De volta no armário
Não eram nem seis da manhã quando a enxaqueca infernal teve início, e não precisaria nem da costumeira bexiga lotada para acordar dessa vez – o processo de implosão do cérebro deu, sozinho, conta do recado. A eterna zona da gaveta de remédios. Ninguém nunca precisou tomar laxante nessa casa, e quantos pulmões são necessário para ter que beber tanto xarope?
Não tem aspirina. Nem tylenol. Tem uma porção de comprimidos contra gases, esparadrapo e bolinha antroposófica, mas é de uma bomba que ele precisa. Já é inverno e faz muito frio, o sol nunca se levanta nessas condições, ele mesmo só se levantou por necessidade, e o apartamento de Moema segue escuro sabe-se lá por mais quanto tempo.
Tropeça no tapete árabe do hall. Dá com o dedinho do pé esquerdo na quina do banquinho do piano da mulher na sala, enquanto tateia a coluna de mármore falso atrás do interruptor. Alguém deve ter removido o botão daqui, não é possível, isso é coisa da empregada.
Vai no escuro, mesmo, até a cozinha. Abre a geladeira para clarear as coisas, as ideias, e, com a luz interna refletida no tupperware de melão com presunto, consegue achar as cartelinhas de analgésico em cima do balcão. Glória a Deus, fala baixinho, e se vira para rumar ao filtro em busca de um copo d’água. É quando se dá a desgraça.
O braço, desconexo do resto do corpo, sobra para trás e aterrissa no escorredor de pratos. A tampa da Le Creuset é arremessada ao chão com a velocidade de quem lança um frisbee no sentido errado, e leva quatro anos para se acalmar do bamboleio escandaloso sobre o porcelanato bege. Quando finalmente para, já é tarde demais.
O vizinho de cima, no 202, pula assustado da cama, incrédulo. Confirma que o som é aquele mesmo, e envia mensagem no grupo de moradores, questionando a ousadia. Antes de ordenar às cozinheiras que ponham a mesa do café, todos os apartamentos repetem o gesto. Entre as queixas, primeiro que é quarentena, e ninguém merece acordar tão cedo (exceto as cozinheiras, óbvio), segundo que foi isso mesmo que a gente ouviu?
Ele não visualiza, tampouco responde. Está escondido dentro do armário planejado do quarto, sem celular, em pânico absoluto. Antes que o imbróglio se resolva, a notícia já se espalha além dos domínios do condomínio, e corre entre os prédios de alto padrão do bairro, lado pássaros, lado índios, edifícios com nome francês, edifícios que homenageiam Miami.
No Facebook, o que antes se comentava ser boato, fake news da brava, agora já viraliza com confirmação oficial da imprensa amadora da zona sul da capital. Está lá postado que alguém não só ouviu, como viu pessoalmente, onde tudo teve início. São quinze para o meio-dia, ninguém vai tomar uma atitude?
Perplexos. Aturdidos. Passados. No centro, já se replica o ato, zonas norte e leste a mesma coisa. Na zona oeste ouvem-se fogos, e as pessoas saem às ruas – de máscara, meia e Crocs – para, à distância de dois metros, perguntar primeiro se é isso mesmo, e depois ensaiar uma celebração caso tudo se confirme. Alguém surge com alfaias pernambucanas, dois trazem violão e saxofone. O cheiro que sobe na esquina lembra o de hambúrguer artesanal no pão brioche.
Rio de Janeiro, Minas, Bahia, todo o nordeste, norte, sul, e até mesmo o restaurante que faz piada com o meme do caixão em Gramado, no Brasil inteiro se reitera aquilo que um singelo apartamento em Moema despertou. A revolução está em curso. A manchete adentra Brasília.
Uma reunião ministerial é convocada de emergência. A copa do Planalto passa litros de café, alguém traz chocolates da Kopenhagen, e, ao som de quatro palavrões por minuto, homens de gravata, só de meias e um ou outro usando máscara se debruçam sobre papeis impressos de última hora. Crise. Drama. Falta de saída.
Uma multidão de fotógrafos do mundo todo abre tanto uma exceção para aglomeração quanto mais espaço entre os poucos que ainda balançam bandeiras, mas, desgostosos, já nem se lembram como faziam antigamente para esbofetear repórteres com o mastro. Flashes mesmo de dia (é inverno e faz muito frio), e lá vem descendo a rampa o capitão reformado, destituído de seu cargo.
Cabisbaixo, amparado pelos filhos, a mulher já foi na frente e espera no banco de trás do carro. Não se sabe quem, ao certo, pergunta em meio ao povo se é verdade mesmo que o presidente caiu por causa de um panelaço inédito no bairro rico de São Paulo.
Amarfanhado no chão entre barras de calças e sapatos, vestindo ainda a camisa da seleção que virou pijama, o dono da Le Creuset é resgatado de dentro do guarda-roupas do 102 pela cozinheira, que, antes de qualquer coisa, jura que não, não trocou interruptor nenhum de lugar, e depois pergunta se pode ajudar com alguma coisa, um analgésico que seja, ou será que tem remédio específico pra vergonha? É só o senhor me falar que eu busco.