O poder de um ginecologista
Um namorado me perguntou uma vez se Papanicolau era uma pessoa. Algo como uma entidade da Igreja Católica, responsável por analisar as células epiteliais do colo do meu útero e dizer se está tudo legal, dentro dos conformes. Viu o nome escrito em um papel assinado pelo meu médico, e, desconfiado, o namorado, se questionou, então, sobre quantas pessoas estariam envolvidas em uma consulta ginecológica. Além de mim, a enfermeira e o doutor Eduardo, também um papa, o Nicolau, abençoando ali os procedimentos.
O universo feminino envolvido em um encontro de rotina de uma mulher com seu médico desperta mesmo curiosidade. Até mesmo para nós, as pacientes, quando é a primeira vez com um profissional diferente – ou quando é a primeira vez de todas na vida – fica sempre aquela aura de mistério sobre o que acontece da sala de espera pra dentro. Uma vibe meio mística.
Mais do que imaginar se a gente vai ou não se sentir à vontade ao tirar a roupa, como imaginava meu namorado, passam pela nossa cabeça questões de ordem muito mais profunda, a depender do que cada uma de nós sente e deseja para a vida. Eu, particularmente, curto me atormentar com dúvidas sobre fertilidade, doenças gravíssimas, sentenças de morte e o pudor de indagar se meus tesões são socialmente aceitáveis, e se é normal sofrer com gases depois do sexo anal.
Ontem, por exemplo, foi dia de consulta. Já são dois anos me tratando com este médico específico, o que facilita o processo de me sentir em casa, pelo menos ali na recepção. Abraço forte a secretária, porque nosso vínculo é tão visceral quanto são viscerais as ligações entre pessoas que entregam cheques polpudos e aquelas que os recebem. Digo de coração que tive saudades, pergunto como vai a família, e ela me ensina, pela centésima vez, a mexer na máquina chique de café espresso.
Vamos lá, Marcella?, e lá está ele, de jaleco e porta aberta, oferecendo a cadeira para eu me sentar. Comento que estou fazendo tudo direito, de acordo com o que a sociedade e a medicina esperam de mim, reclamo da pílula e do parceiro atual (ambos dão dor de cabeça), digo que quero fazer muitos exames e reforço que ainda não estou preparada para a menopausa. A cara dele faz um espasmo que eu não sei se é de achar graça ou vontade de espirrar, e ele interfona para a enfermeira vir me conduzir ao vestiário.
Abertura para a frente, ela repete igual faz com as instruções da cafeteira, porque sabe que há grandes chances de eu sair de lá de dentro com o avental amarrado errado, mostrando a bunda a quem estudou para examinar xoxotas – tenho problemas de memória, será que o Eduardo conhece um bom neurologista para indicar?
Faz frio, como faz sempre frio nos dias em que marco essas consultas. Talvez devesse agendá-las apenas de janeiro a março, quando, ao invés de casaco, camisa, botas, calça e meias, eu tivesse que tirar apenas um vestidinho e sandálias no diminuto banheiro onde me preparo para a avaliação clínica. Será que eu penduro também a calcinha, ou enfio ela no bolso do jeans que já está no cabide? Tomara que eu não esteja com chulé.
Deitada na maca, com os braços para cima, procuramos por alterações nos seios enquanto debatemos, olho no olho, os rumos da política no mundo. Depois de calçar as luvas, segue-se o rumo de praxe, com o bico de pato abrindo caminho para o Papanicolau (que de fato foi, sim, uma pessoa, mas que ali na sala é só o nome de um exame de prevenção e rotina), e o toque, que de tão gentil quase parece que não houve.
Rápido, natural, e cabem até duas ou três piadas nos pouco mais de dez minutos que tudo leva para acontecer. Pronto, se veste, te espero lá de volta, e toca botar tudo outra vez na ordem inversa, meias, calça, botas, camisa, casaco, e nisso vou saindo do banheiro sem perceber que não abotoei a blusa, se bem que está longe de ser uma gafe surgir com os peitos de fora diante de alguém que até pouco tempo atrás estava com a mão inteira dentro de mim, perguntando se eu achava que essa frente fria veio mesmo pra ficar.
Volto à recepção com uma receita, dois pedidos de exames, e os votos de que tudo corra bem pelos próximos seis meses. É hora de assinar papéis e dizer tchau para a secretária, a garganta vai apertando em saudade antecipada, será que já não é melhor deixar marcado o retorno pra setembro, vai que a agenda lota.
No térreo à espera do Uber, descubro que o doutor também fuma, esse hábito terrível que eu achei que só os mortais insignificantes ainda tinham. Entrego o isqueiro que ele pede emprestado, lanço um paulistano magina fica pra você e, no trajeto de volta pra casa, atravesso a cidade me sentindo generosa, sadia, fértil, eterna. Reverencio o papa, o Nicolau, a secretária e a enfermeira, a máquina de café e o bico de pato, eu reverencio tudo porque estou cheia de saúde e luz, sempre saio nessa onda hippie do consultório do ginecologista. Viva o Eduardo, que tem nas mãos meus mais profundos segredos e entranhas. Gratidão.