A responsabilidade de quem apanha

Reprodução Facebook
Marcella Franco

Ele tinha poucas fotos no perfil do Facebook, mas, em algumas, dava para ver que olhos eram verdes e o nariz era torto, coisa que, naquela época, costumava bastar para eu querer marcar um encontro com alguém. Agendamos na minha casa, abrimos um vinho, transamos e ficamos casados por nove anos. Ele nunca me espancou até eu quase morrer.

Um outro – também de olhos verdes, eita padrão – entrou em um bar onde eu bebia com um amigo numa noite de semana, cumprimentou meu parceiro de drinques, deu um sorriso muito branco e perguntou se eu fumava. Deus é bom, e havia um Marlboro na minha bolsa. A bituca foi pro chão, a língua dele se enfiou na minha boca, e dali eu não a deixei sair por meses. Ele também nunca me bateu até o coma.

O ator que namorei depois da entrevista também não me agrediu, tampouco me socou o músico pra quem dei capa antes de aceitar a carona e um lugar na sua cama por dois anos de relação. Nenhum dos jornalistas com quem saí ergueu a mão para mim, nem aquele engenheiro ruivo, ou mesmo o publicitário novinho que me deu o trote na faculdade, ou o rapaz de camisa de banda que abordei na sorveteria e levei para minha casa numa tarde de calor no Rio de Janeiro – passei ilesa pelas mãos de todos eles.

Eu achava até hoje que tinha tido sorte por nenhum dos meus parceiros, fixos ou eventuais, se revelarem psicopatas violentos em algum momento ao meu lado. Até porque, o que não faltam por aí, nas manchetes de jornal e nas histórias que amigas contam, são casos de homens que, mesmo depois de anos de relação, passam a agredi-las, queimá-las vivas, amputá-las, enforcá-las, jogá-las de cima do prédio. Se revelaram criminosos os maridos e namorados a quem elas julgavam conhecer tão bem.

Eu era rabuda, imaginava, mas aí foi que li as matérias de hoje sobre a moça hospitalizada depois de apanhar por quatro horas de um rapaz que conheceu nas redes sociais, e, nos comentários ao texto, percebi que, na verdade, eu devo ser muito melhor do que ela, a moça à beira da morte. É que, como disseram lá que a culpa é dela por estar desfigurada numa cama de hospital, sendo que eu nem um peteleco nunca tomei, alguma coisa eu devo ter feito muito certa, enquanto ela fazia muito errado.

Escreveram que a culpa é dela porque transou no primeiro encontro – e eu lembrei que raras vezes esperei um segundo encontro para abaixar as calças. Hum, estou confusa. Teve quem dissesse que o problema era sair com alguém que conheceu em aplicativo – nunca usei o Tinder, verdade, mas metade dos meus amigos no Facebook já me deu ao menos umas bitocas, enquanto um terço deles conhece até mesmo a marca do meu colchão. E agora?

Se eu fiz tudo – e até pior – que a Elaine fez, por que raios eu não acordei toda roxa pedindo socorro? Eu sou realmente melhor que ela em algum aspecto, e por isso não mereci ser punida, bem-feito pra mim, olha só o que te aconteceu? A resposta é: óbvio que não.

A responsabilidade de Elaine, a empresária espancada, sobre a própria desgraça, é igual ou menor que zero. Nessa história, assim como acontece em 100% dos casos em que mulheres são agredidas por homens com quem escolheram se relacionar, Elaine é única e exclusivamente uma vítima.

Não importa quantos comentários na Internet tentem justificar o injustificável, quantos leitores e leitoras apontem o dedo, não há contexto em que caiba alguém ser culpado por apanhar até chegar perto da morte. É mais que hora de parar com esse comportamento sórdido de inventar caminhos que levem monstros à possibilidade da razão.

Eu já fiz igual à Elaine, você já fez igual a ela, e a única diferença que nos separa de onde ela está agora para onde nós estamos é um fator chamado casualidade. Rasguem seus juízos de valor, e aprendam a lidar com isso.