Sou mãe, desculpa aí
O motorzinho esguicha fragmentos de dente e água por um perímetro que vai muito além da boca. Dr. Henrique enxuga tudo com uma gaze, enquanto me questiono por que caprichei na maquiagem. Agora só há base em metade da cara, e eu vou ter que ir assim mesmo para a reunião da escola. Na escala da futilidade, marca entre sete e nove pontos quem quer ir bonita ao encontro de pais e mestres.
Divago em silêncio no elevador sobre o fato de uma assembleia que reúne muito mais mães do que pais ainda ter esse nome secular, e no espelho dá para ver que meu ombro e pescoço estão cobertos por um fino pó de resina da restauração. Estou atrasada há quatro minutos. A Zona Azul venceu já há mais de 15.
Óbvio que quem desenha o cronograma da reunião quer deixar claro logo de cara quais são as mães ponta firme e aquelas que são parte do meu time, porque está programada para os primeiros 30 segundos a interação fofa entre filhos e família. Quando finalmente consigo chegar à sala de aula, o único aluno sozinho tem meu nome no RG. Equipe de uma mulher só, essa a das mães que se atrasam.
Eu não devia ter agendado o dentista para o mesmo dia da reunião e da entrega daquelas duas matérias. Se não tivesse ido tratar canal, teria chegado à escola a tempo, talvez até mesmo antes de tudo, pode ser que eu tivesse aberto o portão do colégio de madrugada, chegaria antes que todo mundo, eu ia ser muito eficiente, tenho certeza absoluta.
Mas não havia data para consulta a não ser hoje ou no final de novembro, e penso que sou uma pessoa um pouco pior no mundo quando estou com dor de dente, de modo que marquei. E me atrasei. E agora estou aqui correndo para alcançar as outras famílias no exercício fofo proposto, o garoto agradecendo minha presença e contando que teve medo que eu não chegasse. Eu também tive (pensei, mas não disse).
Essa escola anda muito moderna. Hoje tem um fotógrafo fazendo imagens de todos, e tento parecer engajada e pontual quando ele passa por nossa dupla. Não posso mexer no celular, ou serei a mãe dispersa no álbum exposto no site da escola. Espero que meu chefe compreenda e perdoe a demora na resposta sobre o primeiro parágrafo da reportagem. Digam xiiiiis!
A segunda parte da reunião – que bem podia ter sido a primeira, pro meu atraso não causar danos emocionais eternos no meu único filho, mas não – começa já sem as crianças na sala. Descolo uma cadeira ao centro e bem na vista da professora, porque quero compensar agora todos os males que provoquei em minha existência como mãe. É hora de brilhar.
Quero prestar atenção. Quero estar atenta. Primeiro assunto é a importância de dialogar com as crianças em casa. Ufa, acho que nessa eu gabarito. Segundo assunto, empatia. Estamos bem, vamos sobreviver, a previsão é de que tudo dê certo. Mas a pauta vira, e agora é impossível atingir minha meta. Vamos falar de lição de casa e rotina de estudos, convida a professora. E eu tenho alternativa?
Experimente ser mãe solo de filho único, com emprego em tempo integral, sem babá ou faxineira, nem papai nem vovô nem vovó morando por perto. Agora se meta em uma reunião de escola. Você já está deprimida ou ainda falta um pouco?
É muito duro admitir o próprio fracasso em uma ocupação que escolhemos pra nós mesmos. Ninguém me obrigou a engravidar, é verdade, mas também ninguém me avisou que eu ia ficar sozinha desde sempre. E que, por trabalhar até tarde, não ia dar conta de ajudar a criança no dever de casa ou na preparação pra prova.
O menino faz contas e textos sempre sozinho. Aquele 6,5 em Matemática sou muito mais eu que ele. Quando dá dez da noite, ainda falta tanta coisa minha, que eu mal posso ser dele. Será que ele vai passar de ano? Será que se sente diferente dos outros? Será que ele queria ser filho de outra pessoa? Essa infância nunca mais volta. Estraguei tudo pra sempre. O conhecimento é cumulativo, diz na lousa uma frase. Será que ele me perdoa?
A professora ainda fala, e eu acho que quero um abraço. Pode inclusive ser um abraço dela. Surge o aviso de que as vagas para o período da manhã no ano que vem estão quase esgotadas. Que é preciso definir o que se quer. E pagar até dia 30.
Alguém tem alguma pergunta, ficou com alguma dúvida? Sim, prô, eu aqui, de verde, bem no meio, maquiagem borrada, dente remendado e cara de choro.
– Como é que a gente faz pra ser mãe e sobreviver a toda essa culpa?