Chega de levar o aborto para o lado pessoal

Tenho uma relação de intimidade com o aborto. Em mais de vinte anos de vida sexual ativa, engravidei duas vezes, tive um filho e perdi outro de maneira espontânea – não, nunca interrompi gravidez nenhuma. Nunca “tirei” um filho. E isso apenas porque não aconteceu de eu precisar, porque, fosse o caso, sendo a favor da legalização como sou, não teria qualquer constrangimento em recorrer à alternativa.

O aborto e eu somos vizinhos a partir do ponto em que eu escapei de um. Não sou mãe de aborto, sou filha. Inconveniente, porque comecei a me formar justamente quando se desfazia um casamento, mas também teimosa, porque me mantive firme e focada em encontrar um jeito de nascer. E, ainda que ninguém tenha tentado na prática me arrancar à força de dentro do útero, a polêmica ideia foi debatida entre as equipes rivais – agora, sabemos qual time venceu.

Questões como essa costumam render aos sobreviventes horas reclinados em divãs. Neles, fala-se sobre rejeição, baixa autoestima, medo da morte. Mas, sejamos adultos, sinceros e fortes: fala-se, também, sobre o quanto o fato de um casal (ou de apenas uma parte deles, como no meu caso) cogitar abortar um bebê não significa efetivamente uma negação àquele sujeito específico.

Quem considerou, um dia, pelo tempo que tenha sido, que eu não nascer seria a opção ideal, não desprezou a mim, e sim a uma situação que, ali, não lhe parecia ideal. E não é isso que fazemos todos os dias, ao longo de todas as nossas vidas? Tomar decisões com base em uma avaliação do cenário completo? Escolhas? Envolvendo outras pessoas, sentimentos, preferindo uns, prejudicando outros.

Houve, na minha vida, múltiplos momentos em que decidi que, fosse positivo o resultado do teste, eu interromperia aquela (ainda imaginária) gravidez. E, na grande maioria das vezes, excetuando, talvez, aquelas em que eu ainda era uma adolescente, a razão primeira de tal escolha seria o contexto. Eu sabia que não queria ter um filho de um parceiro drogado, ou quando estivesse desempregada, ou se desconhecesse o pai da criança – tantas variáveis, um único decreto.

Sendo eu uma mulher branca, instruída, de classe média, muito provavelmente sobreviveria ao procedimento ilegal, já que, de minha posição socialmente privilegiada, seria possível buscar ajuda com segurança. Meus pais, tivessem chegado a um consenso diferente do que permitiu meu nascimento, possivelmente também teriam saído vivos e livres, ambos, de dentro de um consultório furtivo no centro de São Paulo.

Ainda assim, eu luto pelo direito à escolha. Sou a favor, repito, da legalização do aborto, e pela garantia de que todas as mulheres, com ou sem a anuência dos parceiros, famílias, párocos do bairro, possam ser as únicas responsáveis por definir o que será de seu futuro.

Quero ter a opção que meus pais não tiveram, ainda que não fossem recorrer a ela. Quero a concessão que, até hoje, em agosto de 2018, ainda não me é concedida, ainda que dela eu não precise. E quero, sobretudo, que minhas descendentes saibam que são elas as únicas soberanas sobre seus corpos – e que todas nós que viemos antes fazemos parte desta conquista.