Os normais

No samba de gafieira, não tem nada mais inadequado do que não saber dançar. E lá fui eu, ainda assim, a bailarina inapta, cruzar o salão rumo à moça que sempre assisto voar na pista, toda semana, nos braços de alguém bem mais adequado que eu. Convidei-a pra me conduzir: um desafio sem atrativos. Ela disse sim.

Tivesse eu permanecido resignada em toda a minha consciente inadequação ao cenário, não teria nunca experimentado a mágica de, por três minutos, flutuar colada à Amanda.

Pois a vida, jovem Padawan, é um imenso samba de gafieira. Excetuando-se aqueles raros que, por talento nato ou esforço próprio, alcançam o nível Carlinhos de Jesus de ajustamento ao baile, somos todos, em nossa imensa maioria, espectadores fascinados com o ritmo da música e ansiosos por aprender a dança.

Às vezes, rola. Às vezes, não. Mas o certo é que, enquanto a utópica perfeição não chega, a sensação de inadequação será frequente, e o que vai diferenciar um dançarino do outro é a maneira com que cada um encara o convite para lidar com ela.

Parece – e é – cruel, mas o que o mundo quer é só aquilo que parece normal. O que destoa, ele rejeita. E assim seguimos nesse cotidiano em que se sobressai não só quem mais se encaixa no que é esperado, mas também aqueles que melhor sabem exercer a perversidade de fazer o outro se sentir impróprio.

A humorista Tatá Werneck posta fotos erguendo a blusa, feliz com sua primeira gestação: chovem comentários acerca do tamanho supostamente errado da sua barriga. O comercial do Banco do Brasil celebra a diversidade de atores com cortes de cabelo, idades e cor da pele variados: o presidente da República manda cancelar a propaganda porque ela é indevida.

Um modelo comete o despautério de morrer em plena passarela. O mundo da moda não pode parar para reverenciar o momento extraordinário, e não só segue com aquele desfile, mas com todos os outros programados para o evento.

E a gente pode até ficar se perguntando se alguém vai comprar, na loja, peças iguais àquelas que ele vestia quando caiu de cara no chão (afinal, será que há roupa oportuna para morrer?), mas qualquer tipo de questionamento assim só vai ressaltar a nossa própria inconveniência. Porque contestar é inadequado.

Um dia, quis me fantasiar de Daenerys Targaryen para o carnaval da firma. Uma alegoria contida, com os dragões de pelúcia do meu filho enfeitando os ombros, daria para trabalhar e ainda fazer graça como a heroína de “Game of Thrones”. Mas parece que, como Daenerys é linda e eu sou feia, meu marido à época riu de mim e disse que eu deveria escolher algo mais – adivinhem – adequado à minha forma física sem predicados.

No sábado passado, antes de tomar coragem e atravessar o salão para convidar Amanda a me convidar para dançar, achei por bem me aproximar da banda que animava a festa e avisar que o microfone da cantora parecia desligado – era bom fazê-lo o quanto antes, certo?, afinal estávamos lá para ouvi-la brilhar.

Ao final do show, na confraternização entre amigos, o cantor que divide o palco com ela (e de quem o microfone funcionava bem o tempo todo) entendeu que era importante ressaltar para os outros o quanto fui inadequada ao abordar a banda. Riu alto, satisfez-se do deboche e, contente, foi embora sabendo que exerceu seu papel de bastião da conformidade.

Regozijam-se os tidos normais porque mantêm a ordem, apontam os dedos e bradam contra. Porque tiram onda e adormecem em paz. Descansam tranquilos enquanto, lá fora, o mundo segue com gestações adequadas, comerciais adequados, fantasias adequadas, plateias adequadas. Ufa.

Menos mal que, sorte imensa, nunca dormiremos juntos nessa vida nem em outras próximas. Tampouco compartilharemos, os normais e eu, mais que uma mesa de bar, ou espaços virtuais em comum. É que da previsibilidade eu tenho pânico, e, do julgamento, nojo. No meu mundo, ninguém faz ninguém se sentir mal por sair do script. Inadequado é palavra que nem existe.

No meu mundo, há apenas Amandas e sua profunda generosidade em envolver nos braços uma louca desconhecida e inábil, e compartilhar com ela sua competência, seus truques, o ritmo das suas cadeiras e o cheiro fresco de laranja madura dos seus cabelos cacheados.