Você esqueceu o seu carrinho
Descobri nesta quarentena que há dezenas de coisas das quais eu não preciso para ser feliz. Variadas peças de roupa, por exemplo, bijuterias, objetos de decoração, lançamentos eletrônicos. Uma porção de artigos supérfluos, que têm em comum o poder de drenar dinheiro da minha conta bancária e o fato de estarem todos, sem exceção, dispostos nos meus carrinhos virtuais à espera apenas do meu próximo clique.
Bom dia, meu nome é Marcella, e sou viciada em quase comprar. Porque enquanto há as pessoas cuja questão é tentar preencher um vazio existencial adquirindo coisas, em um outro canto escuro estamos nós, os psicopatas, certamente também cheios de buracos na alma, mas que não temos sequer a coragem de apertar o botão que diz “fechar pedido”.
Somos uns covardes. Uns voyeurs de compra dos outros. Morremos de prazer ao ver alguém em casa concluindo uma compra, seja de um ínfimo Tylenol no Rappi ou de uma TV nova para a sala. Possível fosse, ainda bisbilhotaríamos os vizinhos da frente com binóculos, gozando com o mouse alheio na aba do Carrefour.
A gente ama quando chega um pacotinho na portaria, ainda que não seja nosso. E nem precisa ser de um conhecido, que more no mesmo apartamento. Se for de colega de andar já basta. A caminhonete do Sedex encosta, bate aquele arrepio na espinha, e a orelha cola na porta pra tentar ouvir o estilete rasgando a etiqueta do Mercado Livre.
Na arte de encher carrinhos fictícios, há um encantamento todo especial na parte em que, depois de escolher 20 itens, dá pra ver o subtotal. Quando é uma loja cara, a graça é arriscar a surpresa de um valor abaixo de um salário mínimo. Já se for um lugar barato, o frisson vem de pensar que dá até pra pagar no boleto, de tão em conta que ficou.
No geral, fazer não-compras na internet envolve um não-pagamento no cartão. Óbvio. Se não há dinheiro de verdade, não há dinheiro para brincar. Daí é selecionar a opção do Master ou do Visa, e simular parcelamentos. Bom é quando o site só deixa dividir em três vezes, porque a culpa de não finalizar fica sendo da falta de gentileza do crediário.
Antigamente havia o truque de encher o carrinho, preencher o cadastro, depois fechar a aba e manter o silêncio. Em poucas horas, um e-mail da loja chegava para dizer que, olha que surpresa, você havia esquecido suas compras no caixa. Nessa hora, a gerência oferecia um cupom de desconto, porque vale tudo na prevenção do abandono.
Hoje, depois que nós psicopatas largadores de sacolinhas banalizamos essa estratégia, ninguém oferece mais nada. Ainda chega a mensagem, mas só mesmo para nos expor à vergonha e à verdade. Oi, Marcella, vimos que você não concluiu sua compra, houve algum problema na sua experiência ou é só falta de dinheiro mesmo?
Quando trabalhei escrevendo conteúdo para o varejo, vi que há cursos – hoje em dia deve haver até lives – sobre a grande epidemia dos carrinhos largados para trás. É um problema para o comércio, de verdade. E eu, que detesto colaborar para qualquer parcela da desgraça do universo, peço perdão por ser desse jeitinho quebrada e sem coragem. Mas é mais forte que eu.
Digo em minha defesa que durante a quarentena efetuei muito mais compras virtuais do que esperava fazer quando o isolamento começou. Achava que agora era a hora de realmente não gastar dinheiro, mas acabou que eu precisava demais de umas canetas marca-texto, dum lenço para o cabelo, uma luz de LED para ler na cama e de caneleiras para malhar as coxas moles.
O hábito começou a dar sinais de neurose quando fiz uma compra tão automática que botei a numeração da rua errada, e agora minha espuma de limpeza facial à base de alecrim está lavando a cara de outrem que não eu, a psicopata do carrinho. E veja, por exemplo, uma amiga minha, para quem contei que estava escrevendo este texto, porque sei que ela também compartilha do mesmo vício.
Ela revela num áudio que agora elevou a prática a um novo patamar. Enche o carrinho, efetua o pagamento (ousada!), recebe a encomenda (ela, sim, sabe preencher corretamente o campo “endereço”), experimenta tudo e depois devolve. Aproveitou o saldão de uma famosa loja de roupas para provar a coleção inteira, das meias aos suéteres.
O marido anda preocupado, perguntou se não é o caso de intensificar a análise para duas vezes na semana. Resolvo que é hora de compartilhar com meu namorado que eu talvez precise de ajuda. Ele me escuta atentamente, e termina me perguntando se eu acho que dá pra fazer isso com uma guitarra que ele quer muito tocar só uma vez, gravar, e mandar de volta para a loja.