 Cientistas de três grandes universidades brasileiras estão pesquisando os sonhos na quarentena. Parece que a gente tem sonhado mais, de forma mais vívida, e também tido mais pesadelos. Ninguém me perguntou nada, ainda, mas asseguro que eu poderia colaborar bastante com os estudos. Minhas noites têm sido confusas.

De ontem para hoje até que não foi tão mal. Uma espécie de fazenda, mais de 400 pessoas reunidas para um almoço beneficente. A aniversariante faz discurso de agradecimento, e avisa que o ravióli com queijo de cabra que era de graça sairá por um preço amigável. Minha cachorra sumia na multidão, minha gata caía morta de cima do muro. Um sonho tranquilo, na média.

Há algumas semanas, no entanto, o pior de todos. Vinha o aviso de que minha relação tinha chegado ao fim, o que já parecia lamentável o suficiente, poxa, justo agora, mas, enfim, sobrevive-se. Mas porque não era um pesadelo qualquer, e sim um pesadelo pandêmico, a parte que optava pelo término agia com crueldade.

Em resumo, eu era apresentada, a título de tortura, à minha substituta, alguém muito melhor que eu porque mais esperta, jovem e bonita. Ela tinha sorriso de comercial de pasta de dentes. Acho que cheirava a banho tomado, mas talvez essa parte eu tenha inventado já acordada – neurose é neurose em vigília ou no sono.

Ele e ela riam, abraçados. Contavam que tinham se conhecido naquela noite em que eu fui viajar a trabalho, em janeiro, e ele, que havia dito que dormiria mais cedo que o usual, foi ao bar com os amigos. Foi tesão à primeira vista, garantiam os incisivos e molares muito brancos dela. Dois beijos de boca bem molhada. Acordei chorando.

A última vez que isso tinha acontecido, de amanhecer em prantos, foi porque meu filho tinha morrido despencando sem querer da janela do sexto andar – sou mesmo um prato cheio para pesquisadores de sonhos. Preocupado com uma nova morte imaginária na família, meu namorado de pronto se dispôs a novamente me acudir, abrindo os braços para o consolo.

Agora me explica como é que eu vou me jogar no abraço de um adúltero. A ação mais prudente que ele poderia ter neste momento era a de arrancar o próprio pau com faca cega, arremessar descarga abaixo, e se ajoelhar aos meus pés implorando perdão eterno. Só que ele continuava deitado, de pijama, com o pau preso ao lugar de sempre, me olhando confuso e ainda meio sonolento. Não tem como argumentar com um homem desses.

Foram infinitas horas do dia até eu resolver que já dava para ao menos responder às perguntas de ordem prática que ele fazia. Não, eu não quero sobremesa. Não, sua guitarra não está me atrapalhando. Sim, eu desejo que você morra só porque me traiu com uma garota. Oi?

Eu agora vou explicar aqui ao leitor, ao Christian Dunker, e aos amigos dele de pesquisa nas faculdades aquilo que já expliquei ao meu atônito namorado naquele fim de tarde de quarentena. Óbvio que a culpa daquilo que meu inconsciente produz enquanto eu durmo não é de ninguém exceto minha, e que um parceiro tão bacana não merecia que eu passasse um dia inteiro de mal e fazendo cara de vômito toda vez que ele me dirigia a palavra. Aconteceu, ops, me desculpa.

Mas, mais importante que explicar algo que todo mundo já sabe é esclarecer o que talvez ainda passe despercebido: mulher nenhuma sai ilesa de um relacionamento merda. E as consequências da passagem de um pulha pela nossa vida muitas vezes seguem ecoando por anos e anos – e relações e relações – a fio.

É trauma que chama, USP, UFRGS e UFMG?

Eu, por exemplo, além de um marido que me traía e humilhava sistematicamente por uma década, também já tive um namorado que, por dois anos, aproveitava qualquer segundo em que não estivéssemos no mesmo cômodo da casa para assistir pornografia e se masturbar. Não é tarefa das mais fáceis entender depois que nem todos os homens agirão desta maneira.

Claro que não somos isentas da responsabilidade de ativamente buscar ajuda para superar o passado. O vitimismo é tão quentinho que a gente pode esquecer que dá para ir embora dele. Mas às vezes o abalo é grande, e as coisas não se resolvem de uma hora para a outra.

Enquanto homens se reerguem de relações tóxicas com mais facilidade porque são educados a não condicionar a autoestima à opinião alheia, e porque desfrutam de um sistema que ensina que mulheres são apenas números, facilmente descartáveis, nós penamos em uma batalha dupla.

Que começa pela luta para garantir a sobrevivência física, desde o dia um ameaçada, e entender qual o lugar que ocupamos no mundo por direito, e segue pela guerra da construção de uma identidade, de poder se orgulhar dela, e aprender a defendê-la a qualquer custo.

Parece fácil? É por isso que a gente sonha.

]]>
0
Morrer amanhã https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/10/morrer-amanha/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/10/morrer-amanha/#respond Mon, 10 Aug 2020 10:00:54 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/cova-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=763 Uma grávida de 34 anos deu à luz já inconsciente, e morreu sem ver a filha recém-nascida. Um homem de 37 tinha se mudado havia duas semanas para morar com a namorada, e morreu antes mesmo de desembalar todas as caixas. Outro, de 52, andava ansioso com a formatura do filho na faculdade em dezembro – não deu tempo de esperar.

Se eu morresse amanhã, morria triste de deixar tanta coisa pra trás. Nenhuma hora é boa de se morrer, claro, mas essa agora, justo amanhã, ia não só levar embora comigo as memórias e a expectativa de viver por muito tempo, mas principalmente largaria pelo meio muitos planos importantes.

Quer dizer, eu acho que parece importante ansiar pela florada anual da rosa do deserto que botei perto da janela, para pegar bastante sol. Enfrentei até infestação de pulgões. Eliminei os ovos com cotonetes todo dia de manhã, limpei as folhas com pano. Reguei e adubei a terra. Morrer antes de ver o primeiro botão não parece simpático.

Tem o romance que finalmente comecei a escrever, e que eu não gostaria de partir antes de terminar. Coisa mais sem graça, almejar a vida toda publicar um livro, e deixá-lo escrito pela metade, com os personagens sem saber pra onde ir. Infeliz do escritor que morre antes de bater a página 100.

Morrendo amanhã, não dava tempo de juntar dinheiro para deixar para o meu filho. Ia ficar faltando ajudá-lo na escola nova, no vestibular, vê-lo escolher uma profissão. Não ia dar para saber se ele foi feliz ou não. Nem se comeu direitinho o café da manhã de terça-feira.

Meus pais chorariam o adeus imprevisto. Um filho morrer antes da gente nunca faz parte dos planos. Mas ir embora assim de repente pioraria tudo, eu acho, porque já há meses que não nos vemos. E não ia sobrar ninguém para cuidar deles na velhice. E aquela viagem juntos até algum país distante e bonito não ia mais poder contar comigo.

Se eu morresse amanhã, eu não conheceria em janeiro o bebê da minha amiga. Não saberia se vai mesmo haver ou não um Carnaval. Se vai ter vacina, em que data reabrem as praias, quem vai descobrir a cura. Ficaria eternamente em dúvida sobre quantas cientistas salvarão o mundo dessa vez e sempre.

Era tão melhor não morrer amanhã para esperar e ver quando e de que jeito o presidente cai, se ele pede perdão, se lamenta as mortes, as injúrias, os pés pelas mãos. Ver se quem votou nele admite a culpa, compartilha do crime, sente remorso. Desvendar o modo como sumirão para sempre os desembargadores, os engenheiros formados, os racistas de condomínio.

Ainda faltam três anos para acabar minha segunda faculdade. Duas vidas para ler tudo que eu quero. Uma boa década para dormir no peito do homem que eu amo, outra para conhecer de verdade as mulheres que me cercam. Morrer amanhã não vai me ajudar em nada.

Os planos de mais de 100 mil pessoas só parecem desimportantes porque elas são anônimas. Dê uma cara a elas, e uma lista de sonhos publicada no jornal, e morrer amanhã deixa de ser normal para se tornar, enfim, inaceitável.

]]>
0
Todo mundo dá uma escapadinha https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/03/todo-mundo-da-uma-escapadinha/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/08/03/todo-mundo-da-uma-escapadinha/#respond Mon, 03 Aug 2020 10:00:15 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/presídio-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=756 Vander quase não reconheceu o amigo por causa da barriga imensa, mas era definitivamente Paulo Sérgio atrás da máscara com desenho de notinhas musicais, o jeito de passar a mão pela careca não deixava dúvida. Parece maior, a careca, aliás, mais espaçosa. Será que eu também fiquei mais feio na quarentena?

– Faaaaala, meu querido, que saudade! – diz batendo de levinho o cotovelo no cotovelo do brother, já se vão quase cinco meses do último encontro.

– Tá fazendo o quê aqui pela área?

– Vim pegar um negocinho no mercado, faltou ingrediente pro macarrão. Meus sogros vão almoçar com a gente hoje, daí já viu, não pode cozinhar meia boca, diga aí.

– Mas vocês estão recebendo gente em casa, ô Vander?

– Não, claro que não. São só meus sogros.

– Seus sogros são gente, cara.

– Ah, mas aí é diferente.

– Diferente?

– Claro, pô. Não tô dando festa. É só um almoço de domingo.

– Vander! Oi, Vander! – uma voz de mulher grita feliz do outro lado da rua, salvando Vander de ter que dar explicações.

– Olha a Catarina vindo.

A mulher do amigo, animada com a perspectiva de socializar com alguém conhecido depois de tanto tempo de clausura, atravessa apressada quando o sinal fecha, e vem balançando a mão para cima, como quem dá tchau, e espremendo os olhos, como quem é atingido pelo sol. Talvez esteja sorrindo debaixo da máscara, chuta Vander.

– Faaaaala, Cata! – diz Vander, tão feliz com a troca de assunto que quase abraça Catarina.

– Bom te ver, Vandão. Como vão as coisas? Tava falando de você com o Paulo Sérgio esses dias mesmo, olha a coincidência.

– O Vander tá dando almoço público lá na vila hoje, amor, tá sabendo?

– Mentira do Pê Ésse, Catarina.

– Mentira nada. Tá recebendo os sogros prum macarrão cheio de firula, ainda por cima. Acha que rico senta de máscara à mesa, ainda mais se for pra comer ravióli de vitela?

Antes que pudesse ser salvo por Catarina de algum modo, se é que ela tinha interesse em ajudá-lo, e também antes que botasse em prática o desejo de voar no pescoço de Paulo Sergio, por ser enxerido e mala, Vander é interrompido pelo Toyota que buzina frenético na frente do mercado.

Tia Ema e Tio Zeca, pais do amigo de infância Pê Ésse, praticamente gente da família, viram Vander crescer junto com o filho desde os tempos do colégio, e agora estacionavam o carro para se juntar a pé ao grupo na calçada.

– Se tivesse combinado não dava assim tão certo, não é não? Todo mundo junto em reunião – se admira, feliz, Tio Zeca.

– Olha que de repente o Vander até combinou, vai saber, ele anda todo sociável – provoca Paulo Sérgio.

– O Pê Ésse ficou gordo e careca na quarentena e agora deu pra implicar comigo, tio, tá vendo isso?

Todos, menos Paulo Sergio, riem alto e juntos, enquanto Tia Ema quer saber melhor que história é essa de sociável. Tio Zeca é mais rápido, e, botando a mão no ombro de Vander, porque quase parente pode ser dar a esse tipo de liberdade mesmo no apocalipse, pergunta se o quase sobrinho ficou sabendo do vexame ao qual o amigo gordo e careca de Vander expôs a família toda na semana passada.

– Chamou a faxineira, Vanderlei, a faxineira!

– Não é possível! Faxineira é gente, cara, não foi assim que você me disse?

– Se foder, Vander. A casa tava imunda. A Catarina grávida não pode fazer muita coisa, sobra tudo pra eu limpar sozinho. E eu não aguentava mais pendurar roupa, cara.

Tio Zeca desanda a tossir num ataque de riso, orgulhoso por ter sido ele a instaurar o caos que agora controla o grupo, e o que antes parecia ser uma mão de apoio em prol da restauração breve do marido engasgado se revela na verdade, aos olhos dos outros, um beliscão de censura nas costas de Zeca.

– Aproveita e conta pra eles do bar, José Carlos.

– Bar, que bar? – se interessa Catarina.

Parece que, quando foi sair para passear com o cachorro, há algumas semanas, Tio Zeca tomou as providências para que o surpreendente acaso acontecesse, e os dois melhores amigos surgissem na mesma praça, na mesma hora, debaixo da mesma árvore, para também passear com as mascotes da família.

Fajutamente surpreendidos, fingindo espanto com louvável dedicação, rumaram os três – com os cachorros álibi – para celebrar a manobra do destino, que mui generosamente havia botado todos na rua, durante uma pandemia, em condições idênticas.

Não contavam era com o garçom, o Freitas, que, puto com a reabertura da firma, não se conformou em ver os três mais antigos clientes se acomodando à mesa perto da janela, eles, que Freitas julgava serem homens tão sensatos, agora brindando com cerveja a imprudência coletiva.

Passou a mão no telefone do balcão e me ligou, conta Tia Ema para o grupo estupefato.

– Perguntou se eu queria aproveitar a passagem do marido para encomendar os bolinhos de bacalhau que eu tanto gosto. O tio foi dedado assim na cara dura. Chegou em casa com o rabo mais encolhido que o do Peteca.

Paulo Sérgio achou ter visto um rubor excessivo nas bochechas de Vander, ainda mais flagrantes que o desgosto das sobrancelhas, e só por isso preferiu não revidar a encheção de saco sofrida desde que deu oi ao amigo meia hora atrás na porta do Pão de Açúcar. Parece que todo mundo dá suas escapadinhas, pensou, e quis cochichar com Catarina.

A assembleia extraordinária se desfez em um misto de choque e falta de assunto. Voltariam todos a se encontrar novamente, de caso marcado, após quatro tentativas e muito agendamento, só dali a dois anos, quando chegaram ao fim a quarentena, o vírus, as máscaras, e a indignação seletiva.

 

 

]]>
0
Você vai amar seu filho quando ele crescer? https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/07/22/voce-vai-amar-seu-filho-quando-ele-crescer/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/07/22/voce-vai-amar-seu-filho-quando-ele-crescer/#respond Wed, 22 Jul 2020 18:47:33 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/fita-métrica-2-320x213.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=749 Virei motivo de chacota em casa porque respondi ao meu filho que um cubo tem quatro lados. Era uma segunda-feira, a tarde bombando de trabalho, telefone a mil, matéria para entregar, e ele enfia o caderno de matemática na frente do computador, com a dúvida à queima-roupa. Não prestei atenção, errei feio, passei vergonha.

Ter virado professora do Fundamental 2, junto com minha atuação como jornalista, foi uma guinada inesperada na carreira. Não estava nos meus planos ter que lidar com frações enquanto faço uma entrevista, por exemplo, ou relembrar os tipos de relevos do solo na mesma hora em que esfrego Bombril no fundo da panela de pressão.

Chama-se circunstância, e que sorte o acesso às aulas online enquanto tem gente com a vida escolar suspensa, sem dúvida. Mas põe para pensar em questões que vão muito além da funcionalidade do homeschooling, da sobrecarga feminina e dos malefícios da pandemia. Roubar dois lados do cubo me expôs à por vezes esquecida consciência de que filho é filho para sempre.

Todo mundo sabe que eles vivem por anos, glória a Deus, a ideia sempre foi essa, de que só morram quando ficarem insuspeitadamente muito velhinhos, mas é raro que se pare para pensar sobre o quanto o grau de dificuldade para criá-los só aumenta com o passar do tempo.

O dia do cubo capenga se transformou em piada porque as consequências foram só mesmo a desonra temporária de minhas habilidades matemáticas, mas outras manhãs e tardes bem mais complicadas têm sido frequentes na rotina da família presa em casa, de quarentena.

Por saco cheio do isolamento, ou por total ausência de gosto pelo assunto, ou até mesmo – admite-se, sim, essa possibilidade – uma latente falta de talento para os estudos, o pré-adolescente que botei no mundo vem progressivamente se enrolando nas obrigações da escola a distância. E, enrolado, deu para trapacear.

Em meio às lições esquecidas, as aulas puladas, as provas não dadas, e tudo entre muitas e muitas aspas aqui, nem os hipotéticos filhos do Dalai Lama passariam sem levar bronca dos pais. À beira dos 12 anos, o delinquente estudantil em formação é confrontado com veemência, e em nada lembra o bebê amável cuja maior proposta de desafio era não saber dividir os brinquedos com os outros.

O Facebook outro dia mostrou uma postagem em que uma mulher questionava às amigas se a maternidade trazia, por si só, um acalmar dos desejos e dos ânimos. Não traz. Ser mãe e pai complica conforme crescem os filhos, as diferenças, as identidades.

A vontade de sair sem volta para comprar cigarros, à qual obviamente a sanidade não permite sucumbir, é proporcional às implicações do mau comportamento dos filhos. Combinadas ao elemento frequente da ausência paterna, transforma as mães em criaturas não só exaustas, mas assustadas com a progressão de tudo. Onde é que isso vai parar?

A escola – online, presencial, universal, interplanetária, o que seja – deveria contemplar, em conjunto com as famílias, uma educação para a paternidade e a maternidade. Levar aos jovens a informação de que ter ou não filhos é talvez a decisão mais importante que vão tomar em toda a vida, ainda mais séria que a escolha da profissão no vestibular.

Lembrá-los, e a todos os casais que sonham com uma criancinha adorável correndo pela casa, que a infância passa, e é seguida pela complexa adolescência, pela juventude, a fase adulta, e que a necessidade que os filhos têm dos pais não desaparece com o tempo. Pelo contrário, só aumenta.

Não vai mais ser só segurar a mão para evitar a queda, acordar de noite para dar leite, enxugar as lágrimas do susto, dar abraços fortes na doença. Agora que seu bebê cresceu serão exigidos de você retidão nos exemplos, firmeza nas cobranças, coerência nas ações e sentimentos – e essa é a combinação mais difícil do mundo.

Costumo responder às amigas que perguntam se devem ou não ter filhos que nesta dúvida já está contida a resposta: não. Você vai amar a criança quando ela crescer? Criar filhos é para quem tem certeza de que quer o compromisso de ser desafiado constante e gradualmente até o fim da vida, sem hesitação.

Porque ser pai e mãe de crianças fofas é fácil, mas estar disponível para adolescentes rebeldes e adultos com problemas de gente grande é uma jornada bem mais complexa. E o amor a um filho na plenitude do projeto só é possível quando a gente lembra que, junto com seus corpos, crescem também suas exigências.

]]>
0
Você esqueceu o seu carrinho https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/07/20/voce-esqueceu-o-seu-carrinho/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/07/20/voce-esqueceu-o-seu-carrinho/#respond Mon, 20 Jul 2020 10:00:40 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/carrinho.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=746 Descobri nesta quarentena que há dezenas de coisas das quais eu não preciso para ser feliz. Variadas peças de roupa, por exemplo, bijuterias, objetos de decoração, lançamentos eletrônicos. Uma porção de artigos supérfluos, que têm em comum o poder de drenar dinheiro da minha conta bancária e o fato de estarem todos, sem exceção, dispostos nos meus carrinhos virtuais à espera apenas do meu próximo clique.

Bom dia, meu nome é Marcella, e sou viciada em quase comprar. Porque enquanto há as pessoas cuja questão é tentar preencher um vazio existencial adquirindo coisas, em um outro canto escuro estamos nós, os psicopatas, certamente também cheios de buracos na alma, mas que não temos sequer a coragem de apertar o botão que diz “fechar pedido”.

Somos uns covardes. Uns voyeurs de compra dos outros. Morremos de prazer ao ver alguém em casa concluindo uma compra, seja de um ínfimo Tylenol no Rappi ou de uma TV nova para a sala. Possível fosse, ainda bisbilhotaríamos os vizinhos da frente com binóculos, gozando com o mouse alheio na aba do Carrefour.

A gente ama quando chega um pacotinho na portaria, ainda que não seja nosso. E nem precisa ser de um conhecido, que more no mesmo apartamento. Se for de colega de andar já basta. A caminhonete do Sedex encosta, bate aquele arrepio na espinha, e a orelha cola na porta pra tentar ouvir o estilete rasgando a etiqueta do Mercado Livre.

Na arte de encher carrinhos fictícios, há um encantamento todo especial na parte em que, depois de escolher 20 itens, dá pra ver o subtotal. Quando é uma loja cara, a graça é arriscar a surpresa de um valor abaixo de um salário mínimo. Já se for um lugar barato, o frisson vem de pensar que dá até pra pagar no boleto, de tão em conta que ficou.

No geral, fazer não-compras na internet envolve um não-pagamento no cartão. Óbvio. Se não há dinheiro de verdade, não há dinheiro para brincar. Daí é selecionar a opção do Master ou do Visa, e simular parcelamentos. Bom é quando o site só deixa dividir em três vezes, porque a culpa de não finalizar fica sendo da falta de gentileza do crediário.

Antigamente havia o truque de encher o carrinho, preencher o cadastro, depois fechar a aba e manter o silêncio. Em poucas horas, um e-mail da loja chegava para dizer que, olha que surpresa, você havia esquecido suas compras no caixa. Nessa hora, a gerência oferecia um cupom de desconto, porque vale tudo na prevenção do abandono.

Hoje, depois que nós psicopatas largadores de sacolinhas banalizamos essa estratégia, ninguém oferece mais nada. Ainda chega a mensagem, mas só mesmo para nos expor à vergonha e à verdade. Oi, Marcella, vimos que você não concluiu sua compra, houve algum problema na sua experiência ou é só falta de dinheiro mesmo?

Quando trabalhei escrevendo conteúdo para o varejo, vi que há cursos – hoje em dia deve haver até lives – sobre a grande epidemia dos carrinhos largados para trás. É um problema para o comércio, de verdade. E eu, que detesto colaborar para qualquer parcela da desgraça do universo, peço perdão por ser desse jeitinho quebrada e sem coragem. Mas é mais forte que eu.

Digo em minha defesa que durante a quarentena efetuei muito mais compras virtuais do que esperava fazer quando o isolamento começou. Achava que agora era a hora de realmente não gastar dinheiro, mas acabou que eu precisava demais de umas canetas marca-texto, dum lenço para o cabelo, uma luz de LED para ler na cama e de caneleiras para malhar as coxas moles.

O hábito começou a dar sinais de neurose quando fiz uma compra tão automática que botei a numeração da rua errada, e agora minha espuma de limpeza facial à base de alecrim está lavando a cara de outrem que não eu, a psicopata do carrinho. E veja, por exemplo, uma amiga minha, para quem contei que estava escrevendo este texto, porque sei que ela também compartilha do mesmo vício.

Ela revela num áudio que agora elevou a prática a um novo patamar. Enche o carrinho, efetua o pagamento (ousada!), recebe a encomenda (ela, sim, sabe preencher corretamente o campo “endereço”), experimenta tudo e depois devolve. Aproveitou o saldão de uma famosa loja de roupas para provar a coleção inteira, das meias aos suéteres.

O marido anda preocupado, perguntou se não é o caso de intensificar a análise para duas vezes na semana. Resolvo que é hora de compartilhar com meu namorado que eu talvez precise de ajuda. Ele me escuta atentamente, e termina me perguntando se eu acho que dá pra fazer isso com uma guitarra que ele quer muito tocar só uma vez, gravar, e mandar de volta para a loja.

 

 

 

 

 

 

]]>
0
Uma praga pessoal e intransferível https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/06/29/uma-praga-pessoal-e-intransferivel/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/06/29/uma-praga-pessoal-e-intransferivel/#respond Mon, 29 Jun 2020 10:00:51 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/nuvemgafanhoto.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=732 Depois de o celular quase cair na tigela cheia de cenoura batida com óleo e açúcar, dona Lourdes agora procurava o botão que põe a ligação no viva-voz. Não era a primeira vez que o filho sugeria que ela não equilibrasse o telefone entre a cara e o ombro, mas com dona Lourdes, teimosa, católica entusiasmada, um pouco surda e muito apegada às tradições, as coisas levavam tempo para mudar.

Veja este bolo, por exemplo, que vai assar por 25 minutos em forno médio. Foram meses, quase um ano, até que ela se convencesse a receber em casa para um café da tarde o namorado do filho, menino bom, estudante de engenharia, e que esperou pela primeira relação firme para contar à mãe o que ele já sabia havia uma década.

Tomás gosta de garotos, dona Lourdes gosta do que é certo. Mas não adiantou chorar, fazer novena, mandar rezar missa, garantir promessa, borrifar água benta em segredo na toalha de banho do filho – mais cedo ou mais tarde, seria inevitável abrir as portas de casa e se resignar.

– Tá me ouvindo, mãe? A gente não vai mais. Esse negócio do vírus é sério, e parece que só velhinho pega.

– Mas eu não sou velhinha.

– É, mãe. E eu não posso arriscar. Vou da faculdade direto pra casa, o Caio fica lá na casa dele, e a senhora não pode mais sair na rua nem receber visita.

– O que é isso, Tomás Eduardo?! Hoje tem missa.

– Tem. Mas a senhora não vai.

– E o Caio não vem mais mesmo?

– Não. Cancela o café. Não sei quando vou poder vê-lo novamente.

Ajoelhada, de olhos fechados e espremendo uma imagem minúscula de Santa Rita na mão esquerda, Lourdes conjecturou, em silêncio, na oração da semana passada, como seria se, um dia, voltassem as pragas do Egito. Gafanhotos gigantes podiam impedir esse namoro, de uma pouca vergonha absurda, já imaginou que bênção?

Dona Lourdes agora tem certeza de que a pandemia foi mandada para salvar a ela e ao menino Tomás do calor do inferno. Resolve que é coisa pra se comemorar, e cobre de chocolate, excepcionalmente, a assadeira ainda quentinha. Acende uma vela. Pensa em espetá-la no meio do bolo feito aniversário.

No décimo dia da quarentena forçada, Tomás tenta acompanhar as aulas da faculdade transmitidas via computador, enquanto a mãe, na sala, ouve a televisão no volume máximo. Ele distingue uma outra voz conhecida, que entra no ar no lugar daquele apresentador famoso do telejornal.

– No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico daquela conhecida televisão.

Tomás vasculha a gaveta de remédios atrás de algo para enjoo, enquanto o nome de Caio pisca na tela do celular. Antes de atender e equilibrar o aparelho entre a cara e o ombro, pergunta se a mãe não acha um absurdo um pronunciamento daquele nível ser feito por um presidente. Dona Lourdes diz que gostou de quando ele citou Deus no final.

Já com a TV da sala desligada, e em busca da letra “o” no índice da agenda do telefone, Jair caminha para a cozinha do Palácio da Alvorada. Nem bem ouve o bipe da ligação chamando, dona Olinda atende de bate-pronto.

– E então, mamãe, a senhora gostou do que eu falei?

– Achei lindo, meu filho. Parabéns.

– Gostou que eu citei Deus no final?

– Adorei.

– Essas pessoas todas que estão aí têm que entender que não adianta tentar me derrubar porque eu não caio, mãe, taoquei?

– Essas pessoas quem, meu filho?

– Essas todas que estão aí, daí, mamãe. Que inventaram essa palhaçada de vírus pra me tirar do poder.

– Mas eu vi na televisão que a doença é de verdade, Jair. Morreu um montão de gente na Itália. Na China também, falaram.

– A China nem existe, ô, mamãe, taoquei? Vê se nos Estados Unidos apareceu alguém morto.

Jair vasculha a gaveta de remédios atrás de algo para azia, depois de desligar sem dizer tchau, quase derrubando o celular ao descolá-lo da cara e do ombro. Tem certeza de que a pandemia foi mandada para enviar a ele e aos seus filhos todos para o calor do inferno. Uma praga pessoal e intransferível.

Não porque ele tenha feito algo errado, que isso nunca. Mas é que uma desgraça assim forjada e quase bíblica tem toda a cara de coisa inventada pela esquerda, que quer a todo custo vê-lo perder a faixa presidencial.

Mas Jair tem histórico de atleta, como agora todos os brasileiros sabem depois do seu brilhante pronunciamento, ele reflete, e sua principal missão como bravo militar e desportista será, daqui pra frente, lutar para desmontar esta farsa comunista gayzista, e mostrar para todo mundo que só usa máscara quem é otário.

Encontra em cima da mesa algo coberto por um pano de prato ainda úmido. Aí sim, pensa em voz alta, a Michele preparou bolo de cenoura. Resolve que, mesmo atolado em problemas, é coisa pra se comemorar, e lambe o chocolate, como de costume, da assadeira ainda quentinha.

Vai deitar otimista. Esta qüestão parece definitivamente resolvida.

]]>
0
A quarentena é mais difícil para o homem https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/06/19/a-quarentena-e-mais-dificil-para-o-homem/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/06/19/a-quarentena-e-mais-dificil-para-o-homem/#respond Fri, 19 Jun 2020 18:52:13 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/homem.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=725 Tem gente perdendo parente, tem desempregado, tem morador da favela, e dono de negócio falindo, mas ouvi dizer que a quarentena está difícil mesmo é para o homem. Fatores intrinsecamente ligados à masculinidade encontram-se, dizem, acima de todas as dificuldades e agravantes neste severo período que o mundo enfrenta. Estou consternada.

Até os políticos já se deram conta disso e vêm tentando nos avisar. Enquanto o presidente da República entende que salões de beleza são essenciais e autoriza seu funcionamento em meio a uma pandemia que já matou quase 50 mil, um vereador no Mato Grosso do Sul alerta para o óbvio: “Imagina a mulher sem fazer sobrancelha, cabelo, unha, não tem marido nesse mundo que vai aguentar”.

Deve estar complicado mesmo. Acordar todo dia ao lado de uma mina que arruma a casa, arruma o almoço, arruma os filhos, arruma trampo, arruma dinheiro, arruma tempo, mas não se arruma, ah, tenha dó. Realmente não há meios pra que um casamento sobreviva.

Nestas condições, falaram, fica tão difícil ser um cara na quarentena que restam poucas alternativas além de agredir a esposa. Claro, são todos os homens aqui pessoas de bem e respeitosas, não erguem a mão nem pra uma flor, mas agressão verbal todo mundo sabe que existe desde que o mundo é mundo, e se não deixa marca é porque não feriu.

Gorda. Feia. Descuidada.

Isso fora o problema que as mulheres criaram ao ficar em casa o tempo inteiro, acabando com o espaço para as necessidades vitais masculinas. Não há quem sobreviva sem poder bater punheta, por exemplo. E auxílio emergencial pra isso o governo não inventa. Sumir com a namorada de casa um pouco. Porque transar é legal, mas gozar sozinho olhando pra tela do computador não tem preço.

E quem tem filho, então? Coitado. Vocês não imaginam o tamanho da dificuldade. Agora, com a quarentena, é preciso fazer tudo que antes alguém – não sei quem exatamente – fazia. É exaustivo ter que ajudar a mulher em tudo. Ajudar. Fazer metade, ou quase isso. Onde já se viu ter que trabalhar e ainda decidir o que as crianças vão comer no jantar.

Ser homem e pai na quarentena anda muito custoso até mesmo para quem não mora junto com a chata de uma mulher, porque conseguiu se livrar deste problema antes do coronavírus. Ela aparece toda semana, entrega a criança e sai andando, e nem pra ficar e trocar uma fralda, dar uma força, botar pra dormir. Fica tudo na mão do homem, obrigado a cuidar sozinho do próprio filho.

Certos estão aqueles que, pela bênção de Deus, moram em outra cidade, estado ou país. Assim basta dar um telefonema semanal, e se não quiser ligar também tudo bem, porque criança esquece rápido, se ocupa com videogame, não vai nem registrar que o pai faz tempo que não aparece. E é claro que se pegar Covid tem a mãe para resolver. Mulher é para isso.

Mas e pros solteiros sem filhos nem cachorro nem parente, sem vó morando junto, sem compromissos, será que também tá complicado? Super. Primeiro que da única vez que eles tentaram chamar a empregada pra dar um jeito na casa as mulheres da família já falaram um monte e encheram o saco.

Segundo que, sem quem limpe, cozinhe e lave, sobra menos tempo para a punheta, para o Netflix e para o Zoom com os brothers. Fora que alguém tem que trabalhar nessa casa. Porque a vida não é só diversão. Não dá para eu passar duas horas no Tinder, por mais que eu queira, quando há boletos vencendo e uma chefe (tinha que ser mulher) pesando na minha.

A quarentena, disseram, está difícil mesmo é para o homem. Bom seria ter nascido mulher, que consegue tudo mais fácil na vida.

]]>
0
Apelidinhos e vozinhas https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/06/03/apelidinhos-e-vozinhas/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/06/03/apelidinhos-e-vozinhas/#respond Wed, 03 Jun 2020 21:35:17 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/apelidinho.jpeg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=717 Começou quando a cachorra fez algo fofinho, como tentar esconder o osso debaixo do cobertor, ou coçar, de pé, a barriga, usando uma das pernas. Ou foi no dia que ela ficou com as orelhas viradas do avesso parecendo uma menina com o cabelo preso atrás da orelha. Se bem que talvez tenha sido quando a gata ganhou uma personalidade inventada. Agora que ela é cantora, insegura, e meio mentirosinha.

Não sei ao certo. Só sei que, definitivamente, envolvia algum dos bichos da casa. Ou talvez o videogame do menino. Que, por mais que tenha aquela dancinha infernal, também tem uns toques gracinha. Tipo na hora que ele chama o escudo pelo nome em inglês e no diminutivo.

Daí, ou daquilo tudo de antes, tanto faz a origem, foram nascendo os apelidos novos. Que foram ganhando variações. E depois as novas versões açucaradas das variações iniciais. Acabou que todo mundo agora tem um nome novo dentro de casa. E, como ninguém sai mais de casa pra lugar nenhum, o nome novo virou o nome da vida. No RG, em ordem vêm o apelidinho, o sobrenome um, e o sobrenome dois.

Foi quando abriram as porteiras da quarentena e o mundo voltou ao normal, ou ao novo normal, que ninguém sabe ao certo o que significa porque esse tipo de coisa não existe, ou é normal, ou é novo, novo normal não tem. Mas o que importa é que a gente saiu pra rua. De máscara. Passando álcool gel em tudo, ainda. Mas saiu.

E foi meio constrangedor, primeiro porque no novo normal não tem regra de etiqueta estabelecida, então tem quem continue usando o cotovelo no cumprimento, tem que tenha voltado às origens estendendo a mão, e tem os malucos que inventaram saudações inovadoras, que batem o quadril no antebraço ou encostam só as pontinhas dos joelhos.

E, segundo, que foi ainda mais constrangedor porque agora está todo mundo muito tenso, andando na rua meio noia, sem emprego e sem dinheiro, pagando iogurte em seis vezes, dando ração de quinta pros bichos da casa – os ossos que a cachorra esconde são seminovos, e a gata cantora só come milho transgênico no camarim.

De tanto usar moletom e pantufa, a gente não sabe mais se vestir direito. Que dirá botar a blusa pra dentro da calça. Ferro de passar agora é vintage, igual televisão de tubo e computador de torre. Tem aula online pra reaprender a andar de salto, dar nó na gravata, a abotoar sutiã.

Workshops inteiros sobre o que um adulto precisa carregar na carteira, como organizar uma bolsa, vídeos no Youtube para saber ajustar a mochila nas costas. Tutorial para não perder as chaves de casa na rua. Manobras para tirar o carro da garagem módulo um. Confira cinco dicas infalíveis que vão fazer o seu ônibus parar no seu ponto.

E, se não bastassem esses ajustes, toda a inabilidade social, financeira, estética, biblioteconômica e de mobilidade urbana, foi todo mundo solto de volta na rua – de máscara, passando álcool gel em tudo – usando apelidinho fofinho pra chamar os outros. E, pior: falando com vozinha.

Não precisavam vir os sociólogos experientes, e nesse aspecto não havia nada que infectologistas pudessem fazer, porque o mundo inteiro sabe que o mundo inteiro usa uma voz diferente dentro do relacionamento. Pode até demorar para aparecer, mas ela sempre surge e é invariavelmente ridícula.

Então junte-se a isso o fato de que, agora, visualizem que é importante, estamos todos na rua de máscara, com álcool gel, perdendo as chaves, sem mochila, sinalizando pro Penha-Lapa, de moletom e despencando do scarpin, e ainda por cima afinando uma vozinha boçal como forma aceitável de comunicação.

A sorte é que parece que descobriram uma vacina, há estudos que indicam que o processo vem avançando. Até o meio do ano que vem, seremos cerca de dois terços do globo imunizados. Contra a vozinha, obviamente. Porque a do coronavírus parece que demora um pouco mais a chegar.

]]>
0
Somos todos CGCs https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/05/13/somos-todos-cgcs/ https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/2020/05/13/somos-todos-cgcs/#respond Wed, 13 May 2020 21:26:59 +0000 https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/brechó.jpg https://domeufolhetim.blogfolha.uol.com.br/?p=699 Mesmo antes de peças de roupa custarem insanos três dígitos, e principalmente antes de a gente se enfiar em quarentena em casa e ter que guardar dinheiro porque vá lá saber o que o amanhã nos reserva, eu já era adepta dos brechós por considerar que comprar roupa usada é não só mais econômico como também mais estiloso.

E, mesmo sendo essa traça da segunda mão, foi só recentemente que percebi o bafafá em torno do CGC, sigla que arrepia garimpeiras e vem impressa em algumas etiquetas. Quando uma peça dessas surge disponível num brechó online, é correria, pânico e desespero: o primeiro comentário leva a compra, e os seguintes escrevem “fila” para esperar em ordem por um mágico golpe de sorte.

O CGC nada mais é do que o CNPJ antes de 1998 – ou de “antigamente”, como chamam as brecholeiras. Uma peça com CGC impresso é comprovadamente algo vintage, e mais valorizado, portanto. Outro dia, uma vendedora vibrou sobre uma camisolinha de piquê toda bordada, conclamando a comunidade retrô a quase orar sobre aquela roupa que, dizia ela, era um milagre existir há mais de 20 anos.

Eu já existo há mais de 20 anos, pensei. Aliás, já fazia quase 20 anos que eu já existia quando o Ministério da Fazenda resolveu editar as nomenclaturas. E, mesmo assim, sendo toda vintage original, com rendinhas anos 80, ninguém me chama de milagre nem reza um Pai Nosso de gratidão sobre os dígitos do meu RG.

Neste fim de semana, vou completar 40 anos. Uma CGC legítima. Com isso, andava desgostosa das minhas marcas de uso, algumas bolinhas no tecido aqui, outros furadinhos na trama, as rugas do tempo que nem um bom trato do ferro de passar roupas resolve. Chateada mesmo, sempre que me comparava(m) com as peças novinhas de coleções atuais.

Quando minha mãe fez 40 anos, eu lembro que chorei escondida no quarto, pensando que nada podia ser mais velho que isso, alguém que tivesse quatro décadas. Um mês depois foi meu aniversário de 12 anos, e Deus, implacável, enviou de presente uma festinha no prédio à qual compareceram zero convidados.

Um amigo escreveu esses dias no meu Instagram que tudo melhora quando se chega aos 40. Meu analista completou que fazer 70 é uma maravilha. Acho que ninguém tem dúvidas de que, para os homens, acumular unidades e mesmo dezenas é realmente uma coisa incrível. Aumentam salários, autoestima, oportunidades.

Percebi que o desconforto, porém, não é tanto relacionado à idade em si, o meu CGC dobrado, mas sim ao fato de completar uma idade assim tão simbólica – se não para o mundo inteiro, apenas para aquela metade que se lasca sob o patriarcado – em condições adversas.

Uma amiga da juventude partiu há poucos dias, há um desgoverno em curso, milhares ainda morrerão na pandemia. Tememos perder o emprego, os amores, o prumo. Bem diferente dos abraços, dos drinques e do bolo que imaginei pra quando esse momento chegasse – quem podia sonhar que o aniversário deserto aos 12 não seria o pior de uma existência?

Desejo de presente pelos meus 40 anos (e também a você pelos seus 59, 15, 36, ou quantos forem que você completará durante a quarentena) a paciência fundamental para aguentar firme e lembrar que vai passar. Muito em breve este será apenas mais um capítulo duro de nossas trajetórias – como aquele puído na bainha que só confere ainda mais valor e força aos sobreviventes CGCs do brechó.

]]>
0