Ágatha e os contêineres

Reprodução/Instagram
Marcella Franco

Sentada no colo da mãe, em um banco inteiriço da kombi branca, Ágatha desfrutou de seu último invólucro antes de morrer com um tiro de fuzil nas costas. Agora, passam por perícia o veículo e seu motorista – afinal, é preciso descobrir como foi perfurada toda a proteção de um abrigo supostamente seguro, que transportava pessoas morro acima.

Enquanto o caixão da menina baixa na sepultura, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos está ocupada. Não redige manifestos indignados. Não esbraveja pelo núcleo dizimado, pelo pai que chora ao vivo no programa de TV abraçado à boneca favorita da filha. Damares Alves precisa, isto sim, lidar com a urgência que é ameaçar com processos uma revista feminista.

O primeiro punhado de terra cai sobre Ágatha. Seus parentes gritam de horror e descrença. Damares, em sincronia quase ensaiada, posta um tweet em que garante ter encaminhado denúncia de apologia ao crime pela Revista AzMina. Era inadiável, parece, acusar jornalistas brasileiras de divulgar informações da Organização Mundial da Saúde sobre o tema aborto.

Porque explicam como funciona um procedimento desses quando realizado de forma segura, as repórteres merecem ser expostas em redes sociais, deve pensar a ministra. Damares não tenta impedir a divulgação de fotos e dados pessoais das mulheres, tampouco condena as ofensas e ameaças. 140 caracteres, enter.

Ágatha está enterrada, os processos contra a revista, encaminhados. Tudo na mais completa ordem. Afinal, vivemos em uma sociedade que entende que a vida de um feto de 12 semanas tem mais valor que a de uma garota de 384. Um país em que é mais importante chorar abortos do que o assassinato de Ágatha, oito anos, perfurada de bala, os dois últimos suspiros no colo da mãe-contêiner na porta do hospital.

Em visita ao Brasil esta semana, para o lançamento de um livro, a escritora feminista ítalo-americana Silvia Federici comenta que, aos olhos do mundo, nós, mulheres, somos contêineres. Viemos a esta vida para conter e gerar crianças que, com sorte, vão desviar de tiros suficientemente bem ao ponto de se tornarem adultos.

Como na ficção tão realista de Margaret Atwood, formamos todas uma legião de aias, destinadas exclusivamente à servidão e à reprodução. Não devemos questionar, nos indignar, publicar informação ou exigir perícia. “Não há lugar para nós neste mundo”, completa Silvia, explicando que, do jeito que gostaríamos de ser, não cabemos por aqui.

Para ela, a única solução possível é modificar a ordem atual e abrir espaço – e não o oposto sugerido por aqueles que comandam, um cenário em que são as mulheres que se transmutam a fim de se encaixar.

Neste mundo, não havia lugar para Ágatha. Nem há para jornalistas que explicam o aborto. Mas há, sim, lugar para filhos de mães que não têm a condição ou o desejo de parir e cuidar de outra vida. Fetos de mulheres que vão amargar existências solitárias, isoladas de qualquer ajuda prática ou financeira. Cogitam até mesmo forçar lugar para filhos fruto de estupro ainda que a vítima não queira maternar o absurdo.

Mas não reclamem. Não examinem a kombi baleada. Não descubram nem revelem a insensatez generalizada. Vocês são veículos: sigam como invólucros metálicos, gélidos, ilógicos e funcionais.

Uma faixa na manifestação da comunidade pergunta por que o Estado segue matando. Faz-se urgente responder antes quando é que vão parar de legislar sobre nossos corpos. Porque, se não nos pertencemos nem em vida, que dirá o que acontece quando decidimos peitar a morte.