Histórico de atleta
Na próxima edição das Olimpíadas, se é que as Olimpíadas voltarão a acontecer um dia, pra que possam ter uma próxima edição, será feita a inclusão de um novo esporte. Seríssimo, tanto quanto o vôlei ou a natação, dificílimo e muito técnico, tanto quanto a ginástica artística ou o nado sincronizado. Vai se chamar comparação extrema de fotografias.
Nele, os atletas provarão seu talento para relacionar imagens pré-pandemia com outras pós. Quaisquer tentativas de utilizar retratos de Veneza antes e depois dos cisnes, ou prints da camada de poluição na atmosfera, serão automaticamente desclassificados. O foco, aqui, está na análise de fotografias de si próprio.
Eu, por exemplo, tenho largas chances da medalha de ouro. Venho treinando há semanas avaliar milimetricamente nas selfies o quanto meu bigode chinês aumentou, ou quantas dobras surgiram além das que já apareciam nas fotos que tiravam de mim quando sentada, de perna cruzada.
É um exercício cansativo, desgastante, sem sentido, e que nunca vai valer a pena. Talvez bastasse apenas a gente estar ciente de que, sim, essa barriga já foi longe demais. Sem tortura adicional, sabe, só mesmo uma conscientização. Tomar pé da flacidez, da cara de pau, do fígado triste. E o que dizer destas olheiras?
Outro dia, no mercado, ouvi meu nome no corredor dos temperos. Era um “Marcella” com interrogação, meio inseguro, testando a água. Mesmo de máscara dava pra reconhecer, pelos olhos e pela barba, a cara do colega do trabalho. Driblada a vontade de dar um abraço, apertar dizendo quanto tempo que saudades, rumamos, metro e meio de distância, para a seção dos iogurtes.
Ele abriu uma geladeira, eu, outra, e enquanto caçava a data de validade dos gregos (o texto é sobre Olimpíadas), falamos sobre carreira, dinheiro, comida, medo, álcool gel, olha o preço das azeitonas (gregas), que absurdo. Ele se queixou que não avisei que sua braguilha estava aberta. Confessei que não ando por aí conferindo braguilhas dos outros. Dissemos tchau. Ele se foi.
No dia seguinte, mandou mensagem. Explicava que não sabia como dizer aquilo, retomou, para quebrar o gelo, o assunto do zíper desfeito de maneira espirituosa – a gente escreve muito bem, uma vez disseram -, e perguntou se eu tinha apanhado. Assim. Feito um soco seco.
A culpa, explicou, era do tom azulado da pele do meu rosto. Aquele microtrecho visível fora da máscara de borracha. Ofereceu ajuda de pronto, somos vizinhos, afinal, é só me avisar que eu corro até aí, tudo muito rápido, e pra, depois, mortificado, pedir desculpas pelo que considerou uma intromissão surrealista.
Talvez se mais vizinhos surrealistas se intrometessem na vida das amigas mulheres, muitas mais entre nós conseguiriam escapar de grandes enrascadas, comentei. Não era o meu caso, que vivo num lar cheio de respeito e harmonia, mas, e se fosse? Mandei risadas e emojis de paz, mãozinhas em prece. Carinha constrangida. Agradeci e garanti que não havia problema.
Quer dizer, não havia problema com a preocupação dele, nem com seu gesto. Mas problema tinha e tem, ainda, e sim, com a dimensão que essa olheira roxa tomou. Tá percebendo? E olha que já tentei camomila, vitamina, compressa quente, compressa fria, massagem tântrica, simpatia. Deve ser genética.
E genética tem o que a ver com a pandemia? Porque, se fosse uma olheira herdada, na quarentena ela não aumentava. Nem diminuía. E ainda tá caindo o cabelo, também, não sei se falei disso – as fotos de antes mostram um rabo de cavalo bem grosso, e as de agora fazem parecer que tenho um gambá preso à cabeça.
Fora a questão da moda. Se antigamente eu não usava moletom com Crocs e meia, hoje são só essas três peças que tenho disponíveis no cesto de roupa limpa. E ainda me deixo fotografar usando.
Eu queria era parar de me comparar com o que fui antes de a loucura ter início, mas não consigo. Largar mão e saber que é transitório. Entender que a falta de sol e o excesso de comida têm dessas consequências. Mas infelizmente parece que meu histórico de atleta tem tudo para me levar à vitória olímpica.