Para que serve um pai herói?
Meu pai nunca foi meu herói. Na dicotomia de que às vezes são feitas as relações humanas, era mais provável que eu o encaixasse no papel de vilão do que no de salvador da pátria. Explosivo, insensível, grosseiro. Foram tantos os jeitos que encontrei de reduzi-lo aos seus conhecidos desvios de personalidade, que, por muito tempo, nossa fábula de pai e filha não me deu qualquer trabalho – bastava malquerê-lo, e pronto.
A gente cresce ouvindo histórias. E as que tinham meu pai como protagonista nunca foram das mais gloriosas. Ele até caprichava no churrasco, caçava rãs vestindo sunga e botas de motoqueiro, foi campeão de vôlei e redigiu grandes matérias. Mas, sombreando essas conquistas, havia sempre as narrativas de ausência e irresponsabilidade, e a minha tendência tremenda a tomá-las como predominantes.
Minha primeira memória legítima são as manhãs de domingo em que ele decidia aparecer em casa, e me acordava com a combinação dos sons da máquina de escrever e da corrida de Fórmula 1 na TV. Se zuniam os carros, eu sabia que ele estava na sala. Fritava bacon para o café da manhã, e me levava na garupa até a redação do jornal para entregarmos, juntos, as folhas almaço com a coluna do dia seguinte.
Foram décadas de confronto. Mudanças de cidade, meses em silêncio. Seu gênio irascível, minha luta para encontrar meu lugar no mundo. Por quatro vezes quase perdemos para sempre a chance de entender que, nessa nossa valsa, mais importante do que perguntar qual o papel do outro, era preciso antes entender quem somos nós de verdade.
Quem foi que disse que ele tinha que ser herói de alguma coisa? Onde estava escrito que era meu destino ser vítima em algum momento? De que precisávamos, como nos atenderíamos?
Construir histórias significa fazer escolhas. Não apenas para criar personagens, mas também na hora de abrir mão de enredos. E foi só quando passei a enxergar meu pai como gente, e não como ídolo, que pude, finalmente, amá-lo por completo. Por sabê-lo tão humano, conquistei a trégua, e apaziguei o coração. Que sorte a minha ter tido tempo.
Neste Dia dos Pais, mais uma vez errei no presente, cheguei atrasada ao almoço, e não ri das piadas ruins que ele fez. Bebemos e brindamos. Não debatemos nada profundo. Falamos de viagens, pratos de porcelana, planos de aniversário e jogos de futebol. Não precisei declarar minha devoção, ele não teve que reafirmar seu carinho. No nosso código secreto de olhares e sentimentos, nos cuidamos em mais um capítulo da história sem fantasia.
Um domingo típico de heróis quebrados e falsas princesas, exatamente como a vida real deve ser.