Uma praga pessoal e intransferível

Feisal Omar/Reuters
Marcella Franco

Depois de o celular quase cair na tigela cheia de cenoura batida com óleo e açúcar, dona Lourdes agora procurava o botão que põe a ligação no viva-voz. Não era a primeira vez que o filho sugeria que ela não equilibrasse o telefone entre a cara e o ombro, mas com dona Lourdes, teimosa, católica entusiasmada, um pouco surda e muito apegada às tradições, as coisas levavam tempo para mudar.

Veja este bolo, por exemplo, que vai assar por 25 minutos em forno médio. Foram meses, quase um ano, até que ela se convencesse a receber em casa para um café da tarde o namorado do filho, menino bom, estudante de engenharia, e que esperou pela primeira relação firme para contar à mãe o que ele já sabia havia uma década.

Tomás gosta de garotos, dona Lourdes gosta do que é certo. Mas não adiantou chorar, fazer novena, mandar rezar missa, garantir promessa, borrifar água benta em segredo na toalha de banho do filho – mais cedo ou mais tarde, seria inevitável abrir as portas de casa e se resignar.

– Tá me ouvindo, mãe? A gente não vai mais. Esse negócio do vírus é sério, e parece que só velhinho pega.

– Mas eu não sou velhinha.

– É, mãe. E eu não posso arriscar. Vou da faculdade direto pra casa, o Caio fica lá na casa dele, e a senhora não pode mais sair na rua nem receber visita.

– O que é isso, Tomás Eduardo?! Hoje tem missa.

– Tem. Mas a senhora não vai.

– E o Caio não vem mais mesmo?

– Não. Cancela o café. Não sei quando vou poder vê-lo novamente.

Ajoelhada, de olhos fechados e espremendo uma imagem minúscula de Santa Rita na mão esquerda, Lourdes conjecturou, em silêncio, na oração da semana passada, como seria se, um dia, voltassem as pragas do Egito. Gafanhotos gigantes podiam impedir esse namoro, de uma pouca vergonha absurda, já imaginou que bênção?

Dona Lourdes agora tem certeza de que a pandemia foi mandada para salvar a ela e ao menino Tomás do calor do inferno. Resolve que é coisa pra se comemorar, e cobre de chocolate, excepcionalmente, a assadeira ainda quentinha. Acende uma vela. Pensa em espetá-la no meio do bolo feito aniversário.

No décimo dia da quarentena forçada, Tomás tenta acompanhar as aulas da faculdade transmitidas via computador, enquanto a mãe, na sala, ouve a televisão no volume máximo. Ele distingue uma outra voz conhecida, que entra no ar no lugar daquele apresentador famoso do telejornal.

– No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico daquela conhecida televisão.

Tomás vasculha a gaveta de remédios atrás de algo para enjoo, enquanto o nome de Caio pisca na tela do celular. Antes de atender e equilibrar o aparelho entre a cara e o ombro, pergunta se a mãe não acha um absurdo um pronunciamento daquele nível ser feito por um presidente. Dona Lourdes diz que gostou de quando ele citou Deus no final.

Já com a TV da sala desligada, e em busca da letra “o” no índice da agenda do telefone, Jair caminha para a cozinha do Palácio da Alvorada. Nem bem ouve o bipe da ligação chamando, dona Olinda atende de bate-pronto.

– E então, mamãe, a senhora gostou do que eu falei?

– Achei lindo, meu filho. Parabéns.

– Gostou que eu citei Deus no final?

– Adorei.

– Essas pessoas todas que estão aí têm que entender que não adianta tentar me derrubar porque eu não caio, mãe, taoquei?

– Essas pessoas quem, meu filho?

– Essas todas que estão aí, daí, mamãe. Que inventaram essa palhaçada de vírus pra me tirar do poder.

– Mas eu vi na televisão que a doença é de verdade, Jair. Morreu um montão de gente na Itália. Na China também, falaram.

– A China nem existe, ô, mamãe, taoquei? Vê se nos Estados Unidos apareceu alguém morto.

Jair vasculha a gaveta de remédios atrás de algo para azia, depois de desligar sem dizer tchau, quase derrubando o celular ao descolá-lo da cara e do ombro. Tem certeza de que a pandemia foi mandada para enviar a ele e aos seus filhos todos para o calor do inferno. Uma praga pessoal e intransferível.

Não porque ele tenha feito algo errado, que isso nunca. Mas é que uma desgraça assim forjada e quase bíblica tem toda a cara de coisa inventada pela esquerda, que quer a todo custo vê-lo perder a faixa presidencial.

Mas Jair tem histórico de atleta, como agora todos os brasileiros sabem depois do seu brilhante pronunciamento, ele reflete, e sua principal missão como bravo militar e desportista será, daqui pra frente, lutar para desmontar esta farsa comunista gayzista, e mostrar para todo mundo que só usa máscara quem é otário.

Encontra em cima da mesa algo coberto por um pano de prato ainda úmido. Aí sim, pensa em voz alta, a Michele preparou bolo de cenoura. Resolve que, mesmo atolado em problemas, é coisa pra se comemorar, e lambe o chocolate, como de costume, da assadeira ainda quentinha.

Vai deitar otimista. Esta qüestão parece definitivamente resolvida.