Está liberado sentir medo
Não há mais certezas, tampouco a ordem como a conhecíamos antes, mas há, pela primeira vez em tempos, a liberdade para sermos vulneráveis o quanto for preciso. A observação é de Alain de Botton, escritor suíço que acredita que a crise que o mundo atravessa ao menos poupou a humanidade da pressão de estar feliz.
Os brasileiros manjam pouco de filosofia. Porque, se na teoria compreendem colocações assim tão certeiras quanto profundas, na prática o que se vê não poderia mover-se em sentido mais oposto. As redes sociais que o digam. É nelas que mora a versão mais faceira do isolamento. Lá, parece, a obrigação de ser contente não desaparece nunca.
Com uma conta bancária e duas mansões de vantagem, os endinheirados romantizam o isolamento mostrando as bolhas nos dedos da surpreendentemente divertida (e inédita) faxina (que consideram) completa. Legendam com hashtags imperativas suas fotos estendidos no extenso jardim gramado, completando o treino funcional antes de um mergulho na piscina. Assim até eu ficava em casa.
Por falar em bolha, a minha é composta de classe-médiers que enxergam na quarentena a possibilidade de mudar não só a si mesmos, mas ao mundo como um todo. Pretendem alcançar e compartilhar a iluminação espiritual por meio de lives com conteúdo tão eclético quanto tutoriais de panquecas americanas, performances dos amigos artistas, e teorias gênero-sócio-raciais sobre a estrutura dos reality shows.
Neste nosso universo peculiar, debatemos memes no Zoom, nos compadecemos da Europa, e fustigamos panela enquanto não chega o Rappi com o mercado da semana. Mas tudo, sempre, com muito bom-humor, porque não somos nem loucos de aparentar desespero.
Nos esquecemos, no entanto, que uma coisa é manter o otimismo em prol da saúde mental. Outra, bem diferente, é obrigar-se a ele, impedindo que ocasionalmente brotem os medos e questionamentos naturais de um período comparável apenas às agruras de uma guerra mundial ou à época da peste.
Algo como ser tudo bem bolar atividades lúdicas para os filhos, e ser tudo bem também sentir vontade de chorar em cima do trenzinho feito de rolos velhos de papel higiênico.
A dependência da felicidade eterna é tão grande que, quando um sujeito, todo excêntrico, expõe sua fragilidade pelas redes – e isso sem se valer do subterfúgio do relato autodepreciativo -, não nos conectamos com ele. Pulamos o post, rolamos para outro perfil. Passamos para alguém que nos lembre menos da nossa própria impermanência e vulnerabilidade.
Quantos de nós realmente estamos oferecendo algum tipo de ajuda? Do apoio emocional aos que perderam parentes, ao prato de comida para quem não tem nada na geladeira? Não cuidamos direito nem dos nossos velhos, que dirá dos velhos dos outros. E, se estamos inertes, não é falta de força, mas de compreensão da realidade.
É dela que vem a romantização do isolamento. As selfies em família com máscaras fofas combinando. A era da felicidade obrigatória, no entanto, já passou, e para sobreviver a este momento é preciso desvendar os olhos para a urgência do mundo. Dos que estão em casa sem perspectiva de trabalho ou dinheiro, dos que vão perder coisas importantes. O tempo de um bom negócio. De uma relação. A última chance de uma sonhada maternidade. Os últimos anos da vida.
Claro que é saudável usar o confinamento como uma oportunidade de reconexão com a família, para mergulhar num projeto pessoal, buscar autoconhecimento. Ninguém sugere aqui que se antecipe o luto e se espere pelo fim. O pedido é apenas pelo emprego da sobriedade que o momento pede. Se já conseguimos reconhecer a importância de ficar em casa, também seremos capazes de compreender o valor que o sentir medo tem.