Somos todos CGCs
Mesmo antes de peças de roupa custarem insanos três dígitos, e principalmente antes de a gente se enfiar em quarentena em casa e ter que guardar dinheiro porque vá lá saber o que o amanhã nos reserva, eu já era adepta dos brechós por considerar que comprar roupa usada é não só mais econômico como também mais estiloso.
E, mesmo sendo essa traça da segunda mão, foi só recentemente que percebi o bafafá em torno do CGC, sigla que arrepia garimpeiras e vem impressa em algumas etiquetas. Quando uma peça dessas surge disponível num brechó online, é correria, pânico e desespero: o primeiro comentário leva a compra, e os seguintes escrevem “fila” para esperar em ordem por um mágico golpe de sorte.
O CGC nada mais é do que o CNPJ antes de 1998 – ou de “antigamente”, como chamam as brecholeiras. Uma peça com CGC impresso é comprovadamente algo vintage, e mais valorizado, portanto. Outro dia, uma vendedora vibrou sobre uma camisolinha de piquê toda bordada, conclamando a comunidade retrô a quase orar sobre aquela roupa que, dizia ela, era um milagre existir há mais de 20 anos.
Eu já existo há mais de 20 anos, pensei. Aliás, já fazia quase 20 anos que eu já existia quando o Ministério da Fazenda resolveu editar as nomenclaturas. E, mesmo assim, sendo toda vintage original, com rendinhas anos 80, ninguém me chama de milagre nem reza um Pai Nosso de gratidão sobre os dígitos do meu RG.
Neste fim de semana, vou completar 40 anos. Uma CGC legítima. Com isso, andava desgostosa das minhas marcas de uso, algumas bolinhas no tecido aqui, outros furadinhos na trama, as rugas do tempo que nem um bom trato do ferro de passar roupas resolve. Chateada mesmo, sempre que me comparava(m) com as peças novinhas de coleções atuais.
Quando minha mãe fez 40 anos, eu lembro que chorei escondida no quarto, pensando que nada podia ser mais velho que isso, alguém que tivesse quatro décadas. Um mês depois foi meu aniversário de 12 anos, e Deus, implacável, enviou de presente uma festinha no prédio à qual compareceram zero convidados.
Um amigo escreveu esses dias no meu Instagram que tudo melhora quando se chega aos 40. Meu analista completou que fazer 70 é uma maravilha. Acho que ninguém tem dúvidas de que, para os homens, acumular unidades e mesmo dezenas é realmente uma coisa incrível. Aumentam salários, autoestima, oportunidades.
Percebi que o desconforto, porém, não é tanto relacionado à idade em si, o meu CGC dobrado, mas sim ao fato de completar uma idade assim tão simbólica – se não para o mundo inteiro, apenas para aquela metade que se lasca sob o patriarcado – em condições adversas.
Uma amiga da juventude partiu há poucos dias, há um desgoverno em curso, milhares ainda morrerão na pandemia. Tememos perder o emprego, os amores, o prumo. Bem diferente dos abraços, dos drinques e do bolo que imaginei pra quando esse momento chegasse – quem podia sonhar que o aniversário deserto aos 12 não seria o pior de uma existência?
Desejo de presente pelos meus 40 anos (e também a você pelos seus 59, 15, 36, ou quantos forem que você completará durante a quarentena) a paciência fundamental para aguentar firme e lembrar que vai passar. Muito em breve este será apenas mais um capítulo duro de nossas trajetórias – como aquele puído na bainha que só confere ainda mais valor e força aos sobreviventes CGCs do brechó.