A gente quase morre

A gente passa a vida quase morrendo. Ou ao menos achando que quase morre. Quando perde o emprego, perde amores, perde dinheiro, perde pessoas. Toda perda é sentida como um semi-óbito, talvez por trazer consigo o consequente abismo do desconhecido, talvez porque os humanos tenham mesmo sido desenhados como criaturas neuróticas e dramáticas, independentemente da quantidade de anos passados sobre o divã do analista. Somos uns desesperados.

Tem quem quase morra de susto. O coração bate tão rápido que parece que vai sair pela garganta, alegam, e, se um órgão desse tamanho passar mesmo pela goela, é realmente pouco provável alguma chance de sobrevivência. Natural planejar o velório. Vai que precisa.

Morrer de raiva é tipo isso. Praticamente uma morte. Outro quase. Causa (semi) mortis: excesso de adrenalina. Uma descarga surreal de hormônio na corrente sanguínea, um colapso, o sujeito cai duro no chão e, não fosse o fato de que acorda logo em seguida, também seria um passamento completo, daqueles finalizados com êxito. Esse também foi por pouco.

De tristeza igualmente quase se morre. A solidão, a rejeição e a decepção homicidas do dia a dia, tão violentas que arrombam o peito sem piedade, expondo costelas e enchendo de água os pulmões que mal escapam de tão imensa ameaça. É tanta catástrofe que, olha, sorte a nossa a vida quase não ter desgosto, porque senão.

Quase se morre de tédio, de vez em quando. Já de fome é todo dia. Sono, também. Ou quase morrer de medo, aquele medo terrível de tomar susto, sentir raiva, ficar triste, sozinho, entediado, faminto, cansado. Ou morrer de medo da morte.

E o que acontece é que nenhuma das quase mortes da vida ensina a gente a lidar com aquela única da qual não se escapa. Tomamos todas elas como ensaios, quando na verdade elas não têm função alguma. Porque a morte de verdade é tão precisa que não tolera quase. Vem a galope, e nem o mais doente dos seres acredita na sua chegada. De tão acostumados a quase morrer cotidianamente, esquecemos da velocidade implacável da partida derradeira.

E, quando ela aparece e nos leva aqueles que amamos, experimentamos o espanto como se aquela fosse a primeira vez que alguém morre no mundo. Como assim? Por que agora? Tão jovem, tão de repente. Quem diria, ninguém esperava.

Ordinariamente, é possível quase morrer de tudo, mas, de maneira efetiva, só dá para morrer de vida. E quem sabe não são apenas aqueles que abraçam a existência com toda a força e vivem intensamente que ganham a chance de partir? Vai ver a morte concreta é uma conquista. A realização suprema de quem passou tanto tempo cercando o adeus. Porque a dor da conclusão não tem nada a ver com quem parte – o luto, este é todo de quem fica.