Um capitão sem amigos

Divulgação/Disney
Marcella Franco

As notificações do grupo da família no WhatsApp estão desativadas até 2022, mas volta e meia acho de bom tom conferir o que os primos escrevem para tumultuar a sequência de figuras fofas de gatinhos que as tias mandam. A reação é quase sempre de susto, não porque os comentários sejam surreais – eles são, mas a gente acostuma -, mas sim porque eles parecem escritos pelo meu ex-marido: magoados, amargos, ressentidos. E o ex, obviamente, já nem faz mais parte do grupo.

Além dele, expulso compulsoriamente após o divórcio, já tem alguns meses que também a parte legal e sensível abandonou a comunidade. Sobraram só os bolsonaristas e os de estômago forte, além de uma meia dúzia de desatentos o suficiente para passar sem ver pelas provocações dos da primeira categoria. O fato é que, tirando as mensagens de parabéns e os lamentos pelos familiares já desencarnados, as mensagens digitadas naquela terra são quase sempre uma enfezada defesa da política atual.

Tanto meus primos quanto meu finado digníssimo têm em comum esse traço editorial: produzem sempre obras embrulhadas em ranço. Até mesmo quando o assunto é dos mais neutros, imprimem na escolha das palavras um certo nível de deboche misturado a raiva antiga. Se a pauta evolui para análise de figuras no poder das decisões, então, ainda pior.

Eles, os parentes, vivem putos atacando quem acha patético fazer arminha com a mão, e ele, o ex, está sempre revoltado com o simples fato de eu continuar existindo. Todo mundo irado, todo mundo digitando merda. Qualquer semelhança com os discursos de ódio do Planalto não é mera coincidência.

Desconfio que nenhum deles tenha amigos. Os primos, o ex, o Jair. Porque passar raiva todo mundo passa. Desejar dor de dente a um desafeto também é intrínseco ao ser humano, assim como se imaginar autor de lindas réplicas quilométricas e ofensivas na medida. A diferença está, no entanto, no que cada indivíduo faz com essa bile depois que ela brota na garganta – você engole ou cospe? E, se cospe, tem quem ajude a limpar?

Pense em para quantas coisas boas os amigos servem. Companhia, cumplicidade, estender a mão, pegar no pé. São craques, sobretudo, em impedir catástrofes – é um amigx quem esconde a chave do carro depois que a gente já tomou todas, e é um amigx quem pode revisar os textos que a gente deseja postar no Face, mandar no Whats, citar na DR.

Sem o filtro da consciência externa, e sem a pesada mão do editor sobre os pensamentos, estamos todos na roça. Publicamos obscenidades, respondemos absurdos, ofendemos e tretamos com todo mundo, enquanto, se houvesse um amigo por perto, nada disso acontecia. Uma voz perguntaria, suave: “Será mesmo, capitão? Talvez o senhor não devesse”. E o resto (não) era história.

Tudo bem que fazer amigos na infância já não é fácil, imagina depois de velho. Talvez fique ainda mais complicado quando se é de extrema direita, imagino. Mas, se até Pinóquio, o menino com corpo e cara de pau da famosa fábula, descolou um conselheiro zeloso como o Grilo Falante, por que estes outros garotos também despreparados para o mundo não conseguiriam?

Na história, é a Fada Azul quem dá o raciocínio ao boneco. No Brasil de 2019, as coisas já há tempos não são tão lúdicas, e o única solução para a socialização dos homens sem amigos responde por um nome menos mágico: “lucidez”.