A sem-vergonha da academia

Porque sei que amanhã vou encher a cara de uva passa, estive nos últimos dias internada voluntariamente na academia. É um lugar que definitivamente não consta da lista dos meus points favoritos da vida, mas que costumo frequentar com certa assiduidade, dada a idade e os proporcionais tríceps e glúteos, tão frouxos quanto eu nas minhas metas para emagrecer.

Dos usuais três dias na semana, pulei para frenéticos sete, chegando ao absurdo de cogitar dobrar a dose em algumas noites solitárias desde que o filho entrou de férias e se mudou temporariamente para a casa da avó. Há urgência na causa: se me livrasse de ao menos três quilos até as festas, poderia repô-los sem culpa em todas as ceias que se aproximam, debruçando faminta sobre o tender e chafurdando feliz no pavê de nozes.

Isso que minha matemática malandra não incluiu nas tabelas as calorias dos drinques que obviamente entornarei, especialmente na parte em que alguém – tem sempre alguém – resolver abrir os trabalhos do bate-boca político familiar. Como já disse o filósofo, o Brasil e os meus tios me obrigam a beber.

Dei-me ao luxo de pular a grade de aulas, no entanto. O desespero tem limites. Entendo que só quando for preciso eliminar 60kg, ou em outras palavras perder eu de mim mesma, terei coragem de encarar, por exemplo, os 50 minutos em que todo mundo sobe numa bike estacionada e pedala por cenários fictícios projetados em um telão.

Se esse dia chegar, mais provável que eu faça um bico de entregadora do Rappi, para que o sacrifício pelo menos se colora de alguma emoção. Em vez da paisagem montanhosa pixelada da academia, mais válido correr contra o tempo, os assaltantes e os motoristas insanos no trânsito da capital paulista. Terminaria magra e dona de uma história de superação.

Trabalhei com afinco no combo esteira e aparelhos, imaginando que seria o suficiente. Enfrentei hordas de pessoas saradas, revezei com homens gritões, e que me lançavam olhares de ódio a cada vez que precisavam voltar a carga de 10kg para uma tonelada.

Assim como acontece nas ruas, sou uma cidadã civilizada também na academia. Levo minha toalhinha para evitar que meu suor atômico corroa o estofado das coisas, passo o paninho azul descartável embebido em álcool a cada série finalizada, e não espalho pozinho de whey em volta da área do bebedouro, sem me importar com meus amigos acadêmicos.

Mas mesmo com toda essa minha educação e polidez, a recepcionista nunca me trata da mesma maneira com que trata os outros alunos. Ela faz diferença. Para mim, há sempre um risinho cínico, porque ela já conhece o meu tipinho.

Na matéria do jornal, me chamam de portadora da síndrome do atleta de fim de semana. Na academia, sou aquela sem-vergonha mesmo. Que come um leitão na noite do 24 e acha que, se fizer step de costas por um semestre inteiro, vai dar conta do problema que ela mesma se causou.

Hoje, correndo os míseros cinco quilômetros que meu pulmão de ex-fumante tolera, prevendo que muito provavelmente já faz anos que meu pai deixou de tomar vinhos desta marca que comprei de presente pra ele, e que ele vai dizer que é vinho de pobre e vai avisar que é brincadeira e mesmo assim vou me ofender e chorar sentada do lado do presépio acendendo o primeiro cigarro depois de seis meses, hoje, correndo, eu deliberei comigo mesma, sozinha, e vivi a iluminação.

Compreendi, ali, entre as TVs que transmitiam uma o canal OFF, e outra, a Rede Globo, encarando o bebedouro de onde jorram tanto água quanto um líquido energético por apenas R$ 14,90 o mês, ali captei que o verdadeiro segredo da felicidade no fim do ano é entender as suas obrigações, mas adaptá-las até que elas fiquem digeríveis.

Como quando você morde a maçã da maionese certo de que ela era uma batata, e infelizmente não vai dar para cuspir ali na frente de todo mundo, à mesa, e é preciso dar um golão na coca pra que a maçaroca desça sem drama. Assim.

Correndo na esteira, assimilei que, sim, malhar este corpinho surrado, velho e exausto é uma necessidade, mas que, assim como o Natal em família, onde a gente tem que ir ano após ano, também dá pra ser ajeitado até que fique de um jeito que a gente goste.

A música, por exemplo. Ninguém precisa maratonar ao som de versões eletrônicas de Jorge Vercilo ou dos últimos sucessos do Alok. Eu corri ouvindo Elis Regina. E, no refrão de “Maria, Maria”, abri os braços pros lados, bem esticados, de olho fechado e passando toda a vergonha que cabiam nos meus imutáveis 60kg.

Pronto, sou a esquisitona que nunca vem e, quando aparece, dá vexame. Agora, pelo menos a recepcionista tem um motivo justo pra não me cumprimentar nunca mais.