Eu tenho medo de gente bonita

Marcella Franco

Quando a gente era criança, um tio distante fez circular entre todos os primos uma foto tirada num bosque de Minas Gerais, em que, junto com a família posando, havia também uma legião de gnomos. Não precisava de esforço pra ver: um atrás da árvore, um sentado na pedra, um distante no horizonte, dez, no total, se bem me lembro. Esse meu tio talvez tenha sido o inventor das fake news, imagino agora. Baita carreira.

Pois bem. Eu não era uma das crianças posando com os duendes em Monte Verde, nunca fui próxima desses parentes específicos, e isso, talvez, tenha me deixado com ainda mais inveja. Dor de cotovelo pela falta de sorte de nunca ter conhecido anões, dor, também, pelo fato de que, não sendo assim tão assídua, a mim certamente não seria dada a chance de ter uma foto cheia de gnomos para chamar de minha.

Cresci e decidi, portanto, que me aproximaria das criaturas fantásticas o máximo que desse. E, nessas quase quatro décadas de vida, nunca conheci um duende que fosse, mas, em compensação, já transei com uma centena de pessoas lindas – seres, estes, inseridos na mesma categoria mitológica dos anões de jardim.

Muito mais altas e quase sempre mais falantes que seus primos da floresta, essas criaturas belas guardam com eles algumas semelhanças. A primeira é que, assim como os gnomos, as pessoas lindas também não existem (a segunda semelhança é que, er…, na verdade não tem segunda, era só essa daí mesmo).

Se você já viu um cara ou uma mina linda, se já encostou neles, se já tirou foto no bosque de Minas, e se, assim como eu, já presenciou um deles pelado na sua cama, tenho uma má notícia para te dar: foi tudo apenas uma bela miragem.

Não tenho medo de duendes, até porque eles são pequenininhos e fofos, têm barbinhas e chapéus inofensivos, mas, confesso que, das pessoas lindas, eu tenho pânico, sim. Daquela cara perfeita que dá vontade de chorar. Daquele corpo divino que dá vontade de lamber. Daquele sorriso absurdo, do olhar tentador que, pior que na música polêmica do Chico, dão vontade de largar não só a mulher e largar o filho, mas também largar o emprego, largar o poodle, cancelar a assinatura do Netflix.

Eu tenho medo de gente muito bonita porque gente muito bonita não existe. É assombração. Quer dizer, eles estão lá, mas ao mesmo tempo não estão. São coisa sobrenatural, metade cavalo, metade pessoa. Fora tudo que fazem a gente sonhar em largar, dane-se o mundo e sigamos a sereia, eles ainda nos causam amnésia, distração, interrompem no meio nossos discursos, nos dão náusea, acabam com o ar, instigam pecado. Deixam a gente com cara de besta, refletindo como é possível viver assim.

“Linda. És linda e doce, amorosa e triste. Tens tudo que não presta”, escreveu Nelson Rodrigues sobre os seus duendes, no teatro, uma prova de que não é só a mim que a beleza extrema perturba. E eu, que não sei compor peças nem cartas de amor, largo aqui uma homenagem aos gnomos da minha vida, com quem não tirei retratos no bosque e de quem não tenho provas de vida. Voltem, e façam o favor de me assombrar.