O trem
Quando éramos pequenos, havia mágica três vezes ao dia. Geralmente vinculada às principais refeições, a passagem do trem na frente de casa era um acontecimento, e reunia todas as crianças penduradas no portão baixo de madeira, com os braços para cima acenando de muito longe para um maquinista que, na nossa imaginação, nos olhava com o mesmo entusiasmo com que olhávamos para ele.
Era meu avô quem gritava “Ó o trem!”, quase que como um apêndice imediato do apito da maria-fumaça que anunciava a aproximação das composições ora de passageiros, ora de carga feito carvão, madeira e pedregulhos. Vinha o apito, vinha o grito e vinha o som metálico do atrito nos trilhos, e era uma excitante contagem regressiva até que todos se alinhassem para dar tchau. Parava-se tudo, almoço, lanche, partida de tabuleiro, descanso na rede, o que fosse, porque as férias, afinal, só existiam porque era preciso que passasse o trem e a gente observasse.
Três décadas depois, se fechar com força os olhos, ainda sinto na boca o gosto do café interrompido, e, no estômago, o frenesi deflagrado pela frase de comando. Se esticar um pouco a mão, ainda agarro as roupas dos meus primos, trapaceando a corrida em busca dos melhores lugares na arquibancada. Sei nos dedos o algodão das camisolinhas, o náilon dos shorts dos meninos.
Ombro a ombro, temos os cabelos lavados da noite passada, e cheiramos, todos, a cremes contra o sol e a pão com manteiga. Sei a altura de todos nós. Os chinelos favoritos. E o que, em nossas fantasias particulares, representa o trem para cada uma dessas crianças. Tem quem acene na esperança de seguir junto, e outros, com o desejo de que os ocupantes dos vagões anseiem por este encontro com o mesmo vigor que o fazemos daqui de cima das ripas do portão de madeira, com o vovô assistindo.
Para mim, o trem era o lembrete de que estávamos todos vivos, e de que assim permaneceríamos para sempre, em movimento constante, com a força e a estabilidade de grandes máquinas. A herança transmitida em uma tradição que nos puxaria de volta ao solo firme sempre que a rotina de adulto vacilasse.
Carrego o trem comigo dentro do peito. Ouço o apito e o grito, e escolho sempre correr em direção à vida, ao portão, às nossas mãos dadas. Espero que, de onde estiverem, eles todos, as crianças para sempre que seremos, também façam o mesmo. Ó o trem, menino, vem dar tchau.