Exercício do adeus
Oi.
Imagino que esteja curioso, então, antes de tudo, quero te tranquilizar: foi um sucesso. Seus amigos mais queridos, antigos colegas de trabalho, as mulheres que você amou, toda nossa família. Estavam todos presentes e pensando fortemente na sua história. Claro, tínhamos as limitações que o novo mundo impôs, mas a videoconferência funcionou superbem e, pelo computador, todos puderam se despedir de você.
Pessoalmente, só eu e outros poucos. Bem poucos. Para nos abraçar, foi preciso esperar o fim da cerimônia, e acabei chorando sozinha, de pé em frente ao buraco no gramado imenso e bonito onde depositaram sua urna simples, nem isso eu pude escolher.
Para te vestir, eu havia escolhido aquela camisa bonita azul, sua cor favorita. Aquela, que você trocou na loja depois que te dei uma branca e dois números menor que o correto, alguns aniversários atrás. Mas também não podia. Agora, quem morre vai sem roupa para debaixo da terra, porque não há tempo para formalidades nem gentilezas.
Da tela digital, todos mandavam beijos e abraços. Seu melhor amigo leu um texto bonito, que falava que a morte é apenas a passagem para outro plano, um plano que os olhos da gente não enxergam, onde não há sofrimento nem dor. Um consolo, pai, para quem assistiu sua luta ligado a máquinas geladas, incansáveis. E, mesmo fortes, elas falharam.
Porque, pai, diante deste inimigo, tombam até mesmo os melhores – e eu sei que você se considerava um deles. Talvez por isso você tenha menosprezado o tamanho da ameaça, inflando o peito e se lançando, cego, à batalha. Ou pode ser que você tenha desejado demonstrar coragem, porque foi assim que o mundo te ensinou desde pequeno que era preciso agir caso quisesse sobreviver.
Por muitos anos você foi um sobrevivente. Fruto resistente de uma infância caótica, na cabeça mil demônios, uns pés pelas mãos na hora do amor e do zelo. Um coração imenso e forte. Mas teimoso, pai. Muito teimoso.
E foi essa cabeça-dura, essa descrença, essa mistura de valentia com cegueira, de orgulho com ignorância, que derrotaram você, por fim. Se você morreu, foi por não acreditar que, neste momento do mundo, a maior prova de amor que as pessoas poderiam te dar era ficar longe.
O que custava esperar um pouquinho para fazer de novo seus churrascos? Os almoços de fim de semana? Entender que não dava para sair nem para “uma voltinha”? Por que foi tão difícil acreditar quando eu dizia que a simples presença de parentes e amigos no mesmo lugar seria suficiente para passar para você – alguém do grupo de risco – este vírus invisível, porém poderoso?
Nunca foi fácil fazer você confiar em mim. Espero que agora, quando te conto que, embora triste, foi um adeus bonito, você acredite. Até breve, pai.
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Neste domingo de Páscoa, 12 de abril, meu pai está vivo. Menos forte do que imagina, mas vivo, e presente dentro do possível, dadas as circunstâncias da contenção da pandemia de coronavírus. Mas meu pai, assim como vários pais de muitos conhecidos, várias mães, avôs e avós, teimosamente não acreditam nas estatísticas nem nas recomendações das autoridades de saúde do mundo todo, e ignoram a necessidade da quarentena e do isolamento social. Escrevo essa carta na tentativa de que ele e todos os que ainda não compreenderam a gravidade do momento se convençam e mudem seu comportamento. Eu amo meu pai, e já há mais de um mês não nos encontramos. E isso porque eu não quero ter que escrever essa despedida de verdade. Não agora, não por isso. Se você ama alguém, também mantenha distância. Fique em casa. O tempo vai provar nossa razão e nosso afeto.