Você já teve um amor-Bolsonaro?
Chegando aos 40, a vista fica estranha, a gente começa a ter que ou se por vesga ou fechar os olhos e fingir amor quando vai dar beijo na boca, porque a pessoa vem vindo, chegando perto, e os olhos, idosos, não dão conta de acompanhar aquele movimento naquela velocidade. Então, é óbvio que objetos minúsculos lá embaixo no tapete também correm o risco da invisibilidade enquanto passo o aspirador. Confundem-se com glitter do carnaval passado, e acabam sugados pelo Cyclone Stick antes que se tenha qualquer chance de misericórdia.
O braço de um importante super-herói do qual me esqueci o nome acabou, hoje, no saco durante a faxina. Culpa do moleque, que largou as peças de LEGO espalhadas. Foram cinco minutos de hesitação, é até bom ele ter no catálogo um herói deficiente, mas a culpa bateu, e fui caçar o bracinho em meio à sujeira e aos pelos de gato.
Já pensou que bom seria se, na vida, a gente também tivesse a chance de abrir o aspirador divino e caçar, lá dentro, entre as empoeiradas consequências de decisões passadas, o objeto de arrependimento por uma resolução precipitada? Fazer e falar besteira, e poder depois, à pressão de um botão, abrir o compartimento do passado recente e desfazer ou desfalar o que quisesse.
Acontece que, se a ordem das coisas se desenhou desse jeito, e a gente tem que arcar com as consequências do que escolhe, é por algum motivo – de repente Deus se perderia no cronograma de maneira caótica caso nos fosse permitido voltar atrás em tudo, já pensou o transtorno?
Ou, vai ver o motivo é mais simples e menos olímpico, e o regulamento da vida é esse aí porque todo mundo sabe o quanto é desagradável conviver com gente que retira o que disse a toda hora. A medicina, por exemplo, vem estudando um novo fenômeno neste sentido: o amor-Bolsonaro.
Diz-se que aqueles que sofrem desse tipo de patologia vivem a fazer juras e promessas, a traçar acordos, e, pouco tempo depois, se retratam alegando que não era nada daquilo, que o pessoal entendeu errado, e a outra parte que lide agora com o desfeito. Outros casos relatados nos anais dão conta de situações similares, porém opostas, quando o paciente inicia o quadro viral sonegando afeto para, cerca de 24 horas depois, modificar o discurso e garantir que a vida sem aquele parceiro não seria possível, e a dor, insuportável.
(Não confundir com esquizofrenia.
Nem com transtorno de dupla personalidade.)
O amor-Bolsonaro não se baseia em mau-caratismo, garantem os catedráticos. Também não se avizinha da loucura. Tem, isto sim, suas raízes na infantilidade e no despreparo para cargos relevantes (namorados, maridos e afins, esclarecem os médicos). Ainda de acordo com a literatura, a terapia mais indicada envolve técnicas como meditação silenciosa, psicoterapia e amadurecimento de choque.
Métodos menos ortodoxos, como a prática que envolve o Cyclone Stick servindo de instrumento lúdico de expressão dos sentimentos, também vêm sendo tentados. Nas sessões, os doentes são convidados a manipular o aspirador sobre uma superfície repleta de peças de LEGO, glitter do carnaval passado, sentimentos alheios, muito pó, e alguns artigos da Constituição. A ideia é se responsabilizar pela decisão de chupar ou não chupar os objetos. Os resultados preliminares ainda são insatisfatórios.