O último dia
Ninguém nunca contou, até porque não há como saber se naquele dia ele foi ao mercado e comprou três laranjas, papel higiênico e dois quilos de patinho moído. Se mandou mensagens ao rapaz do hortifruti avisando que a partir dessa semana não precisa mais entregar as verduras. Zerou os boletos, mesmo que não fosse preciso, lavou a louça, arrumou a cama. Só se sabe que apagou todas as fotos. Que fez da cabeceira um degrau. Que voou, e que era lindo.
Depressões não são processos lineares, porque não há uma trajetória que leve de um ponto a outro. Já viu buraco ter coerência? Ser humano faz ainda menos sentido que buraco, e o último dia não tem cara de último se o dono do dia decidir que aquele momento é o ideal para se matricular na aula de jiu-jitsu ou no curso de francês. Chave de braço, bonjour, adeus.
O ator talentoso, que fez milhões de peças e filmes, que dizem que representa bem tudo que lhe cair na mão, responde nas entrevistas às perguntas sobre o processo de criação dos personagens, como foi decorar tanto texto, deixar crescer a barba, cortar o cabelo curto, lixar os dentes da frente, pintar de marrom as unhas, engordar seis quilos, perder dezenove, mas o ator talentoso nunca responde sobre como foi o dia em que a mãe dele se matou e ele ficou sozinho e decidiu viver milhões de vidas porque aquela ali não tinha mais como.
No bolso do casaco da escritora tinha uma porção de pedras para garantir que ela afundasse e não corresse o risco de subir de volta à superfície onde ficavam as vozes que atrapalhavam suas histórias. Achava que estava perdendo a razão, mas em nenhum momento se esqueceu de que debaixo d’água ninguém é louco.
A poetisa, por sua vez, morava longe do rio, e não tinha como fugir para a água. Decidiu que, feito os peixes, ia se afogar de ar. Mas teve um último dia, como sempre tem que ter um último dia, e da poetisa se sabe que nesse dia não teve uma ida ao mercado para comprar laranjas, papel higiênico e patinho moído, nem pedras nos bolsos ou processo de criação de nada, mas se sabe que havia leite e pão perto da cama das crianças que dormiram de janela aberta no meio da neve porque ainda não era a hora de elas se afogarem de ar (um dia essa hora chegou, mas demorou anos, e talvez o menino que quase congelou na infância tenha tido bons dias de adulto com frequência antes de chegar também seu último dia e ele decidir que aquela era hora de parar de respirar).
Debaixo d’água. Onde ninguém é louco. E os buracos são coerentes.
O ator talentoso não fala nas entrevistas sobre a mãe que se matou, mas fala sobre os seus homens que nasceram daquela morte. E eles são todos tenazes, sobreviventes que passam seus últimos dias igual a todo mundo no mundo, sabendo que hoje pode ser a última vez, mas que diariamente fazem a escolha de deixar a hora derradeira para depois porque agora é o momento de insistir e achar sentido nas laranjas, na luta, no francês. Na superfície. Lugar em que se pode até ser louco, mas é onde ainda dá para escrever e tentar, assim, dar linearidade ao mundo.