Envelheça longe daqui
Em “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, o Arganaz e a protagonista estão sentados lado a lado na plateia de um tribunal. “Gostaria que você não me apertasse tanto, mal posso respirar”, reclama o mamífero, ao que Alice docilmente responde que não pode evitar. “Estou crescendo”, explica.
Arganaz avisa a amiga: “Você não tem o direito de crescer aqui”. “Não diga tolice”, repreende a menina. “Não sabe que também está crescendo?”. Indignado, ele responde: “É, mas cresço num ritmo razoável, não dessa maneira absurda”.
A atual epidemia de coronavírus no mundo é nossa Alice. Por causa de sua presença e imponência, somos obrigados a lembrar que, queiramos ou não, temos todos o mesmo destino: crescer e envelhecer. E, a depender da etapa em que estamos neste caminho, é possível que a gente se identifique mais ou menos com as dores previstas nele.
Há quem até entenda que a velhice lhe aguarda, mas imagina que seja algo distante. Outros, mais conscientes, percebem desde muito cedo que, quando menos se espera, a terceira idade bate à porta, impiedosa e democrática. Mas, à parte a equipe em que se joga, de maior ou menor negação da realidade, somos unânimes no pânico e no desgosto com o desfecho da trama.
De todo modo, estarmos sob a ameaça de uma doença que mata muito mais idosos do que crianças e adultos expôs o que de pior temos como pessoas. Somos, cada vez mais, uma sociedade obcecada com a juventude, que idolatra conceitos como a beleza, a perfeição e o vigor. Rejeitamos tudo que se opõe a eles.
E, diante de um vírus tão seletivo ao ceifar vidas, também perderam, alguns de nós, o pudor de admitir que, se pudessem, também fariam como ele: ofereceriam os velhos ao sacrifício. Respiram, aliviados, com as baixas taxas de mortalidade daqueles abaixo dos 50, e propõem sugestões esdrúxulas de funcionamento do mundo, travestindo riscos de cuidados.
Em entrevista ao caderno de saúde deste jornal, a antropóloga e também colunista da Folha Mirian Goldenberg explica que, em suas pesquisas com nonagenários, escuta frequentemente a queixa de que, se antes da pandemia eles já se sentiam descartáveis, agora a percepção é de uma morte simbólica. Até porque, muitos deles têm plena consciência do desprezo evidenciado pela doença.
Ele está lá, sublinhado na fala de empresários gananciosos, eles próprios à imagem e semelhança dos “velhinhos” a quem ofendem ao sugerir que, ah vá, tudo bem que morram se o país e os jovens não pararem. Passassem, como Alice, através do espelho, veriam do outro lado a aparência com a qual tanto se enojam, e, mais que as rugas evidentes, o ridículo de quem tenta a qualquer custo camuflar o que todo mundo vê.
Está, sobretudo, emoldurado pela boca infecta daquele que, em vez de pouco ou nada fazer, deveria desempenhar o papel de líder maior de uma nação que, até 2060, estima ter 32% de sua população na faixa acima dos 60 anos – a mesma que ele, sem qualquer honra ou histórico notável, já ocupa.
É um “Cortem-lhe a cabeça” que se ouve quando a decisão superior de um governo, impulsionada pela pressão dos empresários que se acham muito jovens, ordena que se encerre a quarentena. Isolamento, este, que tem por objetivo principal resguardar e tratar de maneira digna os futuros doentes (doentes velhos, é claro, são sempre eles que atrapalham).
Na trama de Lewis Carroll, é justamente mirando o Arganaz que a Rainha de Copas aplica seu bordão pela última vez, antes que o livro termine. Aquele que reclamava do curso natural da vida, que negava à protagonista o direito de cumprir com seu ciclo humano, acaba na fila real para ter a cabeça cortada.
Importante lembrar que o Arganaz é o menor personagem de “Alice” – em tamanho, e em relevância. Porque é assim que roedores preguiçosos tendem a entrar para a história.