E daí?

Experimenta falar “e daí” lá em casa pra você ver o que acontece. A última vez que uma criança tentou foi numa mesa de café da manhã e o olhar de reprovação que se seguiu foi tão maligno que ele chorou de encharcar o pão de queijo, inviabilizando a continuidade da refeição.

Se um cônjuge mandar uma dessas, é divórcio com justa causa. Olha, te fiz um bolo gostoso, e daí, ou o meu chefe meu deu aumento, quem se importa, e na quarentena ainda pior, porque já são tão raras as gentilezas, algo como eu lavei a louça toda pra você encontrar a pia limpinha, guardei prato, panela, as taças de vinho estão tinindo, grandes bostas. E daí?

Mas o presidente pode. Aquele que, de zoeira, na internet virou o Alecrim Dourado porque pode tudo, porque tem greencard para obrar pela boca sem ter que lidar com sequelas. E eu acho que o Alecrim acha que pode falar “e daí” porque o “e daí” é coisa típica não só de quem não sabe o que dizer, mas também coisa de menino insolente.

É expressão que até ganha tempo, da mesma família do “você não sabe de nada” e do “isso não tem nada a ver”, sendo que todas elas pensam que dão conta de encerrar uma discussão, quando, na verdade, só dão mais gosto de seguir com a briga, mas, voltando, como eu dizia, eu acho que dizer “e daí” é recurso de quem, além de não ter argumentos, também quer alucinar o adversário. Lotar de sangue no olho quem se maravilha diante de tanta imbecilidade e ousadia.

Um dia o metrô pro colégio se encheu de um cheiro forte de queimado, e eu pensei ter visto uma leve fumaça chegando no vagão, não sei, complicado que ninguém mais tenha percebido, só mesmo eu e meus dois primos que estudavam na mesma escola, e a gente concordou, sem ter que dizer muito, que aquilo ali era um perigoso princípio de incêndio e voltou pra casa da vó sete horas antes do que ela esperava que a gente chegasse, porque não fazia nem 25 minutos que a gente tinha saído.

Daí ela abriu a porta e olhou bem na cara de cínico da gente, que estava claramente fazendo esforço pra acreditar na nossa própria fantasia e ainda convencer um adulto da veracidade daquilo tudo, e a vó mandou todo mundo esperar no quarto dos fundos enquanto ela telefonava pro vô, lá no escritório da Dersa, pra saber o que fazer dali em diante.

O vô era coronel. A diretriz chegou voando. Sem TV nem brincadeira até de noite, e meu primo atirou de pronto, “e daí, vó”, querendo dizer que até parece que a gente se importa, e o castigo se multiplicou por uma semana. Valeu, Guilherme.

Se pega mal mandar um “e daí” pra família, que dirá se atrever num “e daí” prum chefe. Quando eu perder de vez o juízo e qualquer traço de maturidade, e então receber um WhatsApp dele me dizendo pra ir atrás de uma matéria, ou ler pra ontem aquele livro, descolar uma entrevista com fulano, escrever sobre esse assunto bem difícil, vou experimentar falar que “e daí” pra ele, pra ele notar bem o mash up de desprezo e ignorância na minha conduta.

E vai ser quando eu vou ser demitida com toda a justificativa do mundo, ainda que eu não me dê conta disso porque, né, e daí, e eu vou bisar “e daí” mil vezes do caminho do RH até o olho da rua, apenas porque vou estar completamente louca e amoral e tendo certeza de que desde o princípio a razão estava toda comigo.

Experimenta falar “e daí” lá em casa pra você ver o que acontece. Fica todo mundo sem pão de queijo, sem TV, sem brincadeira, sem emprego. Costuma ser assim onde é um adulto que manda.