Apelidinhos e vozinhas

Começou quando a cachorra fez algo fofinho, como tentar esconder o osso debaixo do cobertor, ou coçar, de pé, a barriga, usando uma das pernas. Ou foi no dia que ela ficou com as orelhas viradas do avesso parecendo uma menina com o cabelo preso atrás da orelha. Se bem que talvez tenha sido quando a gata ganhou uma personalidade inventada. Agora que ela é cantora, insegura, e meio mentirosinha.

Não sei ao certo. Só sei que, definitivamente, envolvia algum dos bichos da casa. Ou talvez o videogame do menino. Que, por mais que tenha aquela dancinha infernal, também tem uns toques gracinha. Tipo na hora que ele chama o escudo pelo nome em inglês e no diminutivo.

Daí, ou daquilo tudo de antes, tanto faz a origem, foram nascendo os apelidos novos. Que foram ganhando variações. E depois as novas versões açucaradas das variações iniciais. Acabou que todo mundo agora tem um nome novo dentro de casa. E, como ninguém sai mais de casa pra lugar nenhum, o nome novo virou o nome da vida. No RG, em ordem vêm o apelidinho, o sobrenome um, e o sobrenome dois.

Foi quando abriram as porteiras da quarentena e o mundo voltou ao normal, ou ao novo normal, que ninguém sabe ao certo o que significa porque esse tipo de coisa não existe, ou é normal, ou é novo, novo normal não tem. Mas o que importa é que a gente saiu pra rua. De máscara. Passando álcool gel em tudo, ainda. Mas saiu.

E foi meio constrangedor, primeiro porque no novo normal não tem regra de etiqueta estabelecida, então tem quem continue usando o cotovelo no cumprimento, tem que tenha voltado às origens estendendo a mão, e tem os malucos que inventaram saudações inovadoras, que batem o quadril no antebraço ou encostam só as pontinhas dos joelhos.

E, segundo, que foi ainda mais constrangedor porque agora está todo mundo muito tenso, andando na rua meio noia, sem emprego e sem dinheiro, pagando iogurte em seis vezes, dando ração de quinta pros bichos da casa – os ossos que a cachorra esconde são seminovos, e a gata cantora só come milho transgênico no camarim.

De tanto usar moletom e pantufa, a gente não sabe mais se vestir direito. Que dirá botar a blusa pra dentro da calça. Ferro de passar agora é vintage, igual televisão de tubo e computador de torre. Tem aula online pra reaprender a andar de salto, dar nó na gravata, a abotoar sutiã.

Workshops inteiros sobre o que um adulto precisa carregar na carteira, como organizar uma bolsa, vídeos no Youtube para saber ajustar a mochila nas costas. Tutorial para não perder as chaves de casa na rua. Manobras para tirar o carro da garagem módulo um. Confira cinco dicas infalíveis que vão fazer o seu ônibus parar no seu ponto.

E, se não bastassem esses ajustes, toda a inabilidade social, financeira, estética, biblioteconômica e de mobilidade urbana, foi todo mundo solto de volta na rua – de máscara, passando álcool gel em tudo – usando apelidinho fofinho pra chamar os outros. E, pior: falando com vozinha.

Não precisavam vir os sociólogos experientes, e nesse aspecto não havia nada que infectologistas pudessem fazer, porque o mundo inteiro sabe que o mundo inteiro usa uma voz diferente dentro do relacionamento. Pode até demorar para aparecer, mas ela sempre surge e é invariavelmente ridícula.

Então junte-se a isso o fato de que, agora, visualizem que é importante, estamos todos na rua de máscara, com álcool gel, perdendo as chaves, sem mochila, sinalizando pro Penha-Lapa, de moletom e despencando do scarpin, e ainda por cima afinando uma vozinha boçal como forma aceitável de comunicação.

A sorte é que parece que descobriram uma vacina, há estudos que indicam que o processo vem avançando. Até o meio do ano que vem, seremos cerca de dois terços do globo imunizados. Contra a vozinha, obviamente. Porque a do coronavírus parece que demora um pouco mais a chegar.