Por que é que gay tem que assumir alguma coisa?
Lembro como se fosse ontem quando o tio Carlos contou para todo mundo na mesa do almoço de domingo que adorava transar com travesti. Só não foi mais divertido do que quando a vó Lúcia revelou que, depois dos 60, só fazia anal e nada mais. É bom quando as pessoas se revelam, né? Expõem verdades que são tão íntimas, mas, ao mesmo tempo, tão necessárias.
Ou vai dizer que dava para viver sem saber quais são as preferências dos parentes na cama? Das pessoas famosas? Que a vida ia poder continuar sem que a gente descobrisse onde cada um enfia o quê, o que cada um põe na boca, no que gosta de pegar. Ora, que absurdo.
Se a gente não fizesse essa tamanha questão de se intrometer na sexualidade alheia, era provável, por exemplo, que os homossexuais não precisassem mais aparecer abertamente para admitir que gostam de gente com piroca, com xoxota, igualzinho ao que já têm. Já pensou que louco? Se ninguém mais tivesse que revelar porcaria nenhuma e continuasse por isso mesmo?
Pois é a esse regime escroto que todos nós, incluindo você e eu, submetemos todos os dias pessoas legais e a quem a gente ama – o regime da imposição. Porque, em algum momento do mundo, construiu-se a ordem que diz que os gays, obrigatoriamente, têm que criar coragem e sair do armário. Mas, quem foi que disse que gay tem que assumir alguma coisa?
Transformar em imperativa uma divulgação da consciência da sexualidade de alguém é algo tirano e improdutivo. Acrescenta a um processo muitas vezes já penoso mais uma etapa complexa, uma que se supõe um rito de bravura quando, na verdade, tem como único propósito o deleite de uma plateia ávida por controle, julgamento e o esporte favorito da raça humana, a preguiçosa competição de miséria existencial.
Quantos adolescentes não gastam preciosos instantes de sua juventude na confecção de um plano, idealizando o momento em que conseguirão, enfim, contar aos seus pais que têm tesão em meninos como eles? Qual o tamanho da angústia de uma menina que se sabe obrigada a tornar público seu amor por garotas ao imaginar que a mãe vai chorar um dramático (e quiçá irreal) futuro sem netos?
Se eu não tenho que contar à minha família que curto um ménage, que gosto de bukakke ou que adoro enfiar meu dedo na bunda dos parceiros, acho justo que ninguém também se veja no dever de assumir coisa nenhuma.
Obviamente, é inegável o benefício de uma família que se comunica, em que há acolhimento da variedade e diferenças, ou mesmo de uma sociedade em que há espaço para que todo mundo seja o que bem entende sem se sentir analisado. Mas, vamos combinar que estes não são os espaços em que a gente vive, nem no sentido macro, tampouco no micro.
No mundo de hoje, no país de agora, no retrocesso que se ensaia e no qual estamos à beira de mergulhar de cabeça, esperar que um gay admita ser gay e fazer disso um acontecimento tem como função exclusiva a satisfação terceira. Chegou a hora de se exercitar abrir mão da perversidade – e está aqui a oportunidade para um excelente recomeço.