Tem sempre um homem me explicando
Você já conhece a mecânica: eu escrevo no computador, publico aqui neste espaço, quem fica curioso lê, muitos gostam, outros detestam, e na semana seguinte tudo se repete. É assim já há alguns anos, sejamos nós quem formos e de onde quer que venhamos. Acontece que excepcionalmente hoje vou sugerir que, caso você, leitor, seja uma mulher, peça a ajuda de um homem para entender o que se segue.
Não que eu nos considere incapazes, longe de mim, fazemos parte do mesmo time. Sempre confiei cegamente em nosso potencial. Mas é que, de uns tempos para cá, os homens passaram a me explicar coisas com tão mais frequência do que já o faziam, que ando pensando se nascemos realmente habilitadas a assimilar alguma coisa.
O rapaz que meteu a mão na minha coxa essa semana, por exemplo. Parece haver a possibilidade de eu não ter compreendido corretamente a natureza do gesto deslavado, segundo me explicou um amigo. Ainda que se tratasse de um instrutor e o ambiente fosse o da academia, existe a chance de que o que eu supus se tratar de assédio tenha sido apenas um toque de adestramento.
Pareceu um apertão gratuito na minha perna, mas foi uma cortesia. Viu só? Se ninguém me explicasse, eu nunca saberia.
Depois de uma série de visitas de inspeção, hoje começam as obras no banheiro de serviço lá de casa, e o zelador, de quem já carinhosamente já tratei aqui nesta coluna, passou dois dias fazendo questão de explicar minhas obrigações como inquilina, inclusive aquelas que nem constam do contrato de locação ou do regulamento do prédio.
Vai ver ele gentilmente se dispôs a me adiantar com exclusividade regras ainda inéditas, mas que estarão presentes na nova versão revista e ampliada destes estatutos, a ser lançada em data a definir. E eu, esta ingrata, tendo a coragem de achar ruim.
Tanto ele quanto o porteiro e o encanador só querem meu bem quando me explicam que é preciso quebrar paredes para acessar tubulações. Eu tinha mais era que agradecer.
O médico que entrevistei pra matéria, também, foi outro cara todo cheio de boa vontade. E eu, que bruxa, aborrecida à toa. Torcendo o nariz para um ato generoso de um profissional da saúde que dedicou seu tempo a explicar para mim o que uma mulher sente durante o orgasmo e nas cólicas menstruais. Olha que, agora, acho que finalmente eu entendi. Tomara.
Já o médico que não entrevistei pra matéria era de um altruísmo sem fim – depois de aceitar responder às minhas perguntas, voltou atrás no meio da conversa, dizendo que minha pauta não era tão boa quanto aquela outra que ele, urologista, imaginou para o jornal, e que só continuaria respondendo se seguíssemos pela ideia dele. Eu quis chorar e senti raiva, mas apenas porque ainda sou uma pessoa pequena no caminho espiritual da iluminação. Eu tinha mais era que ter lhe dado um forte abraço.
Tem gente que se lembra ainda da boa sorte que tive recentemente, ao ganhar uma explicação em rede nacional a respeito de gêneros literários, bem como sobre minhas reais intenções ao escolher um deles na hora de planejar um livro. Sou uma autora infantilóide que não manja nada de biografias. Já pensou se ninguém me explica e eu esqueço meu lugarzinho no mercado editorial? Ufa, que essa foi por pouco.
Daí que, em meio a esse mar de generosidade, já tem um mês que venho sentindo um chamado. Nada a ver com o descarrego na roda de umbanda que frequento, mas com a escola de kung fu que abriu na rua de baixo. Espio as aulas dia sim, dia não, e, além de pirar na luta quase dança, ainda acho fabuloso o fato de haver mulheres em todos os grupos, e de um dos mestres se chamar Manuela e portar uma faixa preta nos quadris.
Em outras épocas eu interpretaria meu fascínio como um sinal de que é hora de fazer a matrícula, mas, como ando assim, digamos, muito mulher para compreender as coisas sozinha, achei por bem me abrir com um dos alunos: meu filho, dez anos, homem, turma infantil das 19h.
Se ele achava que eu tinha capacidade para aprender os exercícios, se na opinião dele eu ia conseguir chutar bem, se ele vê alguma possibilidade de as pessoas rirem de mim enquanto erro tudo na frente do espelho – não deixei de fazer nenhuma pergunta.
Guardei para o final aquela que considerei a mais difícil de responder (mesmo quando se é um homem parece que vez ou outra rola uma incerteza, me explicou um psicólogo certa feita, para uma reportagem). “E se eu não nasci para lutar porque não sei como se bate de verdade em alguém?”, indaguei.
E ele, muito masculino, devolveu: “Daí é só buscar dentro de você toda a irritação com o que não pode mudar na vida, e descontar a frustração no tatame. É muito simples, mãe, só não vê quem não tá a fim”.
Finalmente uma explicação decente. O mundo talvez ainda tenha salvação.