É proibido trabalhar

Divulgação/TV Globo
Marcella Franco

A ideia que se tem de que trabalhar de casa (o tal do “fazer home office” com que tanta gente sonha) é pura libertinagem não passa de uma projeção individual baseada em frustrações com o mundo corporativo. Quem é obrigado a frequentar o escritório enforcado em um terno se fantasia pelado enquanto profissional liberal, ou, quando a rotina de bater ponto é violenta, o delírio envolve tardes passadas no sofá e embaladas por programas de receita.

Escrevo esse texto só de meias enquanto a Ana Maria Braga ensina a fazer costela à pururuca. Não posso reclamar.

Tirando o look minimalista e o som ambiente, no entanto, meu escritório caseiro tem pouca diferença daqueles oficiais que ocupei em grandes centros empresariais paulistas e cariocas. Os deadlines, por exemplo, são zero flexíveis, exatamente como os das redações e agências. Talvez não haja um chefe gritando de pé ao meu lado, e o berro venha via áudio de WhatsApp, mas, percebam: é tudo a mesma coisa.

Ah, mas não tem colegas. Sim, mas tem gatas quentinhas e que não pedem pra eu dividir minha barra de chocolate. Ah, mas não tem happy hour. Sim, mas tem happy hours, porque seu eu quiser beber eu bebo, se eu quiser fumar eu fumo, pago tudo que consumo com o suor do meu home emprego. Ah, mas não tem CLT. Bixo, na boa, quem tem CLT nesse país atualmente? Me poupem.

E, justamente por estarem todos felizes nesse esquema, chefes, gatas, Ana Maria Braga e até o RH de mim mesma, essa era uma experiência que tinha tudo para ser benéfica pra todo mundo. E seria, se não fosse o Elizeu. O Elizeu é zelador do meu prédio, onde estou morando desde agosto do ano passado.

Muito prestativo, foi ótimo no dia da mudança, é sempre um baita caos chegar a um prédio novo com um monte de gatos, criança, móveis antigos que não sobem no elevador, milhares de caixas pesadas de livros e um cacto adolescente de dois metros de altura e que espeta qualquer boa alma que o tente carregar.

Também um cozinheiro de mão cheia, Elizeu inunda os corredores perto da garagem, onde fica seu apartamento, com um cheiro delicioso de alho frito, frango assado, e uma costela de fazer o Louro José abandonar a dona e pegar um busão para São Paulo. Está sempre disposto a resolver imediatamente os perrengues do elevador, que para de andar em andar feito filme de terror, e a descer para o térreo as toneladas de lixo produzidas pelas 40 unidades diariamente.

Um baita zelador, basicamente, que tem um único defeito: Elizeu não bota fé no meu home office. De tanto não me ver sair em horário comercial, nem voltar tarde da noite, deve ter começado a supor que eu levava uma vida ganha, pensionista do exército, talvez, casada com um rico que nunca chegava, eleita de algum sugar daddy.

Ainda assim, sempre que pude fazia questão de comentar, em um volume acima do necessário, que OLHA QUE LEGAL CHEGOU CORRESPONDÊNCIA DO MEU CHEFE toda vez que o porteiro me estendeu um envelope com material de reportagem para a Folha. Ou, então, quase displicente, avisar meu filho, ao sairmos do elevador na garagem em frente ao apê do Elizeu, que HOJE É DIA DE ESCREVER CINCO TEXTOS VAI SER PUXADO NOSSA SENHORA.

Elizeu cagou. Ou isso, ou não entendeu qual é a do trabalho de casa. Faz campanha nacional pela minha distração – lançou, por exemplo, há dois meses, a moda de tocar a campainha toda vez que empurra um boleto por baixo da porta. Fez conchavo com o vizinho do 43 para caçar um vazamento que ninguém nunca encontra, ainda que meu apartamento já tenha sofrido buscas diárias, por horas, ao longo das últimas semanas. Interfona para avisar que chegou carta, para perguntar se pode vir olhar o encanamento da cozinha.

Às vezes, atendo, recebo, respondo, explico. Em outras, ignoro. Finjo, sem sair da escrivaninha nem largar o computador, que estou tomando um longo banho de porta fechada e, que pena, não escutei as batidas à porta nem as mensagens de WhatsApp que Elizeu manda perguntando se este é um bom momento para subir.

Dado que nenhuma das estratégias faz mudar a conduta ousada do zelador, hoje, quando desci para apanhar o livro que o motoboy da Folha trouxe, empurrei, eu, desta vez, um papel por baixo da porta do apartamento perto da garagem, obviamente obedecendo à tendência de soar a campainha junto com a entrega.

Se Elizeu entender minha letra, amanhã, na visita vespertina em que checa se realmente não é a torneira do meu tanque o problema do prédio todo, ele aparece aqui com os cookies de chocolate branco que Cátia Fonseca ensinou na sexta-feira passada no Melhor da Tarde. Prometi que, se ficarem bons, passo até um café pra acompanhar.