Já tentou fazer sentido hoje?
Tá tudo muito esquisito. A velocidade das coisas que não dou conta de acompanhar, um presidente voa embora de seu país e eu ainda nem tive tempo de saber o que acho da viagem, do trajeto, do passageiro. Alienada, talvez, atrasada, mais provável. Ruas em outro canto pegaram fogo, um preso é solto, hienas, leões, óleo nas praias, reformas.
Andando pela rua escutei um miado no cano ligado à calha da loja de roupas. Domingo, tudo fechado. Um caminhão de bombeiros muito grande para transportar animais liga a sirene quando passa em frente ao bar, comigo dentro. Eu não sei o que vou fazer com esse filhote, agora. Ser responsável pelo outro quando mal se é responsável por si.
Já tentou dar comprimido para gato? Já tentou fazer sentido quando o mundo lá fora derrete feito vela de sete dias?
Pensei em usar a tampa da caneta como micropá e cavar a pele do rosto para ver até onde se chega. Se eu usasse essa espinha como atalho, porta de entrada. Talvez eu encontre meu cérebro. Pode ser que lá dentro alguma explicação esteja dando sopa.
Sinto vontade de comer bifes de bichos que nem existem. Invisto um bom dinheiro no suco de açaí do mercado chique da esquina, para depois esquecer a garrafa fora da geladeira e o açaí explodir manchando a parede do apartamento que nem é meu.
Que custa uma fortuna todo mês. Igual à conta de luz, e olha que eu nem tenho ar condicionado.
Vai ver é porque meus banhos demoram, enquanto fantasio sobre enfiar o sabonete inteiro na boca. Ou sobre como seria se eu trocasse o chuveiro pelo tanque da área de serviço, se eu ia caber, se era melhor cruzar as pernas ou deixá-las para fora.
Eu não sei mais se te amo. Não me lembro se terminei de ler aquele livro que você me deu. De quantos dias eu preciso para caminhar daqui até a Austrália? E se eu parar na sua casa antes?
Acho que as redes sociais estão me fazendo mal. As coisas lá são exatamente como eu queria que elas fossem, mas não são. Eu não tenho aqueles peitos, olha que móveis mais lindos, mentira que existe uma praia assim tão azul. Minhas paredes têm suco de açaí explodido.
O prazo da biometria está acabando. Posso mentir minha identidade? Se eu roer a pelinha em volta das unhas meu nome aparece diferente?
Um jornalista bateu no outro e apareceu ao vivo no rádio e na televisão. Conheço os dois. Torço só para um. As pessoas queriam um desfecho diferente, mais surreal e sangrento, foi o que li numa matéria de internet. Eu, que nunca quis matar ninguém, queria saber quantas vezes por dia um assassino pensa em como teria sido a vida se tivesse mudado de ideia minutos antes. Vou comprar uma violeta e deixar morrer só para testar em quais dias da semana me arrependo.
Eu não devia ter gastado aquele dinheiro. Nem dado aquele beijo. Onde eu estaria se nunca tivesse enviado aquela mensagem? Como faz para tirar a cabeça entalada no portão de ferro?
Quero sair sem roupa na rua. Mas meus peitos não são de Instagram. Ligo para a amiga astróloga. Ela explica que tá tudo esquisito mesmo, e que vai continuar piorando até janeiro do ano que vem. Mas isso é muito tempo. Mas é pro seu bem. Mercúrio não está retrógrado? Até está, mas ele é o menor dos seus problemas.
Já tentou escrever texto com retrogradação astral rolando?
Junte uma colherinha de chá de manteiga ou requeijão, faça uma bolinha, ponha o comprimido lá dentro e enfie no fundo da goela. É importante que ao menos os gatos sejam medicados em meio ao caos.