Manhês em quarentena

FAB
Marcella Franco

Os números do coronavírus são impressionantes, mas mais impressionante mesmo é o número de vezes que meu filho já falou a palavra “mãe” na manhã de hoje. Estamos no primeiro dia de isolamento – ontem, ele foi à escola apenas para buscar materiais e orientações sobre o ensino à distância. Surpreendente, mas não encontrei até agora entre os papeis na mochila algum que me dissesse a verdade: que este vai ser um período infernal.

O portal virtual do colégio tenta de algum modo reproduzir o que aconteceria em sala de aula, não estivesse o mundo seguindo um roteiro clássico de filme com o Morgan Freeman. Mas faltam os amigos, o clima da classe, e falta, especialmente, a professora. O que dizer dessa mulher que eu mal conheço e já amo?

A única vez em que meu filho não usou o pronome “mãe” para evocar minha atenção foi quando trocou meu nome pelo dela. “Prô, me ajuda?”, pediu, confuso com a plataforma bugada e cheia de pastas de lição em branco, e confuso com a figura que, em vez de giz e canetões, empunha uma colher de pau coberta de lentilha.

Mas foi um breve deslize, lapso mental de rompimento recente. Afinal, até sexta passada era dela que ele recebia todo o auxílio, todo o carinho e suporte e cobranças necessárias a um menino de 11 anos que agora me aponta na tela do computador um exercício sobre potência em matemática, e outro do período paleolítico em história.

E eu, o que eu entendo disso tudo? Faz pelo menos 25 anos que tive essas aulas no colégio, e não faço ideia de por onde começar a orientá-lo. E, ainda que soubesse o caminho, ainda desconheceria a fórmula mágica que ensina mães em home office a coordenar demandas do trabalho com as da prole.

Uma amiga produtora de TV pergunta no grupo das meninas se alguma de nós topa gravar programa que vai mostrar atividades lúdicas boladas pelas famílias para o período de quarentena. Outra amiga responde que ela topa, sim, e que as atividades lúdicas às quais ela vai submeter os filhos envolvem faxina e arrumação de armários.

Porque é isso, a rotina não para. O chefe não vai perdoar minhas entregas (e é bom que não perdoe mesmo, pelamor, precisamos todos mais que nunca nos manter empregados), a casa não vai perdoar mais que dois dias sem vassoura e pano, há que se lavar roupa, há que se fazer comida, a cachorra ainda tem que sair para passear, ainda que seja de máscara.

Paro três minutos para conferir o WhatsApp, ouço os áudios de colegas da mesma classe enfrentando problemas semelhantes e pedindo socorro, uma mãe se solidariza, quem quer o DVD do “Croods” emprestado, e sorrateira me perco no meme que alguém mandou noutra janela, a imagem de uma mulher em frente ao computador com três crianças que jazem amarradas no tapete logo atrás. Eu rio.

Só que nem bem começo a achar graça e cogito compartilhar no grupo de mães do bairro, e sou convocada para ajudar a fazer rodar o vídeo sobre constelações da aula de ciências. Está travado. Eu também.

Levei três horas para conseguir terminar de escrever esse texto. Só nesta frase, foram 16 minutos. Contabilizei 212 “mães”, 74 “manhê”, e isso que nem todas as falas da criança foram testadas para o vírus do vício verbal.

A cebola da lentilha queimou há pouco, mais ou menos ao mesmo tempo em que as gatas derrubaram o varal em cima da terra dos vasos. Juro que, se não fosse total grupo de risco, era na casa da minha mãe que eu ia cumprir minha parcela da quarentena. Ô, mãe, me ajuda?