Faltam seis dias para ela morrer de novo

No dia 8 de março do ano passado, de manhã bem cedo ela foi até a padaria e, antes do débito ou crédito no caixa, ouviu do moço que entregou o saquinho com dois pães na chapa pra viagem um “parabéns pelo seu dia”. Sorriu de cabeça baixa, achou melhor nem agradecer nem explicar nada, pagou tudo em dinheiro e esperou na calçada o carro para ir ao trabalho.

No trajeto, abriu no celular as notícias. Entre o caos de sempre na sua área de atuação, poucas chamadas noticiam os seus feitos ou os de suas colegas – habitual, pensou, nada de novo no front. Diversas notícias sobre agressões, outras tantas sobre assédio nos ônibus e metrôs. Assassinatos de mulheres. Na sessão de fofocas, figuras femininas famosas viram destaque porque são lindas, porque são jovens, porque foram o motivo pelo qual um homem destruiu seu próprio casamento com outra figura feminina famosa igualmente linda, igualmente jovem.

O carro cruza a Cinelândia, ela diz ao motorista que aqui já está ótimo, sobe as escadas do prédio oficial e, antes de cruzar a porta, recebe um botão de rosa do pessoal contratado por uma empresa qualquer que aproveita o dia para promover a marca entre o público feminino. Não dá tempo, de novo, de agradecer nem explicar nada, agora ainda menos, faltam sete minutos para começar o expediente.

Guarda a flor na bolsa. Checa as mensagens no grupo da família. Sopra um emoji de beijo à parceira, que pergunta, em tom de piada, quantas rosas e parabéns ela já recebeu até agora, dez da manhã ainda. Se acomoda à mesa, e uma cotovelada suave chama sua atenção. “Dá cá um abraço, que hoje vocês merecem muito carinho”, convida um colega de terno, gravata, e testa suada.

“Carinho”. Por hora, 536 mulheres agredidas no Brasil, lembra, fazendo de cabeça as contas de que, com isso, a cada dia 12.864 pessoas iguais a ela não só não recebem carinho, como são vítimas de socos, chutes, pontapés e panelas de água fervente. Estupros são 1.379 diários. Por ano, 16 milhões de mulheres violentadas de algum modo. E tem gente ainda falando de carinho, pensa, mareada.

Pede a palavra. É ignorada. Alguém interrompe o homem que discursa para dizer que, alto lá, este é um dia especial, e a colega merece ser ouvida com prioridade. “Merece”. “Prioridade”. “Parabéns a todas!”, festeja uma voz no fundo da sala, ela não consegue ver ao certo quem é e, dessa vez, não agradece, não explica, e não sorri de cabeça alta nem baixa. Ela quer ir embora.

Almoça no restaurante da esquina e, de longe, sozinha na varanda do quilo, contempla a mesma dança de todo dia, seja ele 8 de março, 20 de setembro, 1º de janeiro, 14 de abril: reunidos em bandos, rapazes vangloriam uns aos outros por suas conquistas extraconjugais, relatam feitos, adjetivam conhecidas e se encorajam mutuamente a cumprir com aquilo que definem como o papel de um homem. Olha ali que princesa, aponta o mais alto deles, interrompendo o tema.

A cabeça dói, sonha em ir para casa direto, mas ela tem reunião para fazer à noite. Enquanto aguarda o mesmo motorista voltar ao ponto de encontro usual, telefona à amiga casada com um conhecido, típico sujeito amado por todos, um verdadeiro príncipe, dizem. Há anos os dois vivem um relacionamento abusivo e a amiga mantém-se à base da dicotomia do amor e do medo (da rejeição, da solidão, do julgamento). Ela ouve, ela apoia, ela garante, qualquer decisão que seja, diz que está aqui para você, arriscando dois ou três conselhos antes de avistar o carro que encosta do outro lado da rua.

“Que dia, Anderson, que dia”, lamenta, e o motorista sorri constrangido, ele sabe a força da mulher para quem trabalha, e imagina que, no coração dela, aquele 8 de março se desdobra como todos os outros, cheios de hipocrisia e felicitações que, se virassem luta e doações, seriam de tão maior serventia a todas as mulheres do mundo. Ele freia bruscamente no sinal amarelo, até daria para passar, mas aproveitemos para apanhar minha assessora que vai comigo a este encontro, ela pede, por gentileza.

Seguem os três em silêncio no carro, como vão seguir também dali a seis dias, na noite de 14 de março de 2018, rumo à rajada de tiros que vai aniquilar qualquer reflexão de Anderson, a paz da assessora, e a vida dela, Marielle Franco, egressa da favela da Maré, vereadora, negra, ativista. Mulher.