É preciso escolher melhor nossas vítimas
O país inteiro em choque diante de outro massacre em uma escola, e as notificações do WhatsApp não param de vibrar o celular – é o grupo de mães em polvorosa. Devem estar todas desesperadas, imagino, será que nossas crianças estão seguras, a gente sempre pensa no próprio umbigo, mas o que indigna as colegas não tem qualquer ligação com os atiradores de Suzano. O problema, identifico, é a professora do quinto ano.
É um mar de mensagens, muitos áudios de três minutos, respostas de anuência ao que alguém disse lá em cima. Escolho aleatoriamente alguns para ouvir. Precisamos nos unir, se só uma for à coordenação não vai adiantar nada, esta é uma calamidade que precisa ser resolvida logo, dizem. Mas, gente, socorro, não estou entendendo nada.
Mais áudios. Pronto. Entendi. Uma aluna foi tratada com grosseria, outra se sentiu desrespeitada com deboche. Alguém pediu uma borracha e levou bronca. A prô, parece, é um monstro sem controle.
“Uma vaca”, grita a voz na mensagem do meio-dia. Descubro que já há uma reunião particular agendada, na qual a titular da sala vai ouvir umas verdades sendo olhada no olho sem chance de fugir para finalmente ter o que merece porque ela não sabe do que a gente é capaz. Então, gente, tudo bem se eu não participar?
Invoco a razão com um textão de dois scrolls, minha primeira participação no debate. Técnicas de PNL, dizem que ajuda. Mantenhamos a calma, meninas, levantes são perigosos, quem sabe se confiarmos na direção que há 30 anos emprega essa pessoa no mesmo cargo, analisemos tudo com o cérebro, esqueçam o fígado, vocês viram que dia triste esse de hoje com crianças mortas, como seria se a gente mudasse de assunto. Mas sou uma escrota, deliberam. Desisto de me envolver.
Dois dias se passaram desde que aqueles jovens entraram na escola e abriram fogo contra estudantes e funcionários. No colégio do meu bairro, onde aparentemente reinava a paz antes de a professora do quinto ano pegar no pé da turma, neste mesmo prazo algumas das mães conseguiram conversar individualmente com a pivô da discussão e também com a coordenadora.
Sentiram muito todas, promessas foram feitas, agora quem sabe cessam os rumores entre os alunos de que a prô vai ser demitida “até o final do ano” – crianças de nove anos têm dificuldades ainda com o trato do tempo e espaço.
Áudio de novo. Dessa vez para relatar com detalhes como foi a tal conversa. Eu tenho tanta coisa pra fazer, matéria pra escrever, já tem gente que me xinga religiosamente nos comentários dos textos na Folha, será que eu aguento ser detestada em mais uma agremiação? Play. Indiretas. Parece que, além de escrota, está definido que sou também repressora.
Nos calamos, eu e minha censura, porque há momentos em que os conflitos não querem mediação, mas só combustível para incendiar ainda mais. Fogo no parquinho, mesmo que seja hora de baixar a guarda. Casos assim elucidam, para mim, um dos principais questionamentos que surgem com tragédias como a de Suzano.
Além das motivações, e de como será seguir em frente, é comum que se pergunte o que poderia ter sido feito para evitar que aquelas pessoas morressem – as vítimas e os agressores. Acontece que, se não sabemos lidar com embates e divergências de ordem tão simples quanto a relação truncada de um professor com um grupo de estudantes, é muito claro que ainda estamos longe de aprender a sanar questões muito maiores, como a que move alguém a entender que apenas um grito tão alto quanto uma chacina e um suicídio pode serenar a angústia de dentro do peito. Seguimos despreparados e individualistas.
Antes de silenciar por uma semana as notificações do grupo no WhatsApp, uma última mensagem questiona se eu, agora, defendo que a professora do quinto ano seja ela – e não seus alunos – a vítima de todo o imbróglio. É hora de escolher minhas batalhas. Digito que vítimas são aquelas crianças todas caídas no chão de Suzano, com balas enterradas na cabeça e sangue escorrendo no saguão de entrada do colégio. Não dou enter. As pessoas precisam aprender a ter limites.