A ioga me deixou de quatro
Estou de cabeça para baixo, a bunda para o céu e as mãos espalmadas no chão, com os pés plantados em um tapete de borracha que me custou R$ 130. Uma gota de suor ligeira vem traçando rota entre os fios de cabelo, da nuca à testa, e explode em uma das ranhuras ao lado do calcanhar esquerdo. Nas instruções não havia nada sobre limpar com álcool, vou arriscar e ver se estraga. Mantendo o corpo imóvel, assopro para testar se a gota morta ainda caminha. A professora manda respirar só pelo nariz. É minha primeira aula de ioga, e acho que vou morrer.
Disseram que era bom pra mente, ainda mais a mente de gente desequilibrada. Li promessas de mais concentração e menos ansiedade, e, na meditação que antecedeu os exercícios da aula inaugural, eu já fechei bem forte os olhos e contei em quantos minutos conseguia ficar mais calma. Em 20 segundos, pensei na roupa lavada que me esqueci de pendurar e no saco vazio de ração da gata. Quanto tempo mesmo até bater o sinal da saída?
No vasto cardápio de estilos que a escola oferece, nomes que a princípio não me dizem nada, até que, em uma rápida busca na internet, entendo que há opções para quem busca maior ou menor permanência. Considero se estamos falando de tempo passado dentro da escola. Quem sabe é um papo sobre vida eterna, e eu sempre soube que ioga tinha um lance espiritual no fundo.
Minha fé anda abalada. Difícil acreditar que há um Deus que permite ao mesmo tempo que o Bolsonaro seja meu presidente e que eu precise parar de consumir leite e queijo se não quiser morrer antes dos 50. Na recepção, vendem-se imagens de deusas hindus repletas de braços e cara plena de quem está com todos os boletos pagos. Talvez ainda me reste salvação.
Uma das alternativas, parece, está na sequência poderosa de posturas – aquilo que, antes da matrícula, eu chamava de posição denotando toda a minha ignorância. Porque a ioga tem um vocabulário próprio que vai muito além dos nomes gringos para falar nomes de animais e objetos. Tapete chama mat, aula chama prática, e praticante não chama praticante, mas, sim, yogi se for menino e yogini se for menina.
Já no segundo dia, arrisco a curadoria de posturas de um professor indicado por uma amiga. Não me atento ao nome nem dele, nem do estilo, porque confio na Carolina. Diferentemente de ontem, quando só havia mulheres sobre os tapetinhos (mats, mats, perdão eterno), nesta sala o público é predominantemente masculino.
Fortes. Jovens. Sarados. Cabeludos. Iguais a mim na imagem que construo nos meus sonhos. Mas sou determinada e vou ficar até o final. O professor parece admirar minha decisão, ou em hindu essa cara é de pena e eu apenas ainda não sei traduzir.
Cachorro olhando para cima, cachorro olhando para baixo, gato, cobra. Esfinge, prancha, vela, cacto. Colo do colega ao lado, na tentativa de acompanhar a dinâmica. É tudo muito rápido, a sala está muito cheia. Faz uns 30º C lá fora, aqui dentro deve estar 50º C. Cogito ir embora, talvez aumente o fracasso.
Alívio: estão encostando os mats na parede, deve ser agora o relaxamento. Parada de mão, pé na parede, força nos braços, propõe o Luiz, que agora eu descobri como se chama. Risco seu nome da agenda, ao menos até eu virar a Fernanda Lima.
Dia três, e, agora de pé com as pernas abertas, faço a postura da guerreira. Há variações, e eu posso tanto sofrer com o quadril virado para a frente, quanto alternar para uma rotação lateral olhando para a parede. A vida é feita de escolhas. Sinto que talvez esteja funcionando. Um arrepio de poder percorre minha espinha.
Confiro o alinhamento, braços no lugar, mãos corretas, o pé inteiro plantado no chão, força na perna de trás, joelho da frente no grau indicado, dedos agarrando o solo, respiração nasal compassada, presença total e irrestrita, mente focada, olhos abertos e fixos em um ponto à frente.
“Sua língua não está aberta no palato”, adivinha a professora. Desmorono. Quem nasceu pra Smart Fit não vai nunca chegar a yogini. Vou arrumar minha bag – na ioga a gente não usa bolsa – e me recolher à minha incompetência. Adeus.
Já faz três meses que eu juro que nunca mais volto, e apareço na escola no dia seguinte. Já me conhecem pelo nome, troco confissões com a secretária, a professora me dá dicas de saúde ginecológica. Tenho meu cantinho cativo no tatame da recepção, e meu sabor favorito de chá. Evoco piadas internas com a moça da copa. Rimos juntas. Vario de prática, me penduro na parede, passo três minutos apoiada no topo da cabeça com as pernas encaixadas nos cotovelos. Sou um case de sucesso.
A ioga propõe vencer limitações físicas. Força ajustes. Tira todo mundo do conforto, desvirtua a gravidade e o equilíbrio. Reduz a ideia que se tem de mundo a uma chama isolada dentro do peito de cada um. Ioga é o conforto dentro do desconforto. E agora eu não sei mais viver sem.