Haja ioga
Chico Buarque é deus, mas os tempos andam tão sombrios que é preciso discordar dele vez ou outra. Quando ele diz, por exemplo, que a bailarina não tem pereba, febre amarela, calcinha velha ou qualquer problema que seja, porque eu acho muito que nem ela escapa do climão de caos que toma conta de tudo.
Uma amiga manda mensagem para contar que encomendou no site gringo um livro fantástico, fecha aspas. Ou que tem tudo para assim ser. “Como se Relacionar com Homens Quando Você Odeia Homens”, obviamente em inglês (língua em que tudo parece menos sincero) e, embora a sinopse garanta que se trata de uma obra humorística, suspeito que seja um texto de suspense e terror.
É que, ao contrário da bailarina, as minhas cascas de ferida são muitas, e venho supondo já há algum tempo que não há como manter o equilíbrio mental sendo heterossexual nessa vida. Também não dá para parar de fumar, eu acho, porque ando tentando largar o cigarro, mas só faço acender um atrás do outro a cada toco que tomo de homem.
Talvez nem seja culpa deles, talvez seja só cansaço mesmo, consequência da jornada dupla, disseram, parece que embaralha os pensamentos. Ou pode ser a falta de grana, que me obrigada à tal jornada dupla, e às vezes até à jornada quádrupla quando vejo que já deu três da manhã e me levantei para lavar a louça ou preparar a lancheira do menino para amanhã.
Mas seja qual for o motivo do meu mau humor e da minha má vontade, e do mau humor e da má vontade do meu círculo de amigos quase inteiro, e da rabugice e da falta de saco do pessoal do trabalho, no metrô e na fila do supermercado, acho que há um movimento global de bateção de cabeça, um transtorno generalizado em que ninguém entende ninguém e onde haja ioga e abraço na árvore pra que a gente apreenda alguma coisa.
Queremos mudança, mas seguimos escolhendo velhos formatos. Sonhamos com uma faxina geral e de novo espalhamos os bibelôs mais ultrapassados pelas esferas da vida. Esperamos que os filhos cresçam educados e diferentes, mas largamos o trabalho todo na mão dos celulares e televisões e babás em casa. Pretendemos ser feministas, mas não temos paciência para incluir os homens no processo de transformação da sociedade.
A culpa é das redes sociais, grita em caps lock minha tia no grupo da família, apoiada pela minha mãe que garante que chegou o apocalipse, pra depois apitar mensagem do meu primo dizendo que só quem pode explicar a Babel moderna é o Olavo de Carvalho, clica aqui neste link para ouvir a entrevista que ele deu para este site que dá até medo de entrar e pegar vírus.
Penso, no final das contas, que o mal-estar coletivo possa vir do fato de estarmos todos aprendendo enquanto fazemos. E ser pioneiro no que for dá trabalho e demanda sacrifícios – o primeiro montanhista a desbravar o Everest parece que desceu de lá sem a ponta do nariz, congelada e quebrada na nevasca extrema, jura de novo meu primo de novo no WhatsApp.
Em meio a tantas opiniões, quem melhor definiu o rolê recentemente foi meu filho. Na saída do cinema, depois da aventura que conta a história de dois amigos personagens de fliperama, tagarelamos sobre as piadas, os efeitos, o sabor da pipoca e meu breve e quase discreto cochilo, e comento que só não gostei do vilão, que achei exagerado e meio inverossímil.
Ele, então, explica que se não gostei foi porque não entendi. Que o monstrão só é daquele tamanho porque às vezes os sentimentos também tomam proporções colossais, e a gente pensa que não vai dar conta de lidar com eles. “Como quando a gente briga com o namorado, sente raiva de alguém, quando fica possessivo com as coisas na escola, ou tem medo do que vai acontecer no futuro”, enumera. Ele tem só dez anos, e já manja bem mais das coisas do que eu, a bailarina sortuda e todo mundo junto. Segura essa, Chico Buarque.