Ofmessias
Em frente ao muro de onde pendem os corpos dos enforcados, a personagem Offred se recorda da frase de Tia Lydia a respeito de como as coisas podem não parecer comuns agora, mas que, depois de um tempo, elas se tornarão ordinárias. “Ordinário é aquilo com que você está acostumado”, diz, no capítulo seis do livro “O Conto da Aia”.
No romance de Margaret Atwood, escrito em 1985, o costume é uma necessidade. Cultivá-lo busca evitar a anarquia. Naquela que é a exacerbação da conduta machista, materializada em uma nova sociedade chamada Gilead, a ideia não é fazer com que as pessoas achem que a ordem geral está correta, mas, sim, fazê-las esquecer como seria (e foi) um mundo diferente.
Em um cenário como este, conceitos antes repugnantes se tornam aceitáveis. Submeter mulheres a estupros mensais sob a justificativa do sagrado, torturá-las, humilhá-las, desprezar e eliminar homens que rejeitem exercer a dominação, ameaçar qualquer força dissonante: tudo é válido se é a isso que nos acostumamos.
Não é difícil se habituar ao tóxico. Pegue a síndrome de Estocolmo e o afeto pelo agressor, os relacionamentos abusivos que atravessam anos, ou os funcionários que resistem a abandonar o emprego mesmo sob persistentes episódios de assédio moral.
Como em Gilead, muitas vezes estes cativos não conseguem se lembrar de como era a vida antes. Assim, não só entendem que as condições atuais são as únicas possíveis, como chegam ao extremo de se convencer de que nunca mais haverá nada melhor que elas. Fora daqui não há de haver vida, determinam.
São mais propensos a cair neste vão irracional indivíduos já fragilizados emocionalmente de alguma forma. A moça que, com baixa autoestima, se conecta a um parceiro que a inferioriza ainda mais, o empregado inseguro de sua performance, convicto de que aquela vaga sub-humana é a única que pode conseguir.
Ou, quem sabe, também os cidadãos em isolamento social preventivo. Ameaçados pela equação do medo multiplicado por fatores variados, à míngua do equilíbrio emocional tendem a se esquecer como era o mundo antes desse atual, em que um líder se vale de ameaças, humilhações e desprezo para exercer o poder.
Exaltar torturadores, sugerir a morte de milhares, minimizar a fome, caluniar a imprensa, ridicularizar minorias, e sobretudo subestimar um vírus mortal que assola o mundo – conceitos antes repugnantes se tornam aceitáveis. Perdoam-se os crimes do comandante, veste-se o chapéu branco, ergue-se a saia em sinal de submissão. Adota-se um novo nome, com um Of na frente para designar posse.
Porque só assim para explicar a apatia que nos assola. Essa inércia. Talvez tivessem orgulho de nós os criadores de Gilead, ao ver que o máximo de insurgência contra o absurdo a que nos prestamos é amassar o fundo de panelas nas janelas dos apartamentos.
Mas, se não estamos indiferentes nem conformados, e sim apenas exaustos da imoralidade e dos desaforos, parece que é chegada a hora de reagir. Encarar o muro de onde pendem os enforcados e responder que não, não vamos nos acostumar nem tomar por ordinária a barbárie.
A ficção prova que há meios de fugir de Gilead. De não ser mais Of de messias algum. Sejamos, portanto, nossas próprias heroínas e heróis: nolite te bastardes carborundorum.