O crime do cafuné

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Marcella Franco

Um Jesus Cristo cabeçudo feito em biscuit divide o scroll com blusas de leopardo e manga bufante. Se descer mais um pouquinho a página, aparecem marmitas de estrogonofe fitness, roupinhas para cachorro, aulas de italiano e uma máquina de limpar carpete. Parece a antessala do inferno, mas é só um grupo fechado no Facebook.

Somos mais de 260 mil membros. A ideia é que, lá, cada um peça indicações de um serviço ou profissional específico, ou ofereça seu trabalho ou produto. Quem se interessar entra em contato. É no tal grupo dos pontinhos, por exemplo, que anuncio meus cursos de redação, e onde já vi minha vizinha fazendo promoção de sabonetes. Estamos todos nos virando.

Postagens populares geram um sem número de perguntas sobre quanto custa, quantos vêm, como funciona. E, como as regras da comunidade compreendem que valores e informações só podem ser passados via mensagem privada, mesmo o serviço mais incrível de todos não vê muita criatividade na interação dos clientes em potencial – é inbox que o match se desenrola.

Só que aí veio o Leo para tumultuar tudo. Novo no grupo, fez o début de apresentação do seu trabalho na sexta-feira e, no sábado, já era a publicação mais lida e comentada. Dos 145 emojis, mais de uma centena gargalhava. Dos 114 comentários, apenas quatro pediam detalhes sobre o atendimento.

Leo oferece cafuné. Atende na cidade de São Paulo e adjacências, e baseia seu método na técnica de Comunicação não Violenta. Em atendimentos de 45 minutos, aplica carinho na cabeça dos clientes, que também podem ficar à vontade para desabafar sobre questões que os estejam afligindo, ou conversar sobre o clima, ou contar os planos para as férias com as crianças em julho.

Assim como acontece com o Jesus Cristo de biscuit, há quem possa considerar o trabalho de Leo supérfluo. Acontece que, no post do medonho filho de Deus colecionável, ninguém questionou o talento do artesão – ficou todo mundo lá, olhando para o boneco inútil, mas sem dizer palavra a respeito da sua falta de serventia ou estética questionável.

Já no post de Leo, a ideia parecia mesmo aniquilá-lo.

Charlatão, louco, aproveitador, psicopata. De alguém disposto a distribuir afeto, Leo rapidamente se transformou em delinquente. Fuçaram seu perfil pessoal. Encontraram fotos de bundas em um de seus álbuns. Vasculharam a biografia pública atrás das credenciais acadêmicas. O retrato de perfil, sem camisa e tocando violão na cachoeira, só podia significar algo muito maligno.

Leo começou respondendo às perguntas com calma. Sua intenção era ajudar pessoas sozinhas e carentes a receber algum tipo de afago. Terminou deletado pela administração do grupo sem qualquer explicação.

Terapeutas locais se apressaram a justificar que não se pode comercializar ajuda psicológica sem formação universitária – mesmo que Leo não estivesse vendendo consulta, e sim cafuné, mas isso não conta, porque importante mesmo é dar lição de moral e botar banca. E, se possível, ridicularizar tudo aquilo que não se reconhece e aceita dentro da uma visão conservadora de mundo.

Escolher homens e mulheres para levar para a cama via aplicativo de celular, como num menu de restaurante, é admissível para os críticos de Leo. Deitar-se numa maca e permitir que alguém vestido de branco cubra seu corpo com pedras quentes para curar doenças, também. Engolir um pedaço de pão de olhos fechados porque alguém lhe disse que aquele é o corpo de Deus, também é sussa.

Ninguém pede as credenciais do padre, da massagista, da mina do Tinder. Ninguém questiona a utilidade ou o bom gosto dos ensaios fotográficos de gestantes seminuas ou recém-nascidos enrugados. Outro dia, uma garota se ofereceu como “Melhor Amiga Profissional” no grupo, e ninguém falou nada, vasculhou nada, apedrejou nada. Talvez a tenham até contratado – quanto custa, quantas de você vêm, como funciona, quanto fica o frete para Perdizes.

Mas o Leo, não. O Leo merece ser expulso. Em uma época em que todo mundo sabe melhor do que os outros a respeito de tudo, quando se pensa que todos têm jurisdição sobre os corpos e sentimentos alheios, um garoto de 20 e poucos anos que quer distribuir cafuné só pode mesmo ser um vigarista.

Volta e meia penso sobre como não ganho cafuné de ninguém nunca. Meus pais são maravilhosos, mas pouco afetuosos fisicamente. Meu filho é uma criança, e meu namorado não é afeito a este tipo de carinho. Ressinto a falta de toque e aconchego tão típicas da infância, quando alguém sem diploma podia botar a gente no colo – se assim a gente escolhesse – e nos aplicar uma sessão de cafuné.

Acontece que estamos presos em bolhas de interação social virtual, das quais, ao que parece, só é permitido escapar se for para visitar um especialista. Se for para pagar caro por algo. Se for para agir de acordo com a aprovação alheia. Foi isso que aprendi hoje, quando, ao ver o post, me animei em pagar pelo carinho do Leo (enquanto quem não quisesse pagar podia apenas pular o anúncio). Mas deletaram o post, deletaram o Leo, e deletaram as boas intenções do mundo.

Caramba. Eu só queria um pouquinho de cafuné.