Você não é obrigada a nada
Quando eu estava grávida, torcia pra que não fosse uma menina. Eu tinha medo de ter uma filha e ela crescer me detestando, de passarmos a vida inteira brigadas, de ela me achar ridícula e querer ir embora para longe. Eu torcia pra não ser uma menina porque não sabia lidar com menina nenhuma, nem mesmo a menina que eu era.
Tem mais de uma década que eu dei à luz um garoto, e fiquei desde então esperando a oportunidade para me redimir do medo cego. Porque, em dez anos de amadurecimento, aprendi sobre a força e a união femininas, e sobre como, curada das minhas feridas, eu teria muito a colaborar na criação de outra mulher.
É provável que esta menina nunca aconteça – já tenho 39 anos, um único ovário, e poucas vantagens diante daquilo que os médicos gostam de chamar de relógio biológico.
Mas esta menina dá seus jeitos, e ainda que não venha de mim, ela vem para mim o tempo todo: na forma de mulheres mais jovens que cruzam meu caminho, ela se manifesta secretamente, a mandar acenos de alma discretos. E, inserida nesses encontros, a minha menina me escuta atentamente desaguar conselhos importantes.
Eu venho repetindo para ela, ultimamente, uma das mensagens fundamentais da jornada de ser mulher. Você precisa saber que não é obrigada a nada na vida. A gente demora a aprender isso, e eu gosto de dar atalhos para as minhas meninas.
Há poucos dias, em uma tarde ensolarada de domingo, revi uma adolescente que, quando conheci, tinha o rosto lavado e fresco de quem acaba de se levantar da cama. Agora, ela usava bastante maquiagem, e batia uns longos cílios postiços por trás dos quais demorei a reconhecer os traços bonitos que havia visto uma única vez, naquele rápido encontro.
Dissemos “oi”. Ela fazia força para esconder um roxo no pescoço com o cabelo curto, e garanti que não funcionaria porque fora a segunda coisa que notei quando a vi de longe (a primeira, as pestanas).
Perguntei se tinha valido a pena ganhar aquele hematoma intenso. Garantiu que não. Contou que, em meio aos beijos que trocava na balada, o homem tombou seu pescoço para o lado e aplicou o golpe com a boca. Demorei para ver que não tinha que aceitar aquilo, explicou. Ela teve dúvidas se era obrigada a gostar.
Na construção da identidade de mulher que vem fazendo, ela cogitou que talvez fosse necessário dizer sim à violência travestida de amor e sexo que às vezes nos ofertam. E, pode ser que nem percebesse, também emulava o que considero um dos maiores símbolos atuais da opressão e da ditadura da beleza: uma maquiagem carregada e padronizada.
As redes sociais estão lotadas de vídeos de meninas jovens ensinando produções com muita base pesada, sombras, correções do que nunca esteve errado, e sempre, sem depender da ocasião, os pares de longos cílios postiços colados às pálpebras.
É assim que uma mulher deve sair de casa se quiser ser considerada bonita, parecem dizer. Se quiser se encaixar no padrão. Se quiser cumprir com aquilo que dela é esperado.
Nisso, aquelas que não sabem, não podem ou não conseguem cumprir com o ritual da base, sombra, correção, cílios, sofrem caladas por entender que, assim, estarão automaticamente excluídas do lugar que gostariam de ocupar.
E, vejam, ninguém está dizendo que não é certo usar a maquiagem de que se gosta. Que é errado botar postiços para ir à padaria logo cedo pra buscar pão. Estou só mesmo repetindo à minha menina que não é preciso. Que ela não é obrigada.
Sei que ela vai enfrentar essa dúvida ainda muitas vezes ao longo da vida. Mas eu gostaria muito que ela se lembrasse dessa nossa conversa, e soubesse que não, que nunca, que jamais será obrigada a permanecer com quem não quer, a aceitar o que lhe fere, a abaixar a cabeça para a insensatez, a se calar perante a opressão.
E, se um dia você titubeou e se esqueceu da sua liberdade, não tem problema. Sempre há tempo para fazer diferente. Porque o mundo dá voltas, menina.
Ele é lindo, e azul, e todo seu. Aliás, anunciaram hoje no jornal que duas astronautas fizeram a primeira caminhada espacial 100% feminina, filha, eu não sei se você viu. E eu aproveitei esse dia importante para vir aqui te contar de novo que você não é obrigada a nada, menina, mas você pode absolutamente tudo.